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40 quilos de lã, o papa Francisco, a Igreja e a evolução

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Aleteia Brasil - publicado em 06/09/15

Os ideólogos do cientificismo não enxergam o xis da questão quando o assunto é o rumo da criação

CHRIS, O CARNEIRO QUE DEPENDIA DE NÓS

Chamou a atenção nos noticiários desta semana a tosa de um carneiro que tinha passado anos perdido no interior da Austrália: depois de resgatá-lo, uma associação de proteção dos animais retirou dele nada menos que 40 quilos de lã, um recorde mundial. Como a lã de um carneiro não tosado rende cerca de cinco quilos por ano, supõe-se que o carneiro tenha sobrevivido em ambiente selvagem durante mais de oito anos, apesar dos parasitas que tamanho volume de pelos tinham acumulado – e das conseguintes infecções e problemas de pele sofridos pelo animal, que foi chamado de Chris.

Por que o caso despertou tamanha atenção mundial?

Do ponto de vista científico, por causa da necessidade de ajuda humana para retirar a lã do carneiro. O caso de Chris enfatiza o quanto a sobrevivência desta espécie se tornou dependente da espécie humana ao longo da história.

Os carneiros foram domesticados há cerca de 11.000 anos, na Mesopotâmia, e passaram a sofrer a chamada “seleção artificial“: são os homens que escolhem as características dos animais e das plantas que cultivam, e não mais a natureza. Este conceito foi criado pelo naturalista britânico Charles Darwin, famoso pela teoria da evolução biológica, e se aplica ao processo evolutivo de outros animais domesticados, como as galinhas, os gatos e os cachorros. Trata-se de animais “moldados” pela humanidade a tal ponto que eles se tornam dependentes do cuidado humano. Foi por isso que, ao ficar perdido durante tanto tempo, a lã de Chris cresceu indefinidamente, sem que a natureza “desse um jeito” na situação.

A IGREJA E A EVOLUÇÃO

Também causou grande barulho na mídia, faz alguns meses, uma declaração do papa Francisco afirmando que a teoria da evolução é compatível com a fé cristã. Jornais, TVs e sites fizeram alarde anunciando que, “finalmente”, o papa “reconhecia a evolução das espécies”. Para variar, faltava evolução à mídia, que estava atrasada vários e vários séculos.

A Igreja reconhece a existência de um processo evolutivo desde Santo Agostinho, que o sugeriu já no século V d.C. Sim, mais de mil anos antes que Darwin o propusesse. O que marca a grande diferença entre a Igreja e Darwin não é o fato de que as espécies evoluem, e sim o sentido dessa evolução. O darwinismo afirma que a evolução acontece mediante a sobrevivência de variações genéticas aleatórias, sem nenhum propósito e sem nenhuma orientação. Já a Igreja sustenta que em toda a natureza existe uma lógica de fundo, um desígnio inteligente, um propósito. E não apenas na evolução biológica, mas na própria estrutura do universo, que segue leis físicas, químicas e matemáticas observáveis e inegáveis.

O mundo laico, no entanto, considera que a Igreja católica “não enxerga o xis da questão” no tocante à biologia moderna e conclui que a evolução e a criação não podem ser compatíveis. Ateus e fundamentalistas concluem erroneamente que “o cristão escolhe a crença em detrimento da biologia“: para o ateu, isto é motivo de repúdio ao cristianismo; para o fundamentalista, é motivo para repudiar a biologia moderna.

Acontece que quem “não enxerga o xis da questão” não é a Igreja, mas sim os ateus e os fundamentalistas.

Da perspectiva católica, o problema não é que Darwin tenha se livrado do conceito de desígnio na natureza: o problema é que as pessoas começaram a acreditar que o desígnio “vai ou racha” com a ciência natural. A suposição de que a evolução biológica não tem nenhum propósito ou desígnio não entra em conflito com a teologia, porque é uma resposta a uma questão científica, não teológica. Tomás de Aquino enfatizou, muito antes da Revolução Científica: a ciência natural e a teologia não são corpos de conhecimento concorrentes; são formas distintas e complementares de investigação.

OS QUATRO TIPOS DE CAUSAS

Por que existe a cadeira?“. Segundo o filósofo grego Aristóteles, que viveu há 2.500 anos, esta pergunta pode ser interpretada de quatro maneiras diferentes:
– “Quem fez a cadeira?” (causa eficiente)
– “Para que foi feita a cadeira?” (causa final)
– “Qual é a natureza da cadeira?”  (causa formal)
– “De que a cadeira é feita?” (causa material)

Cada uma dessas quatro perguntas equivale a perguntar “Por que existe a cadeira?“, mas levando em conta quatro tipos diferentes de “causa” para a existência da cadeira. Em grego antigo, a palavra “causa” (aitia) significa “razão”: a razão pela qual. Confundir os diferentes tipos de causa ou razão gera absurdos: quando alguém pergunta “Quem fez a cadeira?”, não faz sentido responder “Para sentar-se”. Cada pergunta pede o seu próprio tipo de resposta. Uma explicação completa sobre a causa de algo, pensava Aristóteles, envolve estas quatro perguntas e as suas respectivas quatro respostas.

Hoje em dia se tende a rejeitar a validade destas quatro causas originais no âmbito da ciência moderna. Ainda no início do período moderno, cerca de 500 anos atrás, os filósofos Locke e Hume questionavam aquela que Aristóteles chamava de “causa formal”, que corresponde à natureza metafísica de algo.  Eles achavam que a ciência moderna pode explicar de que uma coisa é feita e quais são as suas leis de governo sem precisar abordar sua natureza metafísica. Tenham as causas formais sido banidas ou não da ciência, o fato é que a causa que Aristóteles chamava de “final” (“para quê?”) é bem mais duradoura, especialmente no campo da biologia.

Galileu, Newton e outros cientistas dispensaram o “para quê?” nas questões da física. Para eles, a ciência moderna é capaz de explicar o mundo físico em termos puramente “mecanicistas”, sem precisar de noções não-científicas como “desígnio” ou “propósito”. Mas muitos outros cientistas resistiram à intrusão da ciência moderna no território biológico.

O fato é que as “causas mecanicistas” não explicam os “para quês” da natureza biológica. Nem se importam com eles. Para Darwin, a complexidade que pareceria ser o indício de um Criador é apenas o resultado de variações aleatórias durante um longo período de tempo. Assim, banidas da física, as “causas finais” que tinham se refugiado na biologia foram expulsas dela também.

Mas banir as “causas finais” da ciência não é bani-las de toda forma de explicação. Elas podem continuar a prosperar no domínio metafísico – e de fato continuam. Darwin só mostrou que a biologia, como oposta, por exemplo, à metafísica, à teologia ou à ética, deve dispensar as “causas finais” como a física fez nos tempos de Newton. Isto libera os biólogos da necessidade de responder a perguntas sobre o finalismo, mas mantém a humanidade livre para ainda lidar com elas se assim quiser.

O problema, portanto, não é Darwin, e sim a noção moderna de que a teologia só pode discutir o que a ciência não consegue explicar. Se a ciência não consegue explicar a ordem biológica em certo período, as pessoas começam a acreditar que a ordem biológica está a salvo do avanço científico. Ocorre que, se você professar a sua religião a partir das lacunas do conhecimento científico, você inevitavelmente se verá frustrado quando essas lacunas forem preenchidas.

CAUSAS SECUNDÁRIAS E CAUSAS PRIMÁRIAS

Tomás de Aquino fez uma distinção de natureza entre as questões teológicas e natural-científicas.

Tanto a teologia quanto a biologia moderna perguntam: “Por que há seres humanos?”. Mas elas entendem a questão de forma diferente. Para a biologia moderna, a pergunta significa: “Quais são as partes constituintes dos seres humanos?” e “Como e quando os seres humanos entraram em cena?”. E as respostas para essas perguntas (“células e genes” e “variações genéticas aleatórias ao longo do tempo”) são o que Tomás de Aquino chamou de causas “secundárias”. São explicações de coisas na natureza que podem invocar leis probabilísticas, seleção natural ou as respostas que a teoria científica mais recente sugerir.

Mas a teologia pergunta por aquilo que Tomás de Aquino chama de causas “primárias”: “Qual é a fonte do ser?”, “Qual é o significado e o desígnio da criação?”. E nem os registros fósseis, nem a seleção natural respondem a estas questões. Elas não são as ferramentas adequadas para esta tarefa. Confundir questões teológicas e científicas é cometer um erro de categoria.

O conceito teológico de criação não é um conceito científico. O Deus da teologia católica não é, como Agostinho enfatizou, a ignição da existência, mas a sua causa em sentido não-temporal. Deus dá origem e sustenta a existência, inundando-a de sentido, tenha o homem vindo ou não do peixe, do macaco ou da poeira das estrelas, e sejam ou não probabilísticas as leis que regem essa evolução.

São os ideólogos contemporâneos do cientificismo os que “não enxergam o xis da questão” no tocante à evolução. A evolução não refuta Deus, assim como o eletromagnetismo não refuta a consciência moral. E o papa Francisco não foi o primeiro a reconhecer isso.

A propósito: o caso de Chris e seus 40 quilos de lã ajudam a reforçar o que o papa nos recorda em sua encíclica Laudato Si’ sobre a necessidade de tomarmos mais consciência do nosso papel no cuidado da casa comum. A natureza, por conta dos caminhos que nós trilhamos ao longo da nossa história como humanidade, passou a ter, em certo sentido, uma delicada “dependência” das nossas escolhas e ações. E não deveríamos precisar de um carneiro perdido na Austrália para reconhecer isso…

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