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Como é viver a fé cristã sob o regime jihadista

Religion and freedom

© Njegovic / Shutterstock

Vatican Insider - publicado em 09/09/16

Entrevista com Jacques Mourad

Por  Gianni Valente

Um ano depois, o monge descreve as liturgias celebradas nas terras sob o domínio dos jihadistas. E acrescenta que hoje “a Rússia poderia acolher os deslocados e os próprios refugiados que fogem da Síria, para demonstrar seu amor pelo povo sírio”.

Agora, o padre Jacques Mourad encontra-se em Sulymaniaya, no Curdistãoiraquiano. Como sacerdote, presta seus serviços também a milhares de deslocados cristãos que chegam de Qaraqosh, na Planície de Nínive, e que fugiram diante do avanço dos jihadistas do chamado Estado Islâmico. Os mesmos que em maio deste ano o sequestraram no mosteiro de Mar Elián e o segregaram durante meses para depois levá-lo novamente à sua cidade de Quaryatayn, após sua conquista, em companhia de outras centenas de cristãos que, assim como ele, tinham assinado com o Estado Islâmico o “contrato de proteção”.

O caso pessoal do padre Jacques, membro da comunidade monástica fundada pelo padre Paolo Dall’Oglio, voltou a chamar a atenção em outubro do ano passado, quando o monge siro-católico conseguiu afastar-se dos territórios que estavam sob o controle dos jihadistas. Após alguns meses em Roma, onde recebeu cuidados médicos, Mourad quis voltar ao Oriente Médio.

Normalmente, em seu novo lugar de oração e de trabalho ainda pode apreciar uma convivência harmoniosa de povos diferentes, “sob prova apenas devido a motivos que têm a ver com a religião e a política”. Ele ensina o catecismo às crianças, prepara-as para a Primeira Comunhão, com toda a simplicidade do mundo. E recordou, nesta conversa com o Vatican Insider, que há um ano, nestes mesmos dias, celebrou sua primeira missa em estado de semi-prisão, nas terras ocupadas pelo Califado.

Como celebravam a missa sob o regime jihadista?

Em Quaryatayn, conseguimos celebrar a primeira missa no dia 05 de setembro. Os jihadistas do Estado Islâmico nos levaram novamente à nossa cidade (éramos mais de 250 cristãos), depois de nos terem mantido como reféns em diversos lugares. Encontramos um lugar debaixo da terra, em um edifício, em que tempos atrás havia um bairro onde viviam os cristãos. E enquanto celebrávamos a missa juntos (siro-católicos e siro-ortodoxos) fomos surpreendidos com o milagre que estávamos vivendo.

Todos?

Sim. Mas, sobretudo, eu. Depois de quatro meses e 15 domingos de cativeiro, era a primeira missa que eu celebrava. No princípio, o clima era de medo: “E se os jihadistas chegarem? Como vão reagir?” Depois, senti que prevalecia em mima a gratidão, e dava graças Àquele que me havia sustentado em todas essas provações. Também quando me diziam que me degolariam caso não me convertesse. Voltei a pensar muito nessa missa depois que recebi a notícia do martírio do padre Jacques Hamel, assassinado diante do altar em sua paróquia na França.

Na prisão, quando não podia celebrar, o que fazia?

Toda vez, na aurora, cantava a missa inteira recordando-me do coro da minha paróquia, e depois das missas celebradas no mosteiro de Mar Musa… Durante algum tempo também estive preso em Raqqa, cidade em que desapareceu o padre Paolo Dall’Oglio. Quando estive ali, o imaginava em uma situação semelhante à minha, na mesma cidade, talvez a pouca distância, e o sentia próximo. Próximo como no início do nosso caminho monástico comum em Mar Musa, o mosteiro do deserto. Esse quarto onde me mantinham preso tinha uma robusta porta de ferro que me lembrava a porta da minha cela, no mosteiro. Tive uma paradoxal relação de amizade com essa prisão. Não era uma situação cômoda, sobretudo por minha frágil saúde. Mas, não senti angústia. Senti a graça vivida por São Paulo, quando ouviu que o Senhor lhe dizia: “Basta-te a minha graça”. Mesmo no mais profundo da minha fraqueza, era Ele quem revelava a sua força.

Qual é a condição espiritual que prevalece entre os cristãos que se viram envolvidos no conflito sírio?

Eles se perguntavam como tudo isso foi possível. Mas, depois dão graças a Deus, e se colocam em suas mãos. Não vi pessoas que se revoltassem contra Deus.

Nos últimos meses intensificaram-se as intervenções militares contra o Estado Islâmico. O que lhe parece, segundo sua experiência?

Lembro quando os emissários do califado al Baghdaldi chegaram a Mossul, vindos de Quariyatayn, para nos anunciar o que seria de nós, de acordo com o decreto do Estado Islâmico. Era o dia 31 de agosto. Lembro que diziam: “Nós queremos estender o medo no mundo, porque os ‘cruzados’ estão bombardeando a terra do Islã. São eles que atacam, matam crianças e destroem casas. Nós apenas defendemos os nossos territórios e o Islã dos agressores…”. Atualmente, tenho que repetir: os bombardeios servem para aumentar e reforçar este sentimento entre muitos, e nem todos são jihadistas.

Como um cristão pode ver tudo o que acontece ali?

Pode ver o que acontece tendo sempre no olhar a imagem de Cristo cumprindo a nossa salvação, participando do nosso sofrimento. Só desta maneira se pode ver, como cristãos, a tragédia de um país que está morrendo, onde todos são atormentados. Como os milhões de refugiados que perderam tudo e vivem no desespero. E as palavras dos cristãos que sofrem pela guerra podem converter-se nas mesmas de Cristo: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”.

Na Europa, as comunidades muçulmanas são pressionadas para que manifestem claramente sua postura de condenação da violência justificada pela religião…

O medo é um fator que paralisa também a eles. E seu silêncio é visto como um sintoma de cumplicidade com os que espalham o terror e os massacres. Necessita-se de coragem para enfrentar momentos tão difíceis e acabar também com este equívoco.

O Papa Francisco disse que não se trata de uma guerra de religião. O que pensa a respeito?

Cada vez fica mais evidente que as razões das guerras são de ordem econômica. Uma mania feroz e insaciável de acumular, que é, em si mesma, sinal de morte e destruição. O que queremos, além da riqueza, além do poder, além do desenvolvimento moderno? O que mais queremos? O chamado profético do Papa Francisco, que justamente neste momento proclamou o Ano Santo da Misericórdia, move-se neste nível vertiginoso. Necessitamos da paz que vem de Deus.

Na Europa aumenta o desprezo e a rejeição para com os migrantes…

Todos se põem a acusar os migrantes, a colocar neles a culpa por tudo, como fez Adãocom Eva no Paraíso. Reconhecemos e estamos comovidos com o que fizeram os voluntários das organizações europeias e internacionais a favor dos povos atingidos pelas guerras. E vemos que muitos acolhem com espírito fraterno os migrantes. As reações desconsideradas de alguns não representam, claramente, os outros. Ao mesmo tempo, a busca das responsabilidades por tudo o que acontece, e também pelos sofrimentos provocados a povos inteiros, obrigados a fugir de suas casas, leva às decisões políticas europeias e estadunidenses.

Mas, pode-se salvar algo nas intervenções que colocaram em marcha a comunidade internacional?

Agora, nenhum povo pode livrar-se destas guerras. Vemos isso na Síria, no Iraque, no Iêmen. Vemos isso em todas as partes. Há outras potências e outras forças que alimentam guerras longe das próprias fronteiras. Hoje, nada escapa aos verdadeiros analistas. Muitos veem o que acontece por baixo das mesas dos governos e das instituições internacionais. E desde que as potências econômicas e militares se envolveram nas guerras em nome da defesa dos povos e da democracia, os motivos e as ocasiões para novos conflitos se multiplicaram. Evita-se cuidadosamente tomar iniciativas que poderiam ser dadas como certas se as decisões políticas e estratégicas fossem verdadeiramente coerentes com as declarações de princípio. Por exemplo, a Rússia, para demonstrar seu amor pelo povo sírio, poderia abrir suas portas para os deslocados e para os refugiados que fugiram da Síria. E isto permitiria também a diminuição das tensões na Europa em relação à emergência da migração.

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