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O que é a cultura cristã, se o cristianismo se encarnou em todas as culturas do mundo?

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Francisco Borba Ribeiro Neto - publicado em 21/01/13
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É difícil encontrar uma cultura na qual o cristianismo não esteja presente. Mas como distinguir aquilo que é específico da cultura cristã? Como ela se expressa em meio a tamanha diversidade de povos e costumes? O que é a “inculturação”?

É difícil encontrar uma cultura na qual o cristianismo não esteja presente. Mas como distinguir aquilo que é específico da cultura cristã? Como ela se expressa em meio a tamanha diversidade de povos e costumes? Por outro lado, o que é a “inculturação do Evangelho”, da qual a Igreja tanto fala?

 

Não existe apenas uma única cultura cristã, mas sim várias “culturas cristãs”, isto é, culturas nas quais o significado último da realidade foi iluminado pela revelação cristã. Diferentes culturas podem receber esta revelação de modo diverso, gerando diferentes expressões da fé, mas todas têm elementos em comum, que poderão estar mais ou menos amadurecidos em cada contexto histórico e social, como o reconhecimento de um Deus que é Pessoa, que ama e se doa ao ser humano, a afirmação da dignidade inviolável da pessoa humana, o valor da solidariedade, etc. Da mesma forma, podemos dizer que existem culturas que não são cristãs e até anticristãs, na medida em que se contrapõem a estes elementos comuns das culturas cristãs.

 

O que entendemos por cultura?

 

Todas as culturas são constituídas por elementos subjetivos (visão de mundo, crenças, princípios morais, representações ideológicas, etc.) e elementos objetivos (as construções materiais, as obras de artes, as leis, a forma de organizar a sociedade). Ao longo da história, se formaram grandes tradições culturais que costumamos denominar como civilizações (por exemplo: grega, chinesa, ocidental). A civilização ocidental, extremamente complexa e plural, apresenta várias manifestações culturais. Podemos, por exemplo,distinguir a cultura ocidental medievalda liberal burguesa,ou a cultura popular (produção cultural mais difundida entre a população)da erudita (obras consagradas ao longo da história, geralmente mais sofisticadas e elaboradas que as demais).

 

A cultura ocidental, que se desenvolveu na Europa e nas Américas, é a cultura cristã por excelência?

 

Existe um vínculo profundo entre a cultura ocidental e o cristianismo, a tal ponto que não é possível separar a história do cristianismo da história da cultura ocidental. A maior parte dos valores professados pela sociedade ocidental são valores cristãos e/ou que adquiriram sua forma atual no contexto do cristianismo. Contudo, mesmo no Ocidente, muitos valores cristãos tiveram que ser amadurecidos ao longo dos séculos, como a tolerância e o respeito ao diferente. Além disso, a cultura ocidental moderna muitas vezes se afastou de sua matriz religiosa, deturpando muitos valores cristãos. Os valores da dignidade e da liberdade da pessoa humana, por exemplo, aparecem deturpados no individualismo e na autonomia sem limites da sociedade atual.

 

Como a doutrina da Igreja vê as várias culturas humanas?

 

Para a doutrina católica, as culturas são uma manifestação necessária da natureza humana. A pessoa humana só se realiza plenamente por meio da cultura (cf. Gaudium et Spes, nº 53).  Podemos sobreviver e ser o que somos apenas por meio de uma interação entre nossa natureza orgânica e instintiva e o contexto cultural no qual vivemos. Mesmo que todos os elementos humanos estejam presentes, não existe realização do humano sem a cultura. Assim, a doutrina católica se afasta daquelas escolas de pensamento que pregam uma ruptura entre natureza humana e cultura, que propõem a satisfação da instintividade – desvinculada de qualquer compromisso ético ou cultural – como única forma de realização humana. A Igreja sabe que a pessoa humana é, em si mesma, contraditória, nascida para a graça, mas capaz do pecado. As culturas refletem este aspecto contraditório do ser humano: buscam sempre a verdade, o bem e a beleza, mas podem se desvirtuar e não estar direcionadas para seus ideais últimos.  Por isso, o trabalho cultural não é, para o cristão, uma mera condenação, mas sim uma purificação, que permite recuperar o sentido verdadeiro de cada cosia e rejeitar o errado.

 

O cristianismo pode revelar o sentido último de toda a realidade em qualquer cultura humana? Esta não é uma pretensão etnocêntrica dos cristãos, que não querem reconhecer a diversidade cultural e os valores das demais culturas?

 

Todos os homens e mulheres do mundo compartilham um conjunto de particularidades e exigências que caracterizam o ser humano.Todos aspiramos por felicidade, liberdade, reconhecimento da dignidade pessoal e amor. Mesmo que alguém não tenha consciência destas aspirações universais, em função de uma história pessoal na qual elas não foram apresentadas, irá aderir a elas quando as conhecer, pois correspondem profundamente a sua humanidade. É isto que a tradição cristã chama de “lei natural” e de “natureza humana”. O cristianismo pode ser universal, ser proposto a todas as culturas e valorizar a todas elas na medida em que dialoga com estes valores universais e responde a estas exigências profundas do coração de todos os seres humanos.

 

Por que a Igreja fala de inculturação do Evangelho?

 

Desde seus primórdios, a proposta evangélica nunca foi a de substituir uma cultura não cristã por outra cristã, mas sim de fazer com que a Boa Nova cristã fecundasse as outras culturas, mostrando o significado de suas tradições e de seu modo de ser e as tornando assim mais humanas. Este entrar nas culturas, para crescer dentro delas e com elas, é o que a Igreja chama de inculturação do Evangelho. É diferente de um processo de aculturação, na qual um povo é submetido à cultura de outro, perdendo sua identidade original. O maior exemplo de inculturação do Evangelho aconteceu no Império Romano, quando o cristianismo se inculturou na civilização helênica, criando a cultura ocidental. 

 

Nas Américas, na África e no Extremo Oriente, a ação dos missionários procurou ser um trabalho de inculturação, muitas vezes bem sucedido. Contudo, a dominação colonial europeia levou à destruição de muitas culturas e à aculturação dos povos não europeus, ofuscando e até mesmo destruindo a obra de inculturação e de valorização das outras culturas realizadas pelos missionários. Na América do Sul, o caso mais emblemático é o dos Sete Povos das Missões (séculos XVII e XVIII), onde missionários jesuítas ajudaram os índios guaranis a construir uma organização social que preservava os valores da cultura indígena e a autonomia dos índios, abraçava o Evangelho e incorporava os conhecimentos técnicos e científicos da sociedade europeia. A sociedade guarani de Sete Povos foi muito desenvolvida e rica para o seu tempo e acabou sendo destruída pelo poder colonial português e espanhol.