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Se Deus é justo, por que não partimos todos das mesmas condições?

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Francisco Catão - publicado em 24/01/13
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Uns nascem ricos, outros, pobres; uns nascem com saúde, enquanto outros vêm ao mundo com doenças ou deficiências… Se Deus é justo e faz tudo por amor a nós, por que Ele não criou todos com as mesmas condições?

Deus ultrapassa todos os nossos conceitos. É incompreensível e inefável. O “se” não cabe nunca quando se trata de Deus. Sabemos que Deus é, mas não sabemos quem é nem como é, o diz Tomás de Aquino, logo no início da Suma Teológica (1ª Parte, questão 3, prólogo). Não temos, por isso, possibilidade de avaliar a justiça divina, de que a nossa é pálido reflexo. O princípio divino da criação não é a justiça, mas a sabedoria e o amor, a “inteligência amorosa”, se o quisermos designar num vocabulário mais moderno.

 

Não partimos todos das mesmas condições.

 

O mundo foi criado por Deus. A fé o professa e a razão o admite. Somos capazes de afirmar racionalmente que tudo procede de um primeiro princípio, “a que denominamos Deus”, como Tomás de Aquino se expressa em suas famosas “cinco vias para demonstrar a existência de Deus” (Suma Teológica, Iª Parte, questão 2, artigo 3).

 

Mas somente a fé nos ensina que a criação se dá no tempo, por uma decisão livre, sábia e amorosa de Deus. Para a Revelação, acolhida como Palavra de Deus na fé, não importa tanto o modo como nos representamos a origem do universo. 

 

Importa, sobretudo, admitir como verdade fundamental que Deus tudo criou pessoalmente, por um ato de inteligência e de amor. Pode ter partido de uma explosão inicial de energia ou de uma espécie de matéria inerte. O modo como procedeu será exposto como melhor convenha ao estágio de nossos conhecimentos, segundo a visão que tenhamos do cosmos. São representações da razão. 

 

Pela fé sabemos que Deus criou os seres na diversidade de suas características próprias, especialmente os homens e as mulheres, na sua originalidade de criaturas espirituais, tendo cada um seu próprio perfil, no seio de sua unidade específica.

 

O princípio da diversidade é a sabedoria de Deus e seu amor.

 

O princípio divino da criação não é, portanto, a justiça, mas a sabedoria e o amor, a “inteligência amorosa”, se o quisermos designar num vocabulário mais moderno.

 

A sabedoria se demonstra na percepção harmoniosa e sinfônica da diversidade em todas as ordens, captada numa unidade superior, que reconhece a cada um o seu valor próprio, como uma contribuição para a perfeição do conjunto do universo e da história.

 

O amor a todos reúne num mesmo amplexo, que sustenta cada um como é e deseja ser, superando ao mesmo tempo o nivelamento por baixo, que desconhece os valores, como a imposição de uma excelência que marginaliza os menos dotados.

 

Não partimos todos das mesmas condições, como somos diferentes uns dos outros, expressões diversificadas da sabedoria divina, todos, porém, somos sustentados e abraçados por um mesmo e único amor, o Espírito de Deus.

 

A justiça não é violada, pois tudo que somos e temos é dom de Deus, feito a cada um na sua individualidade, para que possa se tornar plenamente o que é chamado a ser e venha a desempenhar o papel que dele se espera na sinfonia universal. Na expressão bíblica, tudo é feito para a glória de Deus – segundo as iniciais latinas que se usa com frequência, UIOGD: ut in omnibus glorificetur Deus (1ª Carta de Pedro, 4,11).

 

Caminhamos por caminhos diferentes.

 

O que caracteriza a vida humana é que ela constitui o caminhar real de cada um de nós. Criados à imagem de Deus, como seres humanos, não permanecemos no estado em que somos feitos.

 

Nossa vida humana não se reduz ao resultado da evolução de um ser submetido à diversidade dos fatores de ordem física, biológica, psicológica, cultural, social, econômica ou política que o determinam, no tempo e no espaço. Não se negam as múltiplas influências que tenham sobre cada um de nós o ambiente físico, mental, cultural e histórico em que nascemos e nos desenvolvemos, mas, quaisquer que sejam as circunstâncias em que vivemos, somos chamados a nos tornar o que fizermos de nossa vida.

 

Aqui reside o que tem de próprio o ser humano. Os seres materiais, vivos e até animais surgem, nascem e se desenvolvem como resultado dos muitos fatores que os influenciam.  O ser humano, além disso, afirma-se e se desenvolve como humano a partir de uma decisão sua, que vai progressivamente determinando a direção que segue em sua vida, até o momento de entregá-la, queira ou não, nas mãos de Deus.

 

A vida humana é chamada a ser polarizada pela busca da verdade, do belo e do bem, através da escolha cotidiana dos caminhos para alcançá-los, em que são muitas as possibilidades de se tornar escravo de ilusões, vítima de temores imaginários ou do canto sedutor das sereias.

 

Chegaremos todos ao mesmo porto?

 

Uma das grandes ilusões a desmascarar seria pensar que assim como a justiça de Deus deveria fazer com que todos partissem das mesmas condições, deveria fazer também com que todos chegassem ao mesmo termo.

 

A justiça da origem é a mesma do fim. Se houvesse nivelamento,  haveria nivelamento igual na origem, no meio e no fim. Se o que comanda a ação divina é a inteligência amorosa, há inteligência amorosa na origem, no meio e no fim.

 

A pergunta feita no início esconde, pois, uma visão absurda de Deus, determinista e fatalista. Na verdade, desconhece Deus. Concebe-o quase como um apêndice do mundo e do homem, impondo-lhe a forma de pensar do homem. “Seus caminhos não são os meus caminhos” (Isaias,55,8), dizia Deus pela boca do profeta.

 

Desconhece igualmente a originalidade da criatura espiritual, chamada a viver com Deus a aventura de uma relação pessoal. Sob todas as suas formas, o amor é imprevisível. Nada mais certo do que o amor de Deus por nós, manifestado pelo simples fato de que existimos. Porém, nada mais aventureiro do que a nossa fidelidade ao amor, posta à prova em cada momento.

 

Totalmente dependentes de Deus, existimos para estar em comunhão com o Ser primeiro, sábio e bom, que realiza com amor sua obra inteligente e amorosa de se comunicar como dom de si mesmo a todos aqueles que o reconhecem como Deus se aceitam a si mesmos como pessoas também inteligentes e livres, correspondendo ao impulso profundo de seu coração de se colocar nas mãos do Amor e de se dar aos outros com o mesmo movimento de amor com que se dão a Deus.

 

“Ao entardecer dessa vida seremos todos julgados sobre o amor.”

 

A expressão é de São João da Cruz (†1591), numa de suas primeiras obras, Ditos de luz e amor. O amor é nossa vida. O amor de Deus correspondido com amor, nosso caminho. A unidade de todos nós no amor em Deus é o porto comum, em que todos nos encontraremos, guardando a originalidade com que cada um de nós foi criado e a forma que nos damos através de nossa vida, do primeiro ao último ato de liberdade, de amor.

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