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Se Adão pecou, que culpa tenho eu?

Adão e Eva, vitral

© SHUTTERSTOCK

Aleteia Vaticano - publicado em 12/02/13

Sabemos que Jesus veio ao mundo para nos salvar de todo pecado, especialmente do pecado original, com o qual nascemos. Mas, se foram Adão e Eva que cometeram o pecado original, o que eu tenho a ver com isso? Como posso nascer com um pecado que nunca cometi?

A doutrina do pecado original não foi deixada de lado, muito pelo contrário – ainda que haja um discernimento à luz dos novos dados oferecidos pela ciência. De fato, tanto Bento XVI como João Paulo II ressaltaram sua importância capital na fé cristã e na compreensão da natureza humana e do problema do mal no mundo. 

O pecado original não tem nada a ver com o sexo nem está escrito nos genes.

A doutrina do pecado original é hoje, para muitos, uma dificuldade: desacreditada pelo racionalismo e aparentemente negada pela ciência, cada vez está menos presente na catequese e nas homilias. No entanto, João Paulo II e Bento XVI recordaram fortemente que esta doutrina constitui uma “pedra angular” do cristianismo.

É difícil compreender como os homens estariam carregando o castigo merecido por um casal – Adão e Eva – cuja existência pertence ao mundo dos mitos. O pecado original é herdado? Que gene o transmite? Há contágio durante o ato sexual, como diziam alguns pensadores? Mas, então, a sexualidade é um pecado? O que significa a “maçã”? Por acaso a serpente não é um sinal fálico para os antigos cananeus? Além disso, se é hereditário e se apaga com o Batismo, por que o filho de pais batizados tem de ser batizado também?

O erro está em pensar no pecado de Adão como em uma falta pessoal: com esse primeiro pecado histórico do homem, entrou no mundo o poder do mal, o poder diabólico, que desde então tem um domínio tal sobre o gênero humano, que só a morte de Cristo podia romper.

Em que consistiu esse “pecado original”? O Catecismo da Igreja Católica desenvolve isso nos pontos 397 a 412: é a desconfiança do homem na bondade do seu Criador, é separar-se dele.

Este “estado de pecado” é transmitido aos homens não porque estes são gerados sexualmente, ou seja, a causa não é o sexo – porque o sexo seria mau, segundo alguns –, mas o próprio fato de ser gerado, de ser homem (a palavra que o Magistério usa é “propagação”). As pessoas, devido àquele pecado concreto, desde o primeiro momento em que começam a sua existência, se veem privadas do equilíbrio original para o qual foram criadas, e desse “estado” de desequilíbrio interior, de submissão ao poder do mal, não podem sair por si mesmas.

O capítulo 3 do Gênesis não faz um relato histórico da origem do homem, mas explica uma verdade religiosa e antropológica: existiu uma Queda que condiciona todo o gênero humano.

Segundo os exegetas, os primeiros capítulos do Gênesis foram escritos aproximadamente na época do desterro, compilando diversas tradições anteriores, o que significa que evidentemente não foram compostos como uma crônica histórica. Além disso, alguns dos seus elemento recordam textos mitológicos da Babilônia e da Pérsia.

No entanto, o sentido do relato efetivamente introduz verdade religiosas totalmente novas com relação às demais religiões: ao revisar os relatos mitológicos, a relação entre o homem e a divindade, ou a explicação da origem do mal, percebe-se que são diferentes dos outros.

O Gênesis foi composto em uma época em que o pensamento judaico, à luz da Revelação de Deus, se pergunta pelo problema do mal. E o Gênesis enuncia, a respeito disso, uma série de verdades fundamentais: Deus criou o homem bom e livre, à sua imagem e semelhança, e destinado à complementariedade entre homem e mulher. Mas o homem utilizou a liberdade que Deus lhe havia dado para rebelar-se contra Ele, por instigação de um poder maligno, e, desde esse momento, caiu no poder desse mal.

O Verbo de Deus se fez carne precisamente para libertar o homem desse poder: só o Criador tinha a capacidade de recompor a sua própria criatura. Esta doutrina é exposta especialmente por São Paulo, em 1 Cor 15, 21-22.45-49, Rm 15, 12-21, Ef 2, 1-3, e aparece também no Apocalipse (12, 9-11).

A Igreja defendeu esta doutrina desde os primeiros séculos, contra os desvios teológicos que a colocavam em dúvida.

Esta doutrina do pecado original está presente desde os primeiros Padres da Igreja (Justino, Irineu etc.). Tal doutrina foi se desenvolvendo pouco a pouco; ainda não havia clareza sobre como se transmitia este pecado (por geração, por propagação etc.) nem sobre o alcance do dano provocado no homem (até que ponto a sua natureza estava danificada). Um testemunho disso é o batismo de crianças pequenas, já desde o começo do cristianismo.

No século V, surgiu a heresia pelagiana, que afirmava que o homem é capaz de alcançar a virtude por si mesmo e que, portanto, não é escravo do mal, mas realiza livre e conscientemente os pecados pessoais, por conseguinte, negava o pecado original e culpava Adão somente por dar “mau exemplo” aos homens. Para esta heresia, Jesus não passava de um mestre de vida, mas nada além disso.

O grande opositor à heresia pelagiana foi Santo Agostinho, o primeiro a sistematizar a doutrina do pecado original, reafirmando a necessidade da graça. O Magistério a definiu nos concílios de Cartago (418) e Orange (529). Posteriormente, São Tomás de Aquino e Santo Anselmo da Cantuária aprofundariam na sua compreensão.

Ainda que alguns pensadores medievais, como Abelardo, tenham negado a doutrina do pecado original tal como a Igreja a entendia, não se produziu uma verdadeira controvérsia com relação à Reforma luterana. Lutero, levando o pensamento de Santo Agostinho ao extremo, afirma que a natureza humana está irremissivelmente perdida e que o Batismo não apaga o pecado original. Portanto, o homem permaneceria em poder do pecado para sempre e só se salvaria pela fé.

A esta heresia respondeu o Concílio de Trento, em uma declaração que, durante muitos séculos, foi considerada a palavra definitiva da Igreja sobre o tema, que afirma: Adão e Eva, pais da humanidade, cometeram um pecado que priva os homens da comunhão com Deus e que se transmite a todo o gênero humano. Mas esta natureza, caída mas não destruída, é restabelecida por Cristo, com a ajuda da sua graça redentora.

Nos séculos XIX e XX, essa doutrina é novamente questionada, mas desta vez a partir da ciência e do racionalismo.

Nos séculos XVIII e XIX, esta doutrina foi rejeitada pelo racionalismo ilustrado e relegada à mera superstição, como os demais princípios cristãos: o homem “das luzes” explica sempre a origem do mal como algo intrínseco ao homem (Hobbes: “O homem é um lobo para o homem”) ou como algo completamente alheio a ele que o condiciona (Rousseau e o “bom selvagem”, Marx e a alienação social). Mas estes questionamentos externos não foram tão demolidores como os internos: no século XX, especialmente entre os anos 50 e 70, abalaram-se as estruturas desta doutrina, devido aos novos avanços da ciência.

Em primeiro lugar, os avanços na ciência genética e na arqueologia apontam para a hipótese da evolução das espécies (frente ao criacionismo), assim como para a hipótese do poligenismo (isto é, de que não procedemos de um só casal humano). Em segundo lugar, a exegese e a hermenêutica moderna permitem conhecer melhor como se compôs o livro do Gênesis, descartando a sua historicidade. Muitos pensadores interpretaram que estas descobertas invalidavam a doutrina do pecado original – entre eles, é especialmente conhecido Teilhard de Chardin.

O Papa Pio XII enfrentou esta crise com a encíclica “Humani generis”, na qual, ainda que admitisse que o poligenismo era “dificilmente conciliável” com a doutrina do pecado original, não o negava de forma absoluta. Posteriormente, o Concílio Vaticano II, na “Gaudium et spes” (13, 18, 37) e na”Lumen Gentium” (2), sem entrar no debate, reafirma a doutrina em seus pontos essenciais.

O Magistério da Igreja, especialmente com os últimos papas, continua insistindo na importância capital deste dogma para a fé cristã, sem o qual não se compreende o mistério do mal no mundo nem a redenção realizada por Cristo.

Longe de ser algo obsoleto, é um tema atualíssimo, como demonstra a clareza com que os papas das últimas décadas falaram disso. Paulo VI falou concretamente do tema duas vezes: em um simpósio organizado pela Universidade Gregoriana (1966) e nos artigos 16, 17 e 18 de “O Credo do Povo de Deus” (1968).

João Paulo II, depois de terminar seu famoso ciclo de catequeses sobre a teologia do corpo, dedicou dois anos a um ciclo sobre o Credo, tratando da questão do pecado original com muita profundidade (outubro de 1986). É muito importante, com relação a isso, a catequese sobre a Queda que ele faz na encíclica “Mulieris dignitatem”. Por outro lado, o Catecismo da Igreja Católica, fruto do seu pontificado, aborda o tema de maneira muito completa.

O que surpreende é o extraordinário interesse que o então cardeal Ratzinger – agora Bento XVI – teve pela doutrina do pecado original, chegando inclusive a defini-la como “a chave” para o futuro da teologia e do pensamento cristãos, e inclusive para o diálogo com o mundo contemporâneo. Para ele, o pensamento católico terá incidência na medida em que voltar a esta doutrina.

Por que tanta importância? Porque a existência do pecado original condiciona a antropologia, a compreensão do homem e a redenção cristã.

O cardeal Ratzinger, em uma catequese sobre o tema em Munique (1981), mostrou que esta questão é “vital” para a Igreja. Chegou a dizer que, sem ela, toda a Revelação cambaleia e que era necessária uma nova “teologia da criação”, que iluminasse o pensamento moderno.

Em 1985, no livro-entrevista “Informe sobre a Fé”, do jornalista italiano Vittorio Messori, ele afirma que sua intenção era dedicar seu sonhado retiro a pesquisar sobre este tema, ao qual também dedicou o livro “No início Deus criou”.

Já como Papa, dedicou três audiências ao tema, em dezembro de 2008, falando também disso no livro-entrevista “Luz do mundo”, de Peter Seewald. Sob o seu pontificado, o tema foi objeto de pelo menos dois congressos internacionais (Roma 2005 e Bolonha 2007).

Referências:

Este texto se baseia em “Antropologia do homem caído”, do teólogo espanhol J. A. Sayés (ed. Edicep).

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