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Como se furtava em 1655

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Aleteia Vaticano - publicado em 23/04/13

O “Sermão do Bom Ladrão” foi proferido pelo Pe. Antônio Vieira em 1655, na Igreja da Misericórdia, em Lisboa, perante Dom João IV e os dignitários do reino

Dom Redovino Rizzardo
Bispo de Dourados (MS)

O “Sermão do Bom Ladrão” foi proferido pelo Pe. Antônio Vieira em 1655, na Igreja da Misericórdia, em Lisboa, perante Dom João IV e os dignitários do reino, juízes, ministros e conselheiros. Talvez valha a pena relembrá-lo para verificar se houve progressos em assunto de tamanha envergadura como é o roubo! A homilia se prolongou durante horas. Permito-me, por isso, trazer apenas alguns de seus tópicos.

«Navegava Alexandre em uma poderosa armada pelo mar Eritreu a conquistar a Índia. E como fosse trazido à sua presença um pirata que por ali andava roubando os pescadores, repreendeu-o muito de andar em tão mau ofício. Porém ele, que não era medroso nem lerdo, respondeu assim: “Basta, senhor, que eu, porque roubo em uma barca, sou ladrão, e vós, porque roubais em uma armada, sois imperador?”. Assim é: o roubar pouco é culpa, o roubar muito é grandeza: o roubar com pouco poder faz os piratas, o roubar com muito, os Alexandres.

O ladrão que furta para comer, não vai nem leva ao inferno: os que não só vão, mas levam, são outros ladrões, de maior calibre e de mais alta esfera; os quais, debaixo do mesmo nome e do mesmo predicamento, distingue muito bem São Basílio Magno. Não só são ladrões, diz o santo, os que cortam bolsas ou espreitam os que se vão banhar para lhes colher a roupa. Os ladrões que mais própria e dignamente merecem este título são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos e legiões, o governo das províncias, a administração das cidades, os quais já com manha, já com forças, roubam e despojam os povos. Os outros ladrões roubam um homem, estes roubam cidades e reinos. Os outros furtam debaixo do seu risco, estes sem temor nem perigo; os outros, se furtam, são enforcados, estes furtam e enforcam.

Encomendou el-rei Dom João a São Francisco Xavier o informasse do estado da Índia. E o que o santo escreveu de lá, sem nomear ofícios nem pessoas, foi que o verbo “roubar” na Índia se conjugava por todos os modos. A frase parece jocosa em negócio tão sério, mas falou o servo de Deus como fala Deus, que, numa palavra, diz tudo. O que eu posso acrescentar, pela experiência que tenho, é que não só do Cabo da Boa Esperança para lá, mas também das partes de aquém se usa igualmente a mesma conjugação. Conjugam por todos os modos o verbo “roubar”, porque furtam por todos os modos da arte.

Tanto que lá chegam, começam a furtar pelo modo indicativo, porque a primeira informação que pedem aos práticos é que lhes apontem e mostrem os caminhos por onde podem abarcar tudo. Furtam pelo modo imperativo, porque, como têm o império, todo ele aplicam despoticamente às execuções da rapina. Furtam pelo modo mandativo, porque aceitam quanto lhes mandam e, para que mandem todos, os que não mandam não são aceitos. Furtam pelo modo optativo, porque desejam quanto lhes parece bem e, gabando as coisas desejadas aos donos delas, as fazem suas. Furtam pelo modo conjuntivo, porque ajuntam o seu pouco cabedal com o daqueles que manejam muito, e basta só que ajuntem a sua graça, para serem quando menos meeiros na ganância. Furtam pelo modo potencial, porque, sem pretexto nem cerimônia, usam de potência. Furtam pelo modo permissivo, porque permitem que outros furtem, e estes compram as permissões. Furtam pelo modo infinitivo, porque não tem fim o furtar com o fim do governo, e sempre lá deixam raízes em que se vão continuando os furtos.

Estes mesmos modos conjugam por todas as pessoas, porque a primeira pessoa do verbo é a sua, as segundas os seus criados, e as terceiras quantas para isso têm indústria e consciência.

Finalmente, nos mesmos tempos, não lhes escapam os imperfeitos, perfeitos, mais-que-perfeitos, e quaisquer outros, porque furtam, furtaram, furtavam, furtariam e haveriam de furtar mais, se mais houvesse. Em suma, que o resumo de toda esta rapante conjugação vem a ser o supino do mesmo verbo: a furtar para furtar. E quando eles têm conjugado assim toda a voz ativa, e as miseráveis províncias suportado toda a passiva, eles, como se tiveram feito grandes serviços, tornam carregados de despojos e ricos, e elas ficam roubadas e consumidas…».

Qualquer semelhança com a realidade atual será mera coincidência? Se você tiver dúvidas – mas existe alguém que as tenha? – aguarde o próximo artigo!

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