“Adultos responsáveis” trabalham em fábricas desumanas no exterior fazendo nossos iPads, ou suam diante das câmeras fornecendo nossa pornografia
A eleição de Papa Francisco em 2013 despertou velhos e estéreis debates sobre qual sistema econômico o Vaticano deve defender: o socialista, os sistemas sociais predominantes na Europa ou o neoliberal, orientado ao mercado, que prevaleceu durante a maior parte da história americana. Aqueles que usaram o amor do Papa Francisco pelos pobres para jogar no lixo a economia de mercado estão fazendo algo muito comum na cobertura da mídia sobre a Igreja: perdendo totalmente o foco.
As declarações do Papa Francisco sobre a trágica realidade da pobreza extrema nos países em desenvolvimento, bem como sobre a pobreza moral nos países ricos, nunca tiveram por objetivo guiar os especialistas em matéria de políticas públicas. Sim, existem implicações políticas em muitos dos ensinamentos da Igreja, mas não é por isso que a Igreja ensina. Você pode deduzir, a partir do convite cristão à castidade, algumas conclusões sobre como regular a mídia, por exemplo, mas isso não significa que, toda vez que o Papa reafirma um ensinamento sobre a sexualidade humana, ele está pressionando para que haja leis de censura. Sua primeira reação diante de uma exortação não deveria ser ligar para o seu congressista, mas esquadrinhar seu coração.
Embora a Igreja tenha se envolvido com o governo no início – com a conversão de Constantino –, ela nunca teve como principal dever dar diretrizes aos reis, ou dizer aos cidadãos como votar. Ou seja, na melhor das hipóteses, um papel terciário da Igreja é, às vezes, oferecer ajuda quando a consciência de um governo se torna tão degradada que a razão natural não consegue fazer seu trabalho, e então a fé tem de intervir e tapar os buracos.
Exemplos clássicos incluem a repreensão de Santo Ambrósio a Teodósio pelo massacre de cidadãos rebeldes; a Igreja na Espanha do século XVI insistindo em que os índios do Novo Mundo eram plenamente humanos e não deveriam ser escravizados; bispos alemães condenando a eutanásia nazista; e o Papa João Paulo II denunciando tanto a tirania comunista como a "cultura da morte" ocidental.
Mas esses atos de profecia política por parte de bispos e papas se destacam porque eles não são a norma. É dever dos leigos – governantes e cidadãos – informar suas consciências com princípios morais sólidos, para estabelecer as políticas públicas. Crentes religiosos e dirigentes devem certificar-se de que esses princípios são sólidos, e interpelar a cultura quando forem pervertidos ou ignorados. Isso é o que os cristãos abolicionistas fizeram no século XIX, e os líderes dos direitos civis, no XX. Tal movimento na Polônia derrubou o bloco soviético, acabou com a Guerra Fria, e pode ter salvado a nossa espécie de uma guerra nuclear global. Então, talvez – apenas talvez – as pessoas de fé mereçam ser ouvidas.
De fato, o próprio nome do movimento operário (Solidariedade) que derrubou o primeiro dominó na Europa Comunista foi emprestado de um termo da Doutrina Social da Igreja. Designa a força que une a sociedade em seu conjunto, nos incentiva a tratar uns aos outros com justiça, mesmo quando o governo não está vigiando, lubrifica o motor altamente eficiente da economia de mercado com o óleo da bondade humana. Muitas vezes, especialmente na Europa, a palavra "solidariedade" é banalizada, como se fosse sinônimo de socialismo. Mas palavras como "justiça", "amor" e "liberdade" são também muitas vezes tergiversadas.
O princípio fundamental da solidariedade, na prática, é simples e atemporal – como diz a Regra de Ouro: “faça aos outros o que gostaria que fizessem a você”. Esta máxima ética, que Jesus citou do Antigo Testamento, existe de alguma forma em todas as culturas e corações. Ela é tão onipresente que é fácil para nós assumir que é universalmente aceita – pelo menos na teoria – embora muito raramente praticada.
Mas, na verdade, as coisas são mais obscuras do que isso. Temos outra máxima, que penetrou na alma ocidental via filósofos como Maquiavel e Hobbes – o princípio do “consentimento adulto”. Toda vez que alguém usa esta frase, está dizendo (disfarçadamente), que nenhum de nós é responsável pelos outros. Se as pessoas fazem escolhas estúpidas, isso não é problema nosso. Mesmo se fomos nós que as levarmos a fazer tais escolhas, se as exploramos pessoal, econômica ou sexualmente – ainda assim estamos imunes: "ela era uma adulta responsável"; "esse babaca deveria ter verificado melhor”, dizemos a nós mesmos, entre risadas.
Em vez de uma ética que se baseia na reciprocidade, em admitir o valor único de cada pessoa, porque é um ser humano, valorizamos um ethos cruel e pragmático, que dá com os ombros perante o sofrimento e as dificuldade, como um impulso darwiniano de atacar os erros do nosso próximo. Assim, "adultos responsáveis" trabalham em fábricas desumanas no exterior fazendo nossos iPads, ou suam diante das câmeras fornecendo nossa pornografia; outras acordam sozinhas na cama onde nós as deixamos quando terminam nossos desejos. Nenhum direito individual foi violado, nenhum crime cometido ou contrato quebrado – assim a consciência secular moderna não tem nada significativo a dizer.
O que não nos atrevemos a perceber é que a confiança humana e o senso básico de preocupação com nossos semelhantes são a cola que mantém unida uma sociedade livre. A anarquia que surge de sua ausência é muito terrível para ser tolerada, assim, em auto-defesa, as pessoas vão abraçar a tirania. Chega sorrateira a tirania. Ela se oferece para controlar os capitalistas irresponsáveis, capacitando burocratas controladores, para silenciar a crueldade com suas censuras. Só não exige que desenvolvamos as virtudes naturais. Só se pode falar de "virtude" em uma festa em Manhattan ou em uma sala dos professores.
As tentativas dos marxistas, feministas e outros ativistas de limpar um pouco da bagunça que fazemos mediante a fixação de "injustiças estruturais" soam vazias aos nossos ouvidos; as consciências dessas pessoas repousam sobre costumes cristãos roubados, que suas ideias corroeram como ácido. Na verdade, qualquer ideologia que incide sobre as relações de poder (em vez de amor e justiça) está programada para no fim liquidar todos os valores humanos. O Muro de Berlim e os gulags foram plantados como inofensivas flores no dia em que Karl Marx reduziu o homem a um animal sem Deus, econômico. Quando Simone de Beauvoir adotou a ética de seu mestre, Jean-Paul Sartre, decretando que as mulheres se tornassem insensíveis como um playboy francês, ela estava construindo em sua mente todas as clínicas de aborto do futuro. Ideias têm efeitos colaterais.