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A JMJ e o papa: um balanço para o Brasil e para o mundo

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Francisco Borba Ribeiro Neto - publicado em 05/08/13

Mesmo sem procurar isso, o papa mostrou-se como uma liderança mundial, alguém que lança uma luz sobre a política e o comportamento dos políticos

Terminada a JMJ, três grandes questões aparecem para quem acompanha a vida da Igreja: (1) qual imagem de Igreja e de juventude católica latino-americana caracterizou o evento? (2) considerando as indicações dadas por Francisco neste período, quais deverão ser as preocupações e linhas de ação de seu pontificado? (3) qual o legado latino-americano que o papa leva para a Igreja mundial?

A consagração dos movimentos e novas comunidades latino-americanas

Para quem conhece a realidade dos jovens católicos na América Latina, fica evidente que os movimentos e novas comunidades nascidos no continente determinaram a forma da Jornada. Muitos outros deixaram suas marcas na Jornada, mas sempre se adequando à linguagem e ao modo de ser destas novas realidades da Igreja latino-americana.

No passado, a sociedade latino-americana seguia majoritariamente um “cristianismo popular”, fortemente sincrético e frequentemente distante da Igreja institucional, mas que se autodenominava católico romano. A evasão de fiéis, mais que um êxodo de católicos inseridos na vida eclesial, corresponde à migração destes fiéis a outras denominações cristãs. Se de um lado esta evasão reflete a dificuldade da instituição eclesial em acompanhar e acolher a toda a população dita católica do continente (razão que leva o papa a pedir que também aqui os católicos “vão para a rua”), por outro lado cria comunidades mais conscientes da própria identidade e sintonizadas com o magistério. Esta juventude que compareceu à Jornada mostra que a Igreja mantém sua vitalidade e sua capacidade de reprodução social na América Latina, mesmo que, numa sociedade plural e diversificada, o catolicismo latino-americano dificilmente voltará a ser percentualmente tão numeroso quanto foi no passado.

Quais características, valores e dificuldades isso traz para a Igreja?

1) Um modo de ser alegre e jovial. A característica mais evidente destes grupos é a sua alegria e a sua jovialidade. Uma Igreja quase que “dançante”, que se vale de todos os estilos musicais em voga entre os jovens, acostumada a efusivas demonstrações de fé e amor a Cristo. Comunicativos e expansivos, estes jovens têm grande capacidade de anúncio missionário, estão conectados às novas mídias e se organizam com facilidade em redes sociais. Enfrentam a dificuldade para o silêncio e para a oração silenciosa, para o recolhimento místico e para o estudo que podem ser esperados numa realidade como esta. Contudo, seria um erro pensar que esta dificuldade é uma impossibilidade, pois vários entre estes jovens tem uma intensa vida interior, inclusive apreciando formas tradicionais de oração e de espiritualidade, como o uso da Liturgia das Horas, os Exercícios Espirituais Inacianos, a vida contemplativa dos mosteiros, etc.

2) O apreço pelos valores da tradição. Apesar das pesquisas de opinião frequentemente mostrarem que a população católica não concorda (ou não segue) os valores da tradição católica, as lideranças e os jovens mais engajados nestes movimentos costumam estar em sintonia com estes valores, particularmente nos temas ligados á defesa da vida e à bioética. As estatísticas refletem em grande parte a diferença entre o que se pode chamar de “núcleos duros” destes grupos e seus militantes eventuais. Esta posição reflete não só uma obediência ao magistério, mas é reflexo da crise existencial que atinge grande parte da juventude atual. Num mundo de incertezas, inseguranças e frustrações, valores que envolvam um amor perene, uma família estável, o reconhecimento da dignidade da pessoa tendem a ser muito mais valorizados que eram para as gerações anteriores, muito mais preocupadas com a afirmação da autonomia individual.

3) O desafio formativo, abordado pelo papa particularmente na questão da formação dos seminaristas, no discurso ao CELAM, mas que pode ser generalizado para todas as situações. Sem uma formação adequada, o modo de ser jovial pode levar a um subjetivismo exacerbado, que perde de vista os valores e o método objetivo da pedagogia cristã. Por exemplo, catolicismo nos pede para rezar, e toda oração é boa, mas existem modos de oração que nos ajudam mais a entrar na mística cristã e conhecer mais a Cristo, e outras que não têm a mesma efetividade pedagógica. Por outro lado, a formação cristã (não só a católica) tem grande dificuldade de preparar os jovens para julgarem e discernirem em relação aos acontecimentos e aos contextos em que se encontram. Após décadas de uso frutífero, o método Ver/Julgar/Agir dá sinais de exaustão, pois é necessário encontrar critérios precisos e experimentados na prática com os quais ver e julgar a realidade. Sem isso, se caí no fundamentalismo doutrinal ou se é vítima da mentalidade cientificista e “politicamente correta”, que nem sempre condizem com a mensagem cristã.

O caminho de Francisco

A “revolução” trazida pelo papa Francisco parece evidente, mas não representa uma ruptura. Ele mantém a convicção de que o sentido primeiro da Igreja é anunciar Cristo ao mundo – e que portanto todas as outras questões, ainda que significativas, são secundárias; a ideia de que as demandas da sociedade moderna (relaxamento da moral sexual e da indissolubilidade do matrimônio, anulação do celibato sacerdotal, etc…) devem ser consideradas no contexto da tradição da Igreja; a necessidade da fé dialogar com a razão e com a cultura para enfrentar os desafios da atualidade.

Contudo, com seu comportamento pessoal e sua postura, consegue comunicar elementos da mensagem cristã que a mídia parecia não querer ouvir em seus antecessores. Não é necessário deter-se muito no fato de que sua simplicidade, seu despojamento material e sua incrível capacidade de acolher às pessoas são as “pedras de toque” que geram esta postura favorável em relação a ele.

Mesmo sem procurar isso, o papa mostrou-se como uma liderança mundial, alguém que lança uma luz sobre a política e o comportamento dos políticos. Além disso,  sua liderança se distingue daquela dos políticos porque aponta para o protagonismo das pessoas às quais encontra, enquanto que os líderes políticos apontam para seu próprio protagonismo. O político, queira ou não, diz “votem em mim porque eu os defenderei”. O papa diz “sejam protagonistas e construam o bem comum para todos”.

A grande curiosidade dos analistas, ao debruçarem-se sobre sua viagem ao Brasil era compreender que sinais enviaria com relação aos caminhos de seu pontificado. Não é necessário nos deter no fato de que ele deseja uma Igreja pobre e simples, com uma atenção especial aos pobres. Vejamos o que mais pode ser dito, a partir de seu comportamento e de seus discursos no Brasil:

1) Sua grande preocupação é com a missão. Contudo, o anúncio missionário não é visto como necessário tanto para trazer novos fiéis, mas sim para ajudar a fortalecer a fé daqueles que anunciam, como deixou claro na missa de envio, a última da JMJ. A fé cresce e cumpre sua missão no mundo quando existem bons cristãos testemunhando-a para os outros e para si mesmos. Além disso, deixou claro que a missão e o serviço, o trabalho social, são indissociáveis, ainda que não se confundam.

2) Francisco tem uma leitura peculiar da temática “centro/periferia”. Para ele, o centro é Cristo e a periferia é a posição natural do ser humano. A “revolução cristã” se inicia quando a pessoa deixar de centrar sua vida em si mesma, para centrá-la em Cristo – e daí deixa também o individualismo autocentrado e começa a se realizar na solidariedade. Contudo, também encontramos “periferias existenciais”, lugares onde a vida se degrada por estar longe da luz de Cristo e de uma condição verdadeiramente humana. Com suas ações, o papa deixa claro que as “periferias existenciais” mais evidentes nascem da pobreza material e da exclusão social – mas vão além delas, podendo acontecer também onde a riqueza material convive com a falta de amor e sentido.

3) O papa Francisco tem uma posição clara em relação às demandas que associa aos “católicos iluminados” (que ele associa ao que chamou de “proposta gnóstica”), que julgam a Igreja apenas com os olhos da cultura moderna e não da tradição cristã. No discurso do CELAM ele deixou claro que estas demandas não atingem o cerne do problema, que é a presença do amor de Deus no mundo, por meio do testemunho dos cristãos. As propostas que buscam uma renovação da Igreja usando critérios da mentalidade moderna foram duramente criticadas neste discurso, particularmente nos comentários feitos de improviso, disponíveis no vídeo do evento. Mas o papa, no mesmo discurso, salienta a necessidade de superar respostas moralistas e normativas (a “proposta pelagiana”) para estas demandas da cultura moderna. As demandas e questionamentos que a sociedade contemporânea faz à Igreja refletem problemas humanos que devem ser enfrentados a partir da experiência do amor e da misericórdia (que é um atributo divino, não uma arrogância disfarçada de bondade) e não da lógica de nossa sociedade.

Da América Latina para o mundo

Por fim, nos cabe procurar entender onde a atuação e a mensagem de Francisco levam uma contribuição específica da Igreja latino-americana para o mundo. Novamente, o elemento mais evidente é a simplicidade e a proximidade às pessoas, a força de um modo de ser Igreja, próximo ao povo. Existem, contudo, outros elementos menos evidentes:

1) A peculiar insistência na cultura, colocada como grande contribuição da Igreja num processo de transformação da sociedade. Francisco contrapõe uma “cultura do encontro”, centrada na solidariedade e na tradição de acolhida do povo latino-americano, à cultura do individualismo, do desperdício e da exclusão que vigora no mundo contemporâneo. Esta ênfase resgata uma tradição de valorização da cultura popular, presente em vários pensadores latino-americanos. Os valores não se evidenciam a partir de uma reflexão escolástica sobre a vontade de Deus ou a natureza humana, mas sim da experiência de vida concreta das pessoas. Isso não significa uma rejeição à teologia tradicional, mas sim o reconhecimento de uma luz que nasce das vivências sociais do povo cristão.

2) Neste sentido, Francisco resgata o conceito de “povo cristão”,  dando-lhe consistência e incidência social. Existe um povo cristão, representado pelo conjunto das pessoas que vivem a experiência do seguimento de Cristo e que têm uma mentalidade moldada por este seguimento. Com isso, se vincula a João Paulo II e à história da Igreja na Europa Oriental, onde a tradição popular manteve a fé viva durante um século de ateísmo e perseguição religiosa por parte do Estado comunista; bem como a Bento XVI e sua insistência no reconhecimento das raízes culturais cristãs da Europa atual. 

3) De modo similar, deve-se compreender a “opção pelos pobres” em Francisco (expressão que o papa não usou até agora em nenhuma ocasião oficial). O pobre é uma luz para a Igreja não tanto por sua condição de excluído do sistema econômico, mas principalmente por representar uma tradição cultural que pode contribuir para humanizar a cultura moderna e pós-moderna. A opção pelos pobres de Francisco se insere mais no contexto de uma teologia “da solidariedade” que “da libertação”. A profecia acontece no anúncio do amor eterno e não da utopia. Não existe, em seu discurso, um momento libertador utópico ou a instauração de uma “terra sem males” que equivaleria ao Reino de Deus aqui. Existe, isto sim, uma permanente condição humana a exigir do cristão uma conversão “revolucionária” e o comprometimento solidário com os que sofrem. Essa posição não quer dizer negação do empenho político dos cristãos ou volta ao assistencialismo. Porém, superadas as ditaduras de direita e de esquerda do século XX, dentro de um contexto democrático no qual os partidos de esquerda frequentemente chegaram ao poder, é forçoso reconhecer que a esperança de uma ruptura utópica não parece realizável politicamente nem consistente teologicamente. Porém, o mandamento do amor e um compromisso solidário transformador continuam absolutamente necessários.

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