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Jesus e o Twitter: o que disse o cardeal Ravasi e o que virou notícia no mundo

We cannot be part-time Christians, Pope says on Twitter – pt

Cobalt123

Filipe Domingues - publicado em 26/09/13

Uma série de críticas à Igreja se seguiu, especialmente por parte dos ateus e agnósticos, justo aqueles com quem a Igreja busca dialogar

Este poderia ser apenas mais um texto factual sobre um evento do qual participei em Roma, mas sua inesperada repercussão me convenceu de que, na verdade, seria mais interessante fazer uma breve reflexão do que um relato formal.

Hoje, no Cortile dei Gentili (“Pátio dos Gentios”), um espaço de diálogo entre católicos e pessoas “não crentes”, nesta edição dedicado aos jornalistas, o Cardeal Gianfranco Ravasi afirmou que Jesus Cristo usou twits para se comunicar – uma referência à rede social Twitter, na qual as mensagens são curtas (140 caracteres é o limite máximo para cada twit). Disse o cardeal: “A primeira pregação de Jesus, segundo Mateus, no original grego, tem 45 caracteres com espaços: ‘O reino de Deus está próximo. Convertei-vos.’”

Essa declaração aparentemente banal ganhou manchetes nos sites de notícias e, obviamente, nas redes sociais. A notícia que uma grande agência de notícias francesa publicou para o mundo foi “Vaticano diz que Jesus foi o primeiro a tuitar”. Outros veículos internacionais, de várias línguas, anunciaram “Jesus foi o primeiro ‘tweeter’ da história, diz Ravasi”.

A partir dessa notícia, um evento que durou 5 horas, com três conferências e profundas reflexões sobre a fé, sobre a comunicação, sobre o que é a Verdade e a objetividade do jornalismo, sobre a busca pelo bem comum seja por ateus seja por católicos, com a presença dos diretores de todos os principais jornais da Itália, se resumiu a uma discussão pouco inteligente sobre o que passa na cabeça da Igreja Católica para dizer que Jesus foi o inventor do Twitter. Seria uma estratégia de marketing? É o Vaticano querendo se apossar do ambiente virtual, onde a liberdade total é a suprema lei?

Uma série de críticas à Igreja se seguiu, especialmente por parte dos ateus e agnósticos, justo aqueles com quem a Igreja busca dialogar por meio do “Cortile”. Como ocorre frequentemente com as informações de temas religiosos (e aqui não me refiro somente à Igreja Católica), a declaração de Ravasi foi apresentada sem o contexto. Queremos rapidamente tentar mostrar que contexto é esse e por que a declaração é muito menos bombástica do que tentou-se mostrar por aí.

Durante o evento, o Cardeal Gianfranco Ravasi foi convidado a debater com o fundador do jornal La Reppublica, Eugenio Scalfari, que se autointitula “um não crente, que não procura Deus, mas é apaixonado pela figura de Jesus Cristo” – o mesmo a quem o Papa Francisco escreveu recentemente a carta intitulada “Diálogo aberto com os não crentes”. Logo no início do diálogo, o jornalista moderador Emilio Carelli lançou uma questão a Ravasi: ”Vivemos num contexto de mudanças grandíssimos e no qual o modelo da comunicação foi totalmente alterado. Qual é a sua mensagem, a da Igreja, sobre a comunicação religiosa?” Pronto, temos aí um pequeno contexto. A pergunta remete à comunicação religiosa, ao novo momento das comunicações no mundo.

Respondeu o cardeal italiano: “Jesus adotou como instrumento de comunicação três percursos que são aqueles que atualmente dominam e que tornam particularmente incisiva a mensagem do Papa Francisco.” O primeiro deles, para Ravasi, seria exatamente o uso do twit. “Cristo adotou o uso do twit de maneira sistemática. Aquilo que os estudiosos chamam com um termo extremamente sofisticado, arcaico, os logia, mas que na verdade são verdadeiros caracteres essenciais.” Ele citou outros momentos em que Jesus afronta a questão moral religiosa em 145 caracteres (“Ame o Senhor teu Deus com todo o teu coração, a tua mente e a tua alma. Ame o seu próximo como a ti mesmo”) e questões de fé e política, fé e economia em 39 caracteres (“Dai a César o que é de César e dai a Deus o que é de Deus”).

E Ravasi arrematou: “Então, temos o uso sistemático da frase essencial e incisiva. E até aqui temos uma aula, também no que diz respeito aos pregadores.” Alguma dúvida de que ele se referia ao twit como uma analogia e, obviamente, não de modo explícito? Ravasi quer dizer que o modo como Jesus se comunicava é válido até hoje, especialmente para os pregadores.

E continua, com os outros dois modelos mencionados no início da fala. O segundo é a articulação do pensamento por meio de parábolas, também muito usado pelo Papa Francisco, “que é substancialmente o uso da televisão, porque é um cenário” (outra analogia ao mundo das comunicações, e nem por isso vamos colocar nos jornais que “Jesus foi o primeiro apresentador de televisão, diz Vaticano”). De acordo com o cardeal, a parábola do bom samaritano, por exemplo, apresenta diversas perspectivas de filmagem: “Nesse caso vemos ainda a capacidade incisiva, de fazer com que a complexidade do reino de Deus, quer dizer, do projeto de Deus, a visão global do ser e do existir, através de uma narração, através do símbolo, que é fundamental na nossa civilização, sobretudo na imagem.”

A terceira via é a da corporalidade, explica o presidente do Pontifício Conselho para a Cultura. “Se pegamos o Evangelho de Marcos, 43%  do ministério de Cristo é constituído da cura. Isto é, ele toca ininterruptamente os corpos. Fala com o contato dos corpos”, afirma. “Com o seu corpo, usa a saliva algumas vezes, usa as suas mãos, violando as normas hebraicas também para os leprosos. É importante para nós que queremos fazer uma comunicação religiosa de valores, etc, esse discurso sobre o método.”

Qualquer pessoa com boa vontade para entender o que o cardeal Ravasi disse, não teve dificuldades. Não é preciso concordar com sua análise teórica, mas entendê-la. Ele conclui esse pensamento afirmando que “Se um pastor não se interessa por comunicação, está fora do seu próprio ministério. Não esqueçamos que Cristo, a primeira coisa que diz é ‘andai e anunciai’”.

Sobre o jornalismo – Para piorar a situação da falsa notícia, parece que não é a primeira vez que Ravasi expõe essas metáforas entre Jesus e o mundo da Comunicação. O fez em outras ocasiões, no mesmo “Cortile dei Gentili” e ninguém deu bola – porque os jornalistas não estavam lá. E é assim que uma declaração fora de contexto vira fofoca.

Mais grave ainda é o fato de que usou-se o termo “Vaticano” para se referir a um único indivíduo, o cardeal Ravasi, que embora seja presidente de uma instituição da Cúria Romana não fala em nome do Vaticano e nem de toda a Igreja. Na verdade, a rigor o “Vaticano” sequer existe. É um termo que usamos pra simplificar as coisas. O que existe são uma série de instituições da Igreja (a Cúria, a Santa Sé, a Cidade-Estado do Vaticano…) e nenhum indivíduo sozinho a representa completamente, nem mesmo o Papa.

Infelizmente o que vemos muito frequentemente é um jornalismo preguiçoso e catastrófico. Uma declaração simples, uma alegoria, um recurso retórico para explicar um determinado pensamento vira uma manchete bombástica.

Resumindo a ópera: o mundo das Comunicações vive uma crise dura e profunda. A perda de público por causa das mídias digitais provoca perda de qualidade de conteúdo porque, com receita menor, as empresas precisam reduzir custos e investir menos. Os jornalistas, cada vez mais desqualificados, são obrigados a trabalhar sem parar e a escrever sobre tudo e sobre todos, em poucos minutos. A notícia é produto. Quanto mais melhor. Mais rápido, melhor. Essa perda de qualidade agrava a perda de público da mídia tradicional. O resultado é um apelo às manchetes bombásticas na internet, que deem cliques e, portanto, anúncios publicitários por alguns minutos, gerando um pouco de receita pelo menos até a próxima “bomba” explodir.

Na segunda conferência do “Cortile”, os diretores dos maiores jornais italianos discutiram o complexo tema “As liberdades e as responsabilidades na comunicação. Objetividade e verdade – vícios e virtudes”, e o jornalista Mario Calabresi, diretor de La Stampa declarou que o maior compromisso do jornalista na atualidade deve ser com o contexto.

Parece que ele tem razão. Nossas liberdades de jornalista aumentam nossas responsabilidades. O contexto é essencial. Mas, como acabo de constatar novamente, muitas vezes nossa suposta objetividade é manipulada pelos nossos vícios, e não por nossas virtudes. E é assim que o contexto fica para trás.

(Praça de Sales)

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