Dom Mauro Morelli: podemos planejar de forma solidária o desenvolvimento do Brasil de baixo para cima, para que nosso povo seja saudável, inteligente, criativo e bem humorado
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Por Thays Puzzi, assessora de Comunicação da Cáritas Brasileira | Secretariado Nacional
"Devemos combater a riqueza com sua filha primogênita, a miséria"
A fala é de dom Mauro Morelli, bispo emérito da Diocese de Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, e presidente do Conselho Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional e Sustentável de Minas Gerais (CONSEA/MG). Ele participou da mesa de abertura da XIX Assembleia Nacional da Rede Cáritas Brasileira que, com o tema “fome e pobreza no Brasil e no mundo”, reuniu em Brasília (DF), de 17 a 20 de outubro, cerca de 250 agentes e voluntários da entidade.
Dom Mauro afirmou que a falta de alimentação no mundo está diretamente relacionada com o modelo de desenvolvimento e ressaltou ainda que é preciso acabar com a riqueza. “A pobreza, segundo o Evangelho, é uma sociedade onde não existe acúmulo, que haja efetiva distribuição. Ser pobre é não acumular e nem desperdiçar o alimento e os recursos indispensáveis para vida saudável e digna. Ser pobre é ter casa, com salubridade e privacidade, ter assento à mesa e acesso à cidadania sempre mais plena por meio da educação e da participação.”
Confira a entrevista concedida à assessoria de comunicação da Cáritas Brasileira.
Cáritas – O senhor afirmou que a falta de alimentação está relacionada com o atual modelo de desenvolvimento. Como se dá essa relação?
Dom Mauro – Em qualquer época quem mais sofre a insegurança alimentar é a mãe. Por essa razão, a mulher, com intuição e inteligência, coloca a semente no canteiro, desencadeando um processo de desenvolvimento através de plantio, colheita, armazenamento, processamento e preparo dos alimentos. As mulheres tornam-se as mães da agricultura e da segurança alimentar, superando a necessidade de vida nômade. A partir de sua descoberta, surgem a tecnologia e a ciência, a arte que se expressa em danças e cantos.
Considerando os Objetivos do Desenvolvimento do Milênio, a segurança alimentar e nutricional é uma questão de gênero, bem como determinante para os demais objetivos, pois sem alimentos saudáveis e adequados não são atingidas as outras metas relacionadas à saúde, educação, mortalidade infantil, etc.
O papa Paulo VI, na Encíclica sobre o Desenvolvimento dos Povos, adverte que mais alimento na mesa do povo e consequente distribuição dos bens, deve ser a primeira diretriz para a escolha de um modelo de desenvolvimento.
Assim, também, foram as conclusões da primeira conferência de segurança alimentar da Nação Brasileira em julho de 1994.
Não sem razão, o Movimento pela Ética na Política, em 1992, afirmara que a maior corrupção é nosso país, situado entre as maiores economias do mundo, convivendo com exclusão social, miséria e o povo sofrendo os males da fome. Ordem e Progresso, entre nós, tem sido cassação da cidadania, degradação ambiental, concentração de riqueza, geração de miséria e dos males da fome.
A Ação da Cidadania foi apontada como caminho para gestar um novo modelo de desenvolvimento a serviço de uma sociedade justa, fraterna e solidária. Aprendi com o Papa João Paulo II, em suas inúmeras alocuções e mensagens, que somente uma articulação entre família, da sociedade com todas as instituições e governos, em todos os níveis e expressões, pode garantir a segurança alimentar e nutricional da família humana.
Cáritas – A falta de alimentação também está relacionada com a má distribuição e concentração de renda e de alimentos. Como efetivar uma distribuição que garanta comida para todos e todas?
Dom Mauro – Enquanto houver mercantilização dos alimentos vai haver degradação ambiental (graças à monocultura e consequente empobrecimento nutricional), produção e distribuição de alimentos caros e nocivos à saúde humana, miséria e fome na face da Terra.
À luz do binômio indissolúvel educação e nutrição, aplicando-se com rigor e grandeza a Lei Federal 11.947/09, sobre alimentação escolar, ampliada para 365 dias, a partir das micro bacias, podemos planejar de forma solidária o desenvolvimento do Brasil de baixo para cima, para que nosso povo seja saudável, inteligente, criativo e bem humorado. Cultivar, nutrir e educar, eis o caminho!
A atual regulamentação da lei é medíocre e rotineira, não contemplando a grandeza da própria lei que embora mutilada é revolucionária, pois afirma o direito do ser humano ao alimento saudável e adequado, produzido pela agricultura familiar do município e região, dentro do processo de relações que caracteriza a educação em que a pessoa é sujeito de seu próprio desenvolvimento.
Observo que as cidades podem e devem ser também grandes produtoras de alimentos saudáveis, adequados e solidários, nas casas e em terrenos baldios, por meio de hortas familiares e comunitárias, inclusive nas varandas e telhados. É urgente uma lei federal que defina e garanta a agricultura urbana.
Cáritas – Qual a importância do papel da Igreja e da sociedade civil na lutar contra a pobreza?
Dom Mauro – Considerando a Cáritas a articuladora da ação social da Igreja em nível diocesano, regional, nacional e internacional, e a coordenação pastoral da Igreja, em todos os seus níveis, cabe a ambas a responsabilidade pela efetiva participação da Igreja no engajamento pela superação da miséria e dos males da fome em nosso tempo.
Na Encíclica Caridade na Verdade (n.27), Benedito XVI afirma que não devemos tratar como questão de caridade o que é um direito, mais ainda, que participar no empenho por mundo livre da miséria e da fome, é contribuir para a preservação do planeta e a construção da paz.
Cabe à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) urgir a Igreja, em cada diocese a cumprir o compromisso assumido pelos bispos em assembleia geral, de 10 a 19 de abril 2002, por ocasião de seu Jubileu de Ouro, expresso no documento (Documentos da CNBB número 69): Exigências Evangélicas e Éticas de Superação da Miséria e da Fome.
Devemos combater a riqueza com sua filha primogênita, a miséria. Ser pobre é não acumular e nem desperdiçar o alimento e os recursos indispensáveis para vida saudável e digna. Ser pobre é ter casa, com salubridade e privacidade, ter assento à mesa e acesso à cidadania sempre mais plena por meio da educação e da participação.
Oxalá! Não sejamos como os levitas e sacerdotes que circulam como baratas tontas sem entender porque grassam violência no campo, miséria e fome na cidade (Jeremias 14,18). Brilhe a nossa luz pela partilha do pão, não só nos templos, mas em todas as casas (Isaías 58, 7-8). Que não haja entre nós famintos e necessitados, vítimas da injustiça e da iniquidade. Paz e bem.
(Publicado em Cáritas Brasileira, no dia 23 de outubro de 2013)