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Catolicismo “iliberal”

Illiberal Catholicism Dave 77459 – pt

Dave 77459

John Zmirak - Aleteia Vaticano - publicado em 04/01/14

Os católicos já foram mais abertos às lições de liberdade baseadas na experiência norte-americana. Será que estamos nos esquecendo dessas lições?

Vou começar projetando algumas cenas reais. Eu fui testemunha ocular ou pelo menos ouvi o relato detalhado em primeira mão de cada uma delas. Além disso, posso fornecer um link para documentá-las.

Cena 1. Logo depois que o governo chinês esmagou as manifestações na Praça da Paz Celestial, um seminarista me disse que gostaria de "estar no controle de um daqueles tanques" que avançavam sobre os manifestantes e sobre a sua improvisada Estátua da Liberdade. "O americanismo é uma ameaça muito maior para a Igreja do que o comunismo", declarou ele, que hoje é sacerdote. Eu mesmo o vi no altar em outubro.

Cena 2. Era uma noite festiva numa pequena faculdade católica. Um farto banquete foi servido depois da missa em honra do santo padroeiro da instituição. Os estudantes, professores e diretores se reuniram ao redor de uma fogueira, após o jantar, cantando e continuando a festa. O ponto alto da noite foi a “piñata”, aquele boneco recheado de doces que é pendurado num gancho para ser acertado a bastonadas por pessoas de olhos vendados. Quem pendurou aquela piñata foi o coordenador do campus. Ela tinha a forma de um porco. Num dos lados, estava escrito "Americanismo". O coordenador do campus levantou o bastão e conclamou: "Vamos lá, pessoal, vamos estraçalhar o americanismo!". Os estudantes fizeram fila atrás dos professores, do reitor e do presidente da instituição para estraçalhar o que quer que eles entendessem por “americanismo” (ninguém jamais explicou a eles o que o papa Leão XIII tinha de fato querido dizer com aquela palavra).

Cena 3. Na mesma faculdade, durante uma discussão acadêmica, o reitor explicou que os países protestantes capitalistas obtiveram mais sucesso econômico que as nações católicas agrícolas graças aos "efeitos da maçonaria". O presidente da faculdade rapidamente acrescentou outro fator crítico: "a intervenção diabólica".

Cena 4. O mesmo reitor, numa conversa comigo, aventou possíveis “reformas democráticas” a ser implantadas nos Estados Unidos. A reforma moral, explicou-me ele, só aconteceria depois de um golpe de estado em que "os homens de virtude" impusessem a sua vontade a todo o povo, de modo que “as pessoas entrariam na linha quando percebessem que não tinham escolha”. Aquele reitor, antes disso, já tinha criticado a Espanha de Franco por ser “relaxada demais”.

Cena 5. Um historiador de uma grande universidade católica dos Estados Unidos reúne seus familiares e amigos na data que o resto dos norte-americanos chama de “Dia de Ação de Graças”. Mas eles a chamam de "Quinta-feira Maldita". Todos os anos, naquele dia, eles ridicularizam as origens protestantes dos Estados Unidos enforcando um boneco que representa um puritano. Esse mesmo historiador orienta os seus alunos a se referirem à Estátua da Liberdade como "aquela deusa maçônica cadela".

Cena 6. Em outra pequena faculdade católica norte-americana, professores e funcionários assam um porco uma vez por ano, durante um evento que eles chamam de "auto da fé". O porco recebe o nome de algum "herege" ilustre, antes de ser imolado e comido.

Cena 7. Em mais outra pequena faculdade católica dos Estados Unidos, um dos professores, que conheci numa conferência, falou efusivamente sobre as "lacunas" que um estudioso tinha supostamente encontrado nas bases doutrinais do Vaticano II sobre a liberdade religiosa. A Dignitatis Humanae, segundo ele, proibiria apenas o Estado de usar a força física em assuntos religiosos. A Igreja, no parecer do jovem estudioso, não sofre a mesma proibição: ela pode prender qualquer pessoa batizada e puni-la por heresia. "Isso quer dizer que o papa tem o direito de prender qualquer luterano?", perguntei eu, cético. “Sensacional, né?”, respondeu ele, sorrindo. Semanas depois, ele me enviou "provas" de que George W. Bush estaria por trás dos ataques de 11 de setembro.

Cena 8. A propósito da Ethika Politika, um escritor católico levou a sua rejeição ao liberalismo americano e ao capitalismo até um extremo lógico diferenciado: ele tentou reabilitar Karl Marx absolvendo-o de todos os males historicamente perpetrados pelos comunistas e exortando os seus leitores a serem bons marxistas católicos.

Cena 9. Na revista America, um colunista escreveu com desdém sobre um dos maiores colaboradores que a revista já teve, o pe. John Courtney Murray, SJ, criticando a sua tentativa de abraçar a liberdade americana e de permeá-la com a compreensão da lei natural. Era claro que tais tentativas já tinham falhado, opinava o colunista desdenhoso, e que os católicos deveriam abraçar a indiferença política, retirar-se em comunidades isoladas e esperar que os outros simplesmente os tolerassem.

Eu poderia multiplicar essas histórias, mas vocês já captaram a ideia.

À primeira vista, todos esses eventos parecem desconexos. O que é haveria em comum, afinal, entre católicos nostálgicos da Renascença e neomarxistas? O que é que católicos segregacionistas ao melhor estilo Amish teriam em comum com reencenadores da Inquisição? Qual seria a ligação entre o cardeal Dolan, com a sua “torcida” pelo chamado “Obamacare”, e os direitistas católicos norte-americanos que minimizaram o apelo dos bispos do país pela liberdade religiosa em face da nova lei sobre saúde pública do governo Obama, argumentando que os católicos deveriam questionar a própria legalidade da contracepção?

Você até poderia ser perdoado se respondesse apenas que "todos eles estão é doidos". Mas essa não seria a resposta mais apropriada. O fato é que existe algo de muito grave acontecendo nos círculos intelectuais e educacionais católicos, um “algo” que, se continuar sem controle, acabará ameaçando a causa pró-vida, a influência da Igreja na sociedade e a segurança e liberdade dos católicos nos Estados Unidos.

O crescimento do catolicismo “iliberal” vai reforçar o poder da esquerda laica intolerante, vai reacender (e justificar plenamente) o velho anticatolicismo que marcou o país durante tanto tempo e vai deixar os católicos dos Estados Unidos ridiculamente relegados a segundo plano, a exemplo do que já acontece em países como a Espanha e a França, nos quais a causa da Igreja passou a ser vista como necessariamente vinculada aos séculos de governo autocrático e de intolerância religiosa.

Estamos testemunhando o colapso de uma síntese magnífica: a aliança entre liberdade e fé, uma conquista em que os católicos americanos foram pioneiros no século XIX, contrapondo-se tanto aos vizinhos protestantes hostis quanto às irrefletidas e falíveis declarações papais que endossaram a queima de livros, comprometeram a liberdade religiosa e condenaram os católicos da Irlanda e da Polônia por se levantarem contra os seus opressores "legítimos".

Esta síntese atingiu o seu ápice intelectual na obra do pe. John Courtney Murray, SJ, e se refletiu na constituição Dignitatis Humanae, do Vaticano II, que afirmou a liberdade humana e negou que o Estado tenha o direito de suprimir qualquer religião, mesmo as falsas. Tal como documentado (e desaprovado) pelo estudioso tradicionalista Michael Davies, foi a influência dos bispos norte-americanos no Vaticano II que assegurou a aprovação dessa constituição fundamental.

Nesse documento, assim como no subsequente Catecismo da Igreja Católica e nos pedidos de perdão que João Paulo II fez pela intolerância dos seus antecessores, a Igreja mostrou humildade e disposição de aprender dos próprios erros prudenciais e das virtudes naturais demonstradas por não-crentes. Da mesma forma que os Padres da Igreja ouviram os estoicos pagãos, os Padres do Vaticano II prestaram atenção ao Iluminismo moderado, rejeitando o paternalismo e o autoritarismo que os pensadores católicos anteriores tinham promovido, em prol de uma política de liberdade que respeitasse a dignidade humana.

Como João Paulo II escreveu em “Memória e Identidade”, o Iluminismo representou, em certas questões-chave, a longamente adiada implementação da antropologia cristã na política. Em termos mais simples: a Igreja herdou de pensadores pagãos, como Platão e Aristóteles, a filosofia de governo vértice-a-base, que foca nos "direitos" dos legisladores e dos governantes de impor aos cidadãos a sua própria visão do Bem, em vez de focar nos direitos dos cidadãos contra os poderes do Estado. Esta filosofia autoritária se manifestou religiosamente na Inquisição, politicamente no feudalismo e na escravatura e economicamente nos monopólios reais, nos trustes e no mercantilismo que George III tentou impor às colônias americanas, controlando o seu comércio para beneficiar o governo. Esse paternalismo ressurgiria ainda em várias formas de socialismo, incluindo, entre outras, o marxismo. Esse paternalismo prevalece até hoje na maior parte da União Europeia, como Samuel Gregg demonstra em sua obra “Becoming Europe” [O Formar-se da Europa, ndr].

O melhor resumo analítico desse paternalismo, que os pensadores pagãos clássicos transmitiram aos socialistas modernos, é oferecido por Frederic Bastiat:


"Alguns autores contemporâneos, especialmente os da escola de pensamento socialista, baseiam as suas várias teorias numa premissa comum: eles dividem a humanidade em dois grupos. As pessoas em geral, com exceção do próprio autor, fazem parte do primeiro grupo. O autor, sozinho, faz parte do segundo grupo, que é o grupo mais importante. Sem dúvida, esta é a noção mais estranha e mais convencida que já foi capaz de penetrar em um cérebro humano! Esses autores, no tocante aos assuntos públicos, começam supondo que as pessoas não têm nenhum meio de discernimento próprio, nem qualquer motivação para agir. Esses autores dão por certo que as pessoas são matéria inerte, partículas passivas, átomos imóveis; na melhor das hipóteses, são um tipo de vegetação indiferente à própria forma de existência. Esses autores assumem que as pessoas devem ser moldadas de acordo com a vontade de outra pessoa, numa variedade infinita de formas, mais ou menos simétricas, artísticas e aperfeiçoadas. Mais ainda: nenhum desses autores se faz de rogado na hora de imaginar que é ele próprio, sob o título de organizador, descobridor, legislador ou fundador, quem personifica essa vontade, essa força motivadora universal, esse poder criativo cuja missão sublime é moldar aquelas matérias dispersas, as pessoas, e transformá-las em uma sociedade. Esses autores socialistas olham para as pessoas do mesmo jeito que um jardineiro olha para as suas plantas".

Uma visão política personalista da liberdade também surgiu a partir de fontes cristãs, para se acoplar à ideia cristã do ser humano individual, e se manifestou em instituições como a Common Law inglesa e a democracia suíça. Ela coexistiu com o antigo autoritarismo pagão. Em alguns países, como a Inglaterra e a Suíça, a ideia da liberdade individual venceu a ideia rival do autoritarismo. Devido a uma daquelas pequenas ironias de Deus, conforme observado por Russell Kirk em “The Roots of American Order” [As Raízes da Ordem Americana, ndr], foram em grande parte os protestantes que defenderam os direitos dos cristãos contra o Estado, enquanto os católicos endossavam as antigas concepções romanas e pagãs do Estado e das suas prerrogativas quase ilimitadas. Depois que a Reforma destruiu a independência política da Igreja, os papas não viram mais opção que “batizar” e tentar informar moralmente o absolutismo dos monarcas (o fundo do poço foi atingido quando os reis católicos, que já indicavam todos os bispos nos seus territórios, forçaram o papa a suprimir os jesuítas, que escapavam ao seu controle real). Na esteira da Revolução Francesa, qualquer conversa sobre liberdade parecia contaminada pelo sangue de padres, freiras e camponeses católicos assassinados. O medo da violência revolucionária foi o suficiente para fazer o papa Pio IX se alinhar com o czar e com os seus cossacos, contra os católicos poloneses amantes da liberdade, e com a coroa britânica, contra os católicos irlandeses.

O século XX presenciou a metástase do tumor paternalista. Ele se transformou em totalitarismo pleno com líderes como Hitler e Stalin, que zombavam das liberdades iluministas e que engenharam genocídios, abomináveis guerras de conquista e violentas perseguições contra diversos grupos de crentes. O choque entre paternalismos opostos na Segunda Guerra Mundial culminou nas ditaduras comunistas que controlaram a metade dos países da Terra. Só depois de todos esses males monstruosos é que a Igreja digeriu a Revolução Francesa e realmente assimilou a verdade moral de que a liberdade, especialmente a liberdade religiosa, é uma exigência inegociável para qualquer política decente.

Aqueles de nós que se consideram "católicos do Tea Party" aprofundam essa percepção ao notar que, sem liberdade econômica e política, a liberdade religiosa também fica na berlinda. Se o governo pode fechar a sua empresa ou censurar o seu discurso, ou taxar a tal ponto os seus rendimentos que você não pode gastar o seu dinheiro nem o seu tempo na construção da sociedade civil, então você dificilmente é livre, seja qual for o sentido que se dê ao termo. Você é, como Bastiat avisou, um vaso de plantas que vegetam à mercê do Estado e das suas tesouras de poda.

É possível, naturalmente, que a liberdade se degenere e vire licenciosidade. Os católicos defensores da liberdade têm plena consciência de que o conceito iluminista de liberdade é parcial e incompleto. É precisamente por isso que homens como John Courtney Murray, Michael Novak, Robert George e outros muitos tentaram complementá-lo e aperfeiçoá-lo. A "procura da felicidade", mencionada por Thomas Jefferson, poderia ser entendida como hedonismo vazio, como busca utilitarista pelo maior número possível de momentos felizes para o maior número possível de pessoas. A propósito, eu já escrevi aqui, em outra ocasião, que a Suprema Corte [dos Estados Unidos, ndr], no caso Planned Parenthood x Casey, apresentou uma tosca paródia tanto do conceito de "vida" quanto de "liberdade".

No entanto, a maioria dos fundadores dos Estados Unidos, que assinaram a Declaração de Independência, e a grande maioria dos norte-americanos ao longo dos séculos, não abraçou o entendimento de Hugh Hefner sobre a liberdade. É possível compreender a "felicidade" de que Jefferson falou no sentido aristotélico, como a felicidade própria de um ser humano cuja vida virtuosa lhe permite prosperar. Este é o argumento que nós, católicos, deveríamos apresentar aos nossos concidadãos não católicos, deixando claro que rejeitamos por inteiro o paternalismo do passado e valorizamos a liberdade deles, religiosa, política e econômica, tanto quanto valorizamos a nossa própria. Devemos rejeitar também o paternalismo do futuro, aquele Estado secular onicompetente que esmaga a sociedade civil e substitui tudo, desde a família até a escola particular, por alguma agência do governo. Pouco importa se esse regime é abertamente ditatorial, como em Cuba ou na Venezuela, ou se é uma oligarquia que organiza eleições vazias, como na maior parte da União Europeia. Quando o Estado controla 70% ou 80% da riqueza de uma nação, ele domina a maior parte da sua vida. Nós nos reduzimos a formigas sobre lombo de elefante, com um dos nossos minúsculos tentáculos tentando segurar as rédeas.

Temos que nutrir uma gratidão profunda pela herança do Iluminismo, já que os americanos anticatólicos dos séculos XIX e XX foram mortos precisamente porque catolicismo menos Iluminismo é igual a Inquisição. Estou exagerando? Então pense no fato de que, durante a ocupação espanhola de Nova Orleans, antes da aquisição do Estado da Louisiana, um oficial da Inquisição andou interrogando hereges e juntando equipamentos de tortura (que, graças a Deus, ele nunca teve a oportunidade de usar. A Inquisição se implantou na Flórida e continuou em Cuba até 1818). Os protestantes na Espanha sofreram restrições legais até nada menos que a década de 1970. O grande defensor de Pio IX e do Vaticano I, Louis Veuillot, resumiu o que durante séculos foi a visão católica predominante sobre a liberdade religiosa: "Quando você é mais forte, eu lhe peço liberdade, pois ela é prerrogativa sua. Quando eu sou mais forte, eu tiro a sua liberdade, pois ela é prerrogativa minha".

Como norte-americanos, nós também temos que ser autocríticos e reconhecer que, ao reagir contra o paternalismo do passado, homens como John Locke cometeram erros filosóficos graves e, involuntariamente, envenenaram as bases da dignidade da pessoa humana em que a liberdade deve se arraigar. Scott Hahn e Benjamin Wiker fazem um trabalho excelente ao explicar os erros do Iluminismo no livro “Politicizing the Bible” [Politizando a Bíblia, ndr], assim como Edward Feser em seu clássico “The Last Superstition” [A Última Superstição, ndr]. No “Tea Party católico”, Samuel Gregg mostra com detalhes o quanto os católicos amantes da liberdade podem restabelecer as verdades fundamentais sobre a natureza humana que os nossos Fundadores da Pátria negligenciaram. Essa crítica construtiva do projeto do Iluminismo, que poderíamos chamar de "patriotismo reparador", é essencial para preservarmos a vida do nascituro e a integridade do matrimônio, entre muitos outros valores.

Uma coisa é dizer que John Locke e Thomas Jefferson tinham uma visão falha sobre o florescimento humano. Outra, bem diferente, é que nós, católicos, dada a nossa longa e infeliz herança de paternalismo e de intolerância, rejeitemos o Iluminismo “por atacado” e finjamos que a liberdade religiosa, política e econômica é o estado natural do homem, a ser tido por tão certo e gratuito quanto o mar, o céu e as estrelas. Essas liberdades são, na verdade, o fruto duramente conquistado de séculos de luta. E muitos dos nossos antepassados lutaram do lado errado.

Caso pretendamos preservar a nossa tênue liberdade numa sociedade laica que está ficando cada vez mais intolerante, precisamos deixar bem claro para os nossos concidadãos não católicos que estimamos a liberdade deles também. Atacar o Iluminismo? Meros cinquenta anos depois que a nossa Igreja renunciou (tardiamente) à intolerância? Ao mesmo tempo em que homens equilibrados como um arcebispo Chaput e um cardeal Burke alertam os católicos do risco de perseguição? Numa época em que precisamos desesperadamente de aliados entre os nossos vizinhos protestantes? Alguém realmente pode ser tão imprudente assim?

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