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Até que ponto o poder do Estado pode proteger a verdade

On Backing Up the Truth with Power – pt

Emmanuel Leutze

John Zmirak - Aleteia Vaticano - publicado em 16/01/14

A verdadeira visão do bem e a coerção do Estado: onde fica a linha divisória?

Em que momento de uma discussão é oportuno partir para a briga? Esta é a pergunta por trás do grande debate entre os “iliberais” paternalistas (tanto da esquerda quanto da direita) e os seguidores da tradição liberal clássica norte-americana. A maioria dos conflitos da política pode se resumir a esta questão. Quais são os bens sociais, morais e econômicos que devem ser defendidos pela força policial e protegidos mediante a ameaça de prisão?

A polêmica que discute se o Estado deve ou não deve usar a força para promover a fé católica e desencorajar as outras religiões é uma dentre as milhares que podem exemplificar esse tipo de querela, embora o Concílio Vaticano II tenha tentado encerrar a discussão em favor da liberdade. Os católicos que rejeitam o conceito de liberdade religiosa adotado pelo Vaticano II devem estar cientes de que a Fraternidade Sacerdotal de São Pio X (FSSPX) se mantém fora da comunhão com a Igreja devido a esta questão em particular. As negociações entre esse grupo e o papa Bento XVI desandaram reiteradamente quando a FSSPX se recusou a admitir a liberdade religiosa e insistiu em dizer que a posição do Vaticano II não era compatível com a tradição anterior da Igreja. Se você concorda com eles e acha que um concílio da Igreja, o Catecismo subsequente e dezenas de afirmações de vários papas representam uma heresia, você realmente deveria assumir as consequências das suas ideias e se alinhar com a FSSPX. Num artigo futuro, aliás, pretendo falar de como os ensinamentos do Concílio Vaticano II se relacionam com as declarações papais anteriores sobre a liberdade religiosa.

Mas, voltando ao tema, é fato que tudo na política e na vida social abrange esta pergunta: quando é que você deve chamar a polícia e ameaçar prender um vizinho porque os atos dele não condizem com a visão que você tem do bem?

Em qualquer assunto (drogas, aborto, salários, poluição…), existem três possíveis pareceres que uma pessoa pode emitir:

1. “Este assunto é moralmente indiferente: a lei natural não afirma que é necessário adotar nem tal nem qual ação. Cada um é livre para agir do jeito que achar prudente”.

2. “Neste outro caso, existe um jeito certo de agir e, por justiça e pelo bem comum, o Estado tanto deve garantir que esse modo certo de agir seja praticado quanto deve punir quem age de forma diferente”.

3. “Já neste terceiro caso, existe um jeito certo e um jeito errado de agir, mas envolver o Estado seria imprudente porque violaria outros bens que são profundamente importantes”.

Exemplos de questões que se encaixam na primeira categoria são fáceis de imaginar. Os noivos devem se casar agora ou esperar mais um ano até juntar uma poupança? Eu devo fazer a minha doação para as freiras contemplativas ou para um abrigo de mães solteiras? O Dudu tem que fazer outra faculdade ou prestar concurso para a polícia? E assim por diante. Grande parte dos dilemas da vida entra nesta categoria, que poderíamos chamar de "neutra". Obviamente, só um totalitarista iria querer politizar decisões desse tipo.

Os problemas começam quando tentamos diferenciar o que pertence à segunda categoria e o que pertence à terceira. A grande divisão entre os governos “iliberais” paternalistas (feudais, teocráticos ou socialistas) e os governos livres está no enquadramento que cada um dá a esta questão. Achamos evidente que o Estado deve promover o bem usando a força, apossando-se da nossa propriedade e mandando-nos para a cadeia com uma arma apontada para a nossa nuca? Ou consideramos o uso da força como um mal necessário e tentamos minimizá-lo ao máximo?

Embora o Estado pudesse existir mesmo que o homem não tivesse decaído, é só por causa da queda do homem que o uso da violência pode chegar a ser necessário, seja para prevenir, seja para corrigir injustiças e lutar em legítima defesa. O ensinamento católico sobre a guerra justa enfatiza que o uso da violência pelo Estado é um recurso extremo, só lícito quando todos os outros recursos para resolver um conflito falharam. É claro que muitos governantes, católicos ou não, violaram sistematicamente esse ensinamento ao longo dos séculos, travando guerras que eles alegavam ser "justas", mas que, na verdade, se baseavam em motivos triviais ou arbitrários e eram realizadas sem respeito pelos direitos dos civis desarmados.

Da mesma forma, a doutrina católica sobre a subsidiariedade exige que os problemas sociais sejam resolvidos, sempre que possível, por indivíduos livres que trabalhem juntos, como famílias, instituições de caridade, igrejas e outras unidades da "sociedade civil". Só quando é inegavelmente evidente que um bem vital ou um princípio da justiça não pode ser garantido sem o uso da força do governo é que podemos de fato chamar a polícia. E a polícia local. Em outras palavras, a subsidiariedade determina que qualquer problema abordado pelo Estado seja resolvido em âmbito local, pela cidade ou pelo município em questão. Só as questões que não podem ser corrigidas desta forma devem ser encaminhadas para o nível seguinte do poder. Se um problema escapa às competências do governo estadual, é só então que ele deve ser encaminhado ao governo federal. Questões que ultrapassam até mesmo o que os governos nacionais podem resolver devem ser encaminhadas à ONU ou enfrentadas por meio de tratados.

É claro que muitos governantes passaram por cima de todo o princípio da subsidiariedade, desde Carlos V, que revogou os direitos das comunidades locais na Espanha dos Habsburgos, até a tentativa do governo Obama de microgerenciar a saúde de todos os norte-americanos. Não devemos cair na armadilha anticatólica de equiparar a liberdade ao protestantismo ou ao secularismo: houve muitos monarcas protestantes iliberais que perseguiram os católicos, e as atrocidades dos Estados laicos, da França revolucionária à Rússia de Stalin, excedem os crimes mais negros das piores teocracias ou estados feudais da história. Mas esses fatos não alteram o princípio subjacente: o recurso à coerção violenta deve ser o último, tanto em política externa quanto interna. Não podemos ser responsavelmente anarquistas ou pacifistas, mas também não podemos, como católicos, ser belicistas ou socialistas.

Com este princípio básico em mente, ou seja, o de optar preferencialmente pela não-violência e pela não-coerção, devemos avaliar com prudência todas as questões sociais e políticas, da desigualdade econômica até os cuidados de saúde, do combate às drogas até a política externa. Temos que evitar as armadilhas intelectuais que existem em cada lado da verdade. Muitos ocidentais modernos utilizam a liberdade como pretexto para cair no relativismo, deixando que a sua saudável recusa a chamar a polícia e mandar os vizinhos para a cadeia corrompa o seu entendimento do que é bom e verdadeiro. O fato de que o Estado não deva impor a ortodoxia religiosa não significa que ela não tenha nenhuma importância (pelo contrário, a verdade religiosa e a obediência à consciência são tão vitais que a Igreja não aprova a intervenção do Estado nesses assuntos). O Estado não pode prender pessoas por adultério (como os militares dos EUA ainda fazem), mas isso não ratifica como boa qualquer "opção sexual" de qualquer "adulto em uso de consciência".

Alguns conservadores religiosos indignados não caem no relativismo, mas caem no “iliberalismo”, concluindo que qualquer coisa boa deve ser fervorosamente promovida com toda a força bruta do Estado. Até mesmo essas pessoas, no entanto, admitem que há limites para a aplicação da lei natural por parte do Estado. Por exemplo, a existência de Deus pode chegar a ser conhecida pela simples razão humana; assim sendo, o ateísmo “descumpre” a lei natural ao negar essa possibilidade. Com base nesta premissa, um ateu que educa seus filhos na incredulidade poderia ser acusado de desrespeitar a lei natural. Isso quer dizer que o Estado deve intervir? É evidente que não, porque o bem da vida familiar é importante demais para ser perturbado dessa forma. Atos de sodomia violam a lei natural; mas poderíamos apoiar a instalação de câmeras na casa de todos os cidadãos para garantir que os infratores sejam presos? É claro que não. Será que essa recusa a violar a privacidade e a conceder um poder imenso aos legisladores e aos burocratas implica que somos libertinos sexuais? É óbvio que não.

A liberdade é um bem vital, especialmente em face do status decaído do ser humano. Os homens que elaboram e aplicam a lei são tão afetados pelo pecado original quanto qualquer outro cidadão. O poder pode não corromper todo mundo em todos os casos, mas é sempre uma ocasião próxima de pecado e deve ser tratado com cautela. Os fundadores dos Estados Unidos levaram esta lição a sério. Muitos hoje, porém, são preguiçosos o suficiente para esquecer-se dela.

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