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O papa surpreendente

Pope Francis poses with youth in the Church of Saint Augustine – pt

AFP PHOTO / OSSERVATORE ROMANO/ FRANCESCO SFORZA

Pope Francis poses with youth in the Church of Saint Augustine in downtown Rome on August 28, 2013. The pontiff lead a celebration mass to mark the feast of Saint Augustine which falls on August 28th, the occasion also marks the opening of the Order’s 184th General Chapter. 

Alver Metalli - Aleteia Vaticano - publicado em 23/01/14

Quase um ano de pontificado entre acolhimento festivo e resistências clericais

Editorialmente, março vai ser um mês “quente” para o papa. Com o pontificado de Francisco completando o primeiro ano, serão lançados pelo menos seis livros e quatro produções cinematográficas e televisivas sobre ele. Quais foram as maiores novidades do papa “que veio de longe”? Onde e como ele provocou maior impacto nesses primeiros meses? Lucio Brunelli, vaticanista da [emissora italiana] Rai há vinte anos e jornalista especializado em informação religiosa há mais tempo ainda, responde com palavras ponderadas, filtradas pela experiência de quem acompanha as atividades do papa quase cotidianamente. Para ele, este papa é "especial". Brunelli não esconde isso.

Às vésperas do conclave, você era um dos poucos jornalistas que indicavam Bergoglio entre os candidatos elegíveis. Por quê? Pelo carinho que você tinha por conhecer tão bem o cardeal?

É claro que havia carinho, e ainda há. Mas a certeza de que o cardeal de Buenos Aires era um “papabile” se baseava em dados concretos. Eu notava um grande desejo de mudança entre os cardeais, especialmente entre os não europeus, depois do escândalo Vatileaks e da renúncia dramática de Bento XVI. A barca de Pedro parecia encalhada, com ondas sombrias que pareciam açoitá-la. Eles procuravam um homem de Deus, com grande força espiritual, que não fosse da cúria e não fosse italiano, porque os italianos, com ou sem razão, eram considerados “parte em causa” nos acontecimentos dolorosos da Cúria Romana. Bergoglio cumpria esses requisitos como nenhum outro. As únicas dúvidas eram quanto à suposta indisponibilidade dele, porque tinham espalhado a lenda de que, no conclave de 2005, ele teria rejeitado os votos de quem procurava nele uma alternativa "pastoral" ao candidato "doutrinal" Ratzinger. E havia a questão da idade, 76 anos. Todas essas dúvidas foram varridas durante a preparação do conclave, nas secretíssimas congregações gerais. O discurso de Bergoglio deixou todos os cardeais de boca aberta, tanto pelo conteúdo (a Igreja que precisa sair de si mesma, livrar-se da mundanidade espiritual, refletir melhor a luz de Cristo entre os homens do nosso tempo, chegando até as periferias existenciais mais distantes…), quanto pelo espírito profundamente religioso, credível, que animava as palavras dele.

Quando eu tive informação segura sobre a receptividade que o discurso dele conseguiu, telefonei para o meu editor-chefe e propus uma matéria sobre Bergoglio para ser incluída na lista restrita dos “papabili” que nós tínhamos começado a transmitir, um por noite.

"Você tem certeza de que ele não vai ser o 65º da lista?", me perguntaram na redação.

"Tenho certeza. Ele vai ficar bem acima", respondi.

E a matéria foi ao ar na mesma noite, 9 de março. Eu também me lembro de uma brincadeira emblemática que escutei de um homem influente da Igreja, na véspera do conclave: "Vai ser um cardeal mais velho, mas bastaria quatro anos de um papado Bergoglio para reformar a Igreja". Eu não tinha mais dúvidas de que o cardeal argentino era um candidato forte. E eu lia com ironia os títulos do Corriere della Sera e do La Repubblica, que apresentaram o conclave até o final como uma partida entre dois jogadores e com resultado certo em favor de um deles, o italiano Scola e o brasileiro Scherer. Mas depois, naquela noite de 13 de março, quando eu estava ao vivo no telejornal e ouvi o cardeal Tauran pronunciar em latim o nome de Jorge Mario Bergoglio como novo papa, tremi de emoção e de felicidade.

Ainda falta muito para quatro anos de papado de Bergoglio, mas, chegando ao fim do primeiro ano, quais são os aspectos em que você acha que ele já impactou?

Ele impactou principalmente na percepção que as pessoas têm da Igreja. E existe algo de milagroso na rapidez da mudança. O mundo todo olha para o papa e para a pregação dele com assombro, interesse, simpatia. E as pessoas mais impressionadas com Francisco parecem ser exatamente as que até ontem pareciam as mais distantes e desconfiadas da Igreja. Francisco lançou as bases para uma renovação profunda da Cúria Romana. Para libertá-la do centralismo burocrático excessivo e da doença do carreirismo eclesiástico. As primeiras nomeações de cardeais foram um sinal bem real nessa direção. Termina o automatismo que levava certos cargos do Vaticano ou certas dioceses a reivindicar o cardinalato quase que por direito divino. Outro discurso muito poderoso foi na composição da Congregação para os Bispos, um dos dicastérios mais influentes da Cúria, porque é lá que se decide a “fisionomia” da “classe dirigente” da Igreja católica. Francisco quer bispos “com cheiro de ovelha”, não funcionários; quer que eles fiquem perto do povo, pregando com a vida o evangelho da misericórdia que é o “proprium” de Cristo.

Comparando com o Bergoglio que você conhecia de antes, quais aspectos do papa Francisco mais impressionam você? Por quê?

A força, a determinação tranquila, a obstinação alegre com que ele realiza as escolhas dele. Desde a decisão de viver em Santa Marta, e a recusa a ser gerido por uma corte, até os discursos que estão causando terremotos na Conferência Episcopal Italiana. Eu o vejo mais forte e mais sereno. Ele não se deixa estressar pela enormidade da reforma nem pelo peso das resistências. Nós vemos que ele repousa em Deus, que ele sente que está fazendo o que Deus pede, e ele vai em frente decidido, arcando com um grande esforço, mas sem nunca perder a serenidade. E eu me encanto com o que vejo nos fiéis, como reflexo disso, quando estou na Praça São Pedro como repórter: assombro, emoção, gratidão. Como acontecia com os discípulos na Palestina há dois mil anos, quando eles assistiam assombrados e comovidos à pregação e aos atos de Jesus. Porque a verdadeira reforma é retornar àquelas origens. E isso não é uma coisa que você pode programar na escrivaninha, como nos ensinou o grande papa Bento XVI: é a graça que Deus concede a certas pessoas em certos períodos. Para facilitar para todos o seguimento do bom, do verdadeiro, do belo.

Estão surgindo resistências tanto nos ambientes mais próximos do papa quanto em outros círculos eclesiais. Você concorda com essa constatação? Qual é a "extensão" disso?

Há resistências, digamos, ideológicas, e resistências psicológicas e de poder. Uma parte do establishment eclesiástico censura o papa por falar muito pouco contra os males morais que estiveram no centro de muita energia e de muitas batalhas políticas da hierarquia católica nas últimas décadas: aborto, eutanásia, casamento gay… Obviamente, o papa Francisco compartilha os mesmos princípios e definiu como "horror" o drama das crianças não nascidas, vítimas do aborto. Mas ele quer conquistar almas, ele se interessa pela salvação, que é a felicidade das almas, inclusive e especialmente das pessoas mais afastadas. E ele entende, porque é um homem de Deus e um pastor com muita experiência de campo, que o cristianismo não entra nos corações à força, repetindo obsessivamente uma série de “nãos”; ele entra quando atrai. Uma "beleza que nos precede e nos põe a caminho", como ele disse no ângelus da Epifania, falando dos Reis Magos. Eu tenho plena certeza de que só olhar com espírito puro para a ternura com que o papa Francisco se relaciona com os idosos, com os deficientes, com as crianças doentes, tem uma eficácia educacional mil vezes mais concreta e persuasiva do que muitos editoriais implacáveis contra a eutanásia e o aborto. Só a obtusidade de uma certa militância católica, de um certo “cristianismo” ideológico sem Jesus é que não consegue ver nem se alegrar com isso.

E as resistências psicológicas e de poder?

A ideologia às vezes é só uma máscara. Há um mundo clerical, não todos, felizmente, mas uma parte, que se sente exposta, na sua mesquinhez espiritual, pela pregação e pelo testemunho de Francisco. Aqueles que têm o teto de vidro, como me disse ontem, com muita simplicidade, um colaborador honesto dos últimos três papas. É a mesma raiva latente dos escribas e dos fariseus na presença humilde e verdadeira de Jesus, uma presença que eles não conseguiam controlar dentro dos esquemas deles. É difícil quantificar essas resistências, até porque não existe parâmetro para medir o coração de uma pessoa, mas essas resistências existem e o papa está bem consciente delas. Às vezes são interesses econômicos externos ao Vaticano, que têm medo de perder as suas referências.

Qual é o segredo da transversalidade deste papa, que consegue falar para todos? Não seria a preferência dele por apelos gentis em vez do bastão do anátema?

A gentileza… Eu gosto dessa palavra. Há uma delicadeza, até uma discrição que faz parte do coração da experiência cristã, porque a fé é uma graça; quem a vive sabe que ninguém pode ser forçado a crer. Assim como ninguém pode se apaixonar por ordem de outros. Acontece… Como a surpresa de um encontro. O cristão, o cristão verdadeiro, presta um verdadeiro culto à liberdade. Por favor, desculpe, obrigado… As três palavras que o papa Francisco indica a todos como o segredo de uma boa vida familiar são palavras profundamente cristãs. Um crente as utiliza de forma espontânea no seu relacionamento com Jesus: desculpe, obrigado… Consciência do próprio mal e gratidão pelo perdão recebido. Isso eu aprendo com Francisco, na esteira do papa Ratzinger: quanto mais a Igreja volta ao essencial, ao mistério da misericórdia, que é o verdadeiro coração do Evangelho, mais ela se torna “transversal”, capaz de encontrar cada pessoa e a pessoa toda, nas suas feridas e nos seus desejos, desejo que, em seu nível mais profundo, é universal; une o esquimó e o índio, o homem culto europeu e as massas humanas do Chifre da África que fogem da fome e da pobreza.

Gentileza, mas Francisco também lançou invectivas severas contra a corrupção da política e contra a desumanidade de uma economia que mata…

Mesmo nessas tomadas de posição, o que me impressiona em primeiro lugar é a força livre do papa. Ele diz coisas de uma verdade evidente e sacrossanta: por exemplo, que as pessoas fazem um drama enorme por causa de uma pequena queda na bolsa, mas perdem a capacidade de chorar pelos refugiados que morrem no mar ou dão de ombros se quem morre é um drogado ou um mendigo: descartes humanos, numa sociedade em que é o dinheiro quem manda. Mas se essas denúncias fossem só políticas, elas não teriam o mesmo efeito. As pessoas percebem também nessas palavras duras de Francisco um afeto de coração pela pessoa, cujo valor não depende da estima do poder, mas do fato de existir, de ter sido querida por Deus. E isso impressiona e educa. Quanto à preferência pelos pobres, que são "a carne de Cristo", não é populismo peronista ou marxismo. Francisco diz que é uma questão teológica: um Deus onipotente decide se tornar pobre por amor aos homens. Compartilhar as necessidades, inclinar-se para a humanidade mais machucada é o método de Deus.

É um papa que acredita na eficácia da oração, inclusive na eficácia "política", como ele disse na mensagem para a Páscoa, recordando a vigília de oração e jejum pela paz na Síria.

Em setembro, parecia questão de horas uma intervenção militar norte-americana contra a Síria. O papa acreditava que ela só iria piorar as condições da população síria, já martirizada por uma guerra civil feroz. Na vigília de oração e na jornada de jejum, participaram milhões de fiéis do mundo inteiro, não só os católicos; muitos não crentes também. Muito provavelmente, aquela mobilização espiritual simples, mas intensa, contribuiu para parar um ataque aparentemente inevitável. Mas o papa com certeza não acha que ele resolveu o drama sírio. Nunca houve triunfalismo nas palavras dele. Até porque ainda estão morrendo na Síria. Francisco vai continuar exortando a comunidade internacional a procurar com convicção uma solução política para acabar com a guerra. E, ao mesmo tempo, ele vai continuar orando e pedindo que todos nós oremos pela paz. Ele, muito mais do que nós, acredita mesmo na eficácia da oração. Uma vez, ele disse que não devemos ter medo de levantar a voz, de lutar com Deus para que ele se volte para nós e finalmente escute o nosso grito.

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