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A crise dos abusos sexuais é a vergonha da Igreja

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Tomas Fano

Daniel McInerny - Aleteia Vaticano - publicado em 14/02/14

Mas a ingerência da ONU na doutrina moral católica foi notória

Em seu recente relatório que avalia a resposta do Vaticano à crise dos abusos sexuais por parte do clero, a Comissão da ONU sobre os Direitos da Criança pediu que a Igreja "revise" as suas posições sobre o aborto, a contracepção, a fornicação, a atividade homossexual e o casamento entre pessoas do mesmo sexo.

A Comissão não pode ter achado que seria levada a sério. Mesmo assim, ela pressionou.

No caso do aborto, a Comissão pediu, sem a menor cerimônia, que a Igreja mudasse a sua doutrina porque ela "acarreta riscos óbvios para a vida e para a saúde das meninas grávidas". Além disso, também pediu que a Igreja "altere o cânon 1398 [do Código de Direito Canônico], relativo ao aborto, a fim de identificar as circunstâncias em que o acesso a serviços de aborto pode ser permitido".

No tocante à homossexualidade, "mesmo considerando positiva a afirmação progressista feita em julho de 2013 pelo papa Francisco", a Comissão expressou preocupação "com as declarações anteriores da Santa Sé sobre a homossexualidade, que contribuem para a estigmatização social e para a violência contra adolescentes lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros e contra crianças criadas por casais do mesmo sexo".

Sobre as famílias do mesmo sexo, a Comissão expôs a sua consternação com o fato de que "a Santa Sé e a Igreja dirigem instituições que não reconhecem a existência de diversas formas de famílias e que, muitas vezes, discriminam as crianças com base na sua situação familiar".

A Comissão criticou ainda o entendimento da Igreja sobre a complementaridade dos sexos, que são iguais em dignidade: "A Comissão lamenta que a Santa Sé continue a enfatizar a promoção da complementaridade e da igualdade em dignidade, dois conceitos que diferem da igualdade na lei e na prática, prevista pelo artigo 2º da Convenção, e que são frequentemente usados para justificar a legislação e as políticas discriminatórias".

Até mesmo os livros didáticos usados nas escolas católicas foram objeto de escrutínio: "A Comissão também lamenta que a Santa Sé não forneça informações precisas sobre as medidas tomadas para promover a igualdade entre meninas e meninos e para eliminar os estereótipos de gênero dos livros didáticos das escolas católicas, conforme solicitado pela Comissão em 1995".

A Comissão da ONU sobre os Direitos da Criança fez um relatório claramente influenciado pela sua própria oposição bélica aos ensinamentos morais da Igreja, ensinamentos que a ONU enxerga como totalmente fora de sintonia com os seus pontos de vista autoproclamados "progressistas". A Comissão sobre os Direitos da Criança, que é formada por especialistas independentes de 18 países, é o órgão de monitoramento do Tratado da ONU sobre os Direitos da Criança, do qual a Santa Sé é signatária. Mas, como observou Austin Ruse, presidente do Instituto Católico dos Direitos Humanos e da Família (C- FAM) e especialista da Aleteia, "a Comissão extrapolou completamente o escopo do tratado ao pedir que a Igreja mude os seus ensinamentos atemporais sobre a santidade da vida humana, a homossexualidade, a fornicação e a contracepção. O tratado que eles monitoram não aborda absolutamente nenhuma dessas questões. É duplamente preocupante que a Comissão trate destes assuntos no contexto da infância. Esse tipo de relatório só consegue prejudicar o respeito pelo direito internacional e pelos verdadeiros direitos humanos".

O também especialista da Aleteia Tim Drake, coordenador da Nova Evangelização para a Comunidade Católica da Região de Holdingford, afirma: "O relatório da ONU destaca a tremenda divisão moderna entre o sagrado e o laico, e a Comissão dos 18 especialistas da ONU representa obviamente o ‘lado’ laico. É evidente que o relatório vai além do escopo da ONU e acaba posicionando a organização como uma espécie de “igreja paralela” que, pelo que parece, se acha no direito de ditar doutrinas para a Igreja católica. Uma ingerência dessas ultrapassa clamorosamente as fronteiras entre a Igreja e o Estado".

Em entrevista à Rádio Vaticano, o arcebispo dom Silvano Tomasi, observador permanente da Santa Sé perante as Nações Unidas em Genebra, declarou que o relatório da Comissão deixou de fora muitas medidas que a Igreja tomou para responder à crise dos abusos sexuais cometidos pelo clero. A primeira reação de Tomasi ao relatório foi "de surpresa" pelos seus "aspectos negativos". Ele afirmou que o relatório parece "já ter sido preparado antes mesmo da reunião da Comissão com a delegação da Santa Sé", em meados de janeiro. Nessa reunião de janeiro, o Vaticano "detalhou respostas precisas sobre vários pontos, que sequer foram relatados neste documento conclusivo ou pelo menos não parecem ter sido considerados com a devida seriedade".

Dom Tomasi afirma que o relatório não conseguiu enxergar que os ensinamentos morais da Igreja são uma expressão da sua liberdade religiosa, e declarou que organizações não-governamentais acusadas de fazer lobby a favor do casamento gay e de outras questões afins exerceram influência sobre o relatório.

A extrapolação da Comissão da ONU pode prejudicar a sua legítima causa em prol da proteção e da defesa das vítimas de abuso sexual. É o que argumenta John L. Allen Jr. no Boston Globe. Allen afirma que o relatório "pode até fortalecer aqueles que ainda negam os escândalos de abuso na Igreja, permitindo-lhes tachar o relatório da ONU de mera crítica laica instrumentalizada pela política".

A distração criada pela crítica fora de lugar que o relatório faz aos ensinamentos da Igreja, sustenta Allen, também ofusca o trabalho que a Comissão das Nações Unidas e a Igreja estão fazendo para atingir objetivos em comum. "Por exemplo, a Comissão sugere que a nova comissão pontifícia para a proteção da criança, que o papa Francisco criou e anunciou em dezembro, deve assumir não apenas a investigação das acusações de abuso, mas também os casos de bispos que ‘baixaram a guarda’ na aplicação da nova política da Igreja de tolerância zero". Como o mesmo Allen observa, porém, há também os exemplos de poderosos homens da Igreja que estão muito empenhados em aplicar a política de "tolerância zero" da Igreja contra os abusos sexuais: por exemplo, o bispo auxiliar Charles Scicluna, de Malta, promotor vaticano que denunciou o pe. Marcial Maciel, fundador dos Legionários de Cristo, e o cardeal Sean O'Malley, de Boston, que declarou, em maio de 2010, que é necessário remover do cargo qualquer bispo que acoberta um padre plausivelmente acusado de abuso sexual.

Infelizmente, Allen também deixa claro que há forças poderosas dentro da Igreja –ele cita a Conferência dos Bispos Italianos– que continuam complacentes diante da crise. O relatório da ONU aponta uma cultura de impunidade dos agressores. Seja qual for o grau de consistência dessa cultura dentro da Igreja, ela deve ser extirpada.

Ainda restam sérios mal-entendidos sobre o que é exatamente essa crise dos abusos sexuais. Tim Drake recorda um estudo de 2004, da Faculdade John Jay de Direito Criminal, sobre a natureza e o alcance da crise: o estudo concluiu que 81% das acusações de abusos cometidos por membros do clero tem como vítimas pessoas do sexo masculino, 78% dos quais eram “pós-púberes”. Comenta Drake: "O relatório da ONU, que critica os ensinamentos da Igreja sobre a sexualidade humana, poderia ter examinado a conexão entre a sexualidade desordenada nas comunidades religiosas e o abuso sexual contra adolescentes do sexo masculino. O fracasso do relatório ao omitir essa análise é mais ou menos do tamanho de um elefante sentado na sala de estar da ONU".

Mas, por mais que as declarações de Tim Drake sejam verdadeiras, não importa, em certo sentido, se as vítimas dos abusos eram “pré” ou “pós-púberes”. O que mais importa é que há vítimas e que os próprios padres da Igreja as tornaram vítimas. Para seu grande crédito, dom Tomasi não isentou a Igreja do dever da transparência na resposta permanente à crise: "Nós temos que insistir nesta política de transparência", disse ele, "de tolerância zero ao abuso, porque até mesmo um único caso de abuso infantil já seria demais!".

Outro especialista consultado pela Aleteia, o pe. Joseph Fessio, declarou o seguinte sobre a situação atual da crise dos abusos sexuais nos Estados Unidos:

“Os bispos, pelo menos nos EUA, onde eu estou familiarizado com a situação, instituíram e executaram políticas que protegem o jovem, e fizeram isso tão eficazmente que é possível afirmar que os jovens estão mais seguros hoje nas instituições católicas do que em quaisquer outras instituições do país, incluindo, sem dúvida nenhuma, o sistema das escolas públicas. O relatório da ONU está muito defasado sobre essa questão, pelo menos no caso dos EUA. E os bispos do país não só removeram do ministério os padres abusadores como, num excesso de cautela, acabaram afastando também muitos sacerdotes inocentes. Levando tudo isso em conta, ninguém que esteja com todos os fatos na mão pode culpar os bispos, nos últimos anos, de não fazer nada para frear os criminosos reais ou potenciais”.

Fessio continua: “Por outro lado, embora os bispos tenham tomado medidas decisivas, também é verdade que eles não têm sido bem sucedidos na hora de lidar com os crimes dos seus próprios irmãos bispos. A desculpa muito repetida do ‘se eu soubesse antes o que eu que sei agora…’ não se sustenta. No caso dos padres pedófilos, existe pelo menos o fator atenuante de que eles têm um distúrbio psicológico. Mas o que é que pode atenuar a responsabilidade dos bispos que, conscientemente, só moveram padres pedófilos de um lugar para outro sem tomar nenhuma outra medida? Neste ponto, o relatório da ONU poderia ter sido útil”.

E conclui: “Talvez esta seja uma oportunidade para a Igreja responder da seguinte forma: ‘Embora o relatório de vocês seja tão falho e vocês não entendam que a doutrina católica não pode ser mudada nem mesmo pelo papa, nós reconhecemos a validade de algumas das suas críticas e pretendemos levá-las a sério’”.

A Igreja precisa mesmo levar a sério algumas críticas da ONU, já que, afinal, ela só pode culpar a si mesma pelo mau comportamento dos seus membros. Esta crise é a "vergonha da Igreja", como o papa Francisco bem a chamou. Por isso, a vigilância da Igreja no tocante à justiça precisa ser, de agora em diante, total e intransigente.

A arrogância ideológica do relatório da ONU não pode nos levar a fechar os olhos para esse fato. A ONU cometeu um fiasco na sua guerra contra os ensinamentos morais da Igreja, mas será que esta é a única coisa relevante a observarmos nesse recente relatório?

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