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Vaticano e pedofilia: especialista em defesa da criança responde às acusações da ONU

Hans Zollner – pt

AFP PHOTO / GABRIEL BOUYS

ITALY, Rome : German father Hans Zollner, the Vatican's Chair of the Steering Committee of the Centre for the Protection of Minors, arrives at a press conference at the Gregorian University on February 05, 2013 in Rome. AFP PHOTO / GABRIEL BOUYS

Ary Waldir Ramos Díaz - Aleteia Vaticano - publicado em 20/02/14

Hans Zollner: a Igreja é contra os abusos desde sempre, mas "os bispos locais não fizeram a lição de casa e protegeram mais os padres culpados do que as vítimas"

Hans Zollner, S.J., 48 anos, natural de Regensburg, na Alemanha, é professor de psicologia e diretor do Centro para a Proteção dos Menores, da Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma. Nesta conversa com a Aleteia, Zollner explica que a Igreja prevê punições para os agressores, conforme as normas do direito canônico e do direito civil. Ele afasta, assim, o mito da não cooperação da Santa Sé com as autoridades civis locais.

O especialista em prevenção e tratamento de casos de abuso infantil defende a posição da Santa Sé, que exorta as conferências episcopais nacionais a aplicarem ainda as medidas preventivas e de ajuda às vítimas.

Qual é a sua opinião sobre as acusações feitas pela Comissão dos Direitos da Criança, da ONU, contra a Santa Sé?

O tom geral do documento é muito severo com a Santa Sé, apesar de haver indicativos de que a Igreja católica vem agindo contra os abusos. Na maior parte do relatório, nós podemos constatar que eles não levaram em conta tudo o que tem sido feito desde 2001 até hoje, em especial desde 2010: todas as medidas que a Santa Sé tomou para defender os direitos das crianças e para melhorar a situação das vítimas de abuso sexual, além das diretrizes para o tratamento de vítimas e agressores. Tudo, enfim, o que vem sendo feito pela Igreja, especialmente a partir de 2010, 2011.

Como o relatório da comissão da ONU poderia ter feito mais justiça às medidas aplicadas pela Santa Sé no tocante à proteção das crianças?

Há acusações, no documento, que não correspondem à realidade atual. Por exemplo, eles se referem a um caso de 2001, quando o então prefeito da Congregação para o Clero elogiou um bispo que escondia das autoridades civis da França um abuso cometido por um padre. Como foi declarado há quatro anos pelo pe. Lombardi, porta-voz do Vaticano, essa atitude hoje não só não seria possível, como também seria condenada pela Santa Sé diretamente. Isto significa que existe toda uma mudança de atitude, que não é mencionada no relatório. O relatório diz, por outro lado, que todos os abusadores ficaram impunes, o que não é verdade. Os abusadores, sejam padres ou outros membros da Igreja, são punidos de acordo com as normas do direito canônico e do direito civil.

O senhor poderia nos dar um exemplo concreto dos resultados da luta contra a pedofilia?

O papa Bento XVI, nos últimos dois anos do seu pontificado, reduziu quatrocentos sacerdotes ao estado laico por causa de abusos. Esta é a punição mais severa que um sacerdote pode receber da Igreja. O relatório também diz que a Igreja não coopera com as autoridades civis. Isso não é verdade. A própria Santa Sé declarou que as autoridades eclesiásticas têm o dever colaborar com as autoridades civis de cada país. É claro que, para a ONU, é uma coisa difícil de entender: a Igreja não pode substituir o Estado. Ela também tem que seguir as leis do Estado.

As Igrejas locais têm que seguir as regras de cada país?

Sim. A diretriz da Santa Sé, de acordo com as regras oficiais, é que a Igreja, por exemplo, na Colômbia, no Panamá, na Argentina, tem que seguir a lei de cada um desses países no caso de abusos. Cada cidadão tem que respeitar as leis do país em que vive.

O observador permanente da Santa Sé na ONU, dom Silvano Maria Tomasi, afirmou que o documento tinha sido preparado pela comissão antes mesmo da reunião com a delegação da Santa Sé, em janeiro.

Nós sabemos como é que muitos desses documentos são produzidos. Existem partes que estão prontas há meses. O fato é que parece que muitas dessas partes nem foram tocadas depois da adoção das novas regras pela Santa Sé, nem depois do pronunciamento dos representantes da Santa Sé nas Nações Unidas, em 16 de janeiro, já que esses elementos não aparecem no relatório.

O documento da comissão da ONU se concentra em exemplos que apoiam as críticas contra a Igreja.

Os exemplos parecem aleatórios e voltados a uma finalidade específica, sem reconhecer a contribuição das instituições católicas. Na Zâmbia e no Congo, por exemplo, a Igreja católica é provavelmente a instituição mais importante na área da saúde. E ela faz muito mais para proteger as crianças do que qualquer outra instituição, incluindo o próprio Estado.

Por falar em direitos das crianças, a ONU declarou que a Igreja deveria rever a sua doutrina sobre o aborto.

Isto, obviamente, quando se trata de direitos e de proteção das crianças de acordo com a doutrina da Igreja, é uma bofetada inacreditável, porque, para nós, o direito da criança já começa no momento da concepção! E excluir dessa proteção o período de gravidez é inconcebível para a Igreja. Aqui você pode ver como certas ideologias atacam um direito que é fundamental, ou seja, o direito à vida.

Que medidas estão sendo aplicadas pelas Igrejas locais, sob a orientação da Santa Sé, nos casos de sacerdotes ou religiosos suspeitos de abusos?

Em primeiro lugar, existe a norma geral, e depois as regras especiais. A Santa Sé promulgou em 2011, mediante a Congregação para a Doutrina da Fé, um esclarecimento sobre as normas da Igreja em geral e depois pediu que todas as conferências episcopais do mundo apresentassem as diretrizes para a situação de cada país em particular.

Qual é a regra geral nos casos de suspeita de abuso?

Em caso de suspeita, o superior provincial ou o bispo do lugar deve fazer uma investigação prévia. Se surgir uma probabilidade de que ocorreu um abuso, ele tem que enviar o material para uma investigação mais aprofundada por parte da Congregação para a Doutrina da Fé, simplesmente porque, durante muitas décadas, os bispos locais não fizeram a lição de casa, não seguiram as regras da Igreja, ficaram em silêncio, algumas vezes tentaram esconder e proteger mais os padres culpados do que as vítimas. Por este motivo, o papa Bento XVI, quando ainda era prefeito da congregação, em 2000 e 2001, pediu ao papa João Paulo II para concentrar toda a responsabilidade pelo tratamento jurídico desses casos na Congregação para a Doutrina da Fé, precisamente para evitar que a lei da Igreja deixasse de ser aplicada.

O senhor pode nos falar mais sobre o direito canônico e as orientações para as conferências episcopais?

Quando a Congregação [para a Doutrina da Fé] recebe esse material, as denúncias ou suspeitas de abuso, ela começa um processo, de acordo com as normas do direito canônico, e define as sanções, que podem chegar à exclusão do estado clerical.

As diretrizes das conferências episcopais não devem falar somente sobre a aplicação da lei geral da Igreja em relação aos agressores; a Santa Sé pede que as conferências também falem das medidas de prevenção, de como ouvir, de como ajudar as vítimas, e existe uma parte sobre a formação do clero. Infelizmente, algumas conferências episcopais, especialmente na África francófona, ainda não responderam.

Em muitos países onde existem guerras ou desastres naturais é difícil falar de diretrizes desse tipo. Em algumas partes do mundo, encontramos muita resistência a este assunto, não só na Igreja, mas na sociedade como um todo, e por isso é difícil manter diretrizes nessas conferências, mas a maioria, cerca de 90%, já respondeu. Depois disso, elas recebem instruções da Congregação para a Doutrina da Fé e têm que implementar os procedimentos.

O papa Francisco decidiu criar uma comissão para a proteção das crianças vítimas de abuso. O que o senhor acha da possibilidade, já levada em conta pelo papa, de que esta comissão seja incorporada à Congregação para a Doutrina da Fé?

Eu acho que é o lugar certo para uma comissão desse tipo, porque uma comissão fora de qualquer congregação não conseguiria o apoio necessário para trabalhar direito. Eu acho que vai depender da tarefa específica da nova comissão. Espero que, dentro de algumas semanas, sejam definidos os nomes dos membros e a organização dos trabalhos.

Quais são os nós que a comissão de proteção das crianças vai ter que desatar?

Eu acho que ela vai ajudar a Congregação [para a Doutrina da Fé] a identificar os pontos nevrálgicos em que a Santa Sé e a Igreja em geral precisam melhorar. Por exemplo, na famosa pergunta sobre a corresponsabilidade dos bispos. Nós não temos clareza plena sobre a questão: no caso de um bispo que não aplica as leis do país nem as leis da Igreja, qual é a responsabilidade dele quando um padre sob a sua responsabilidade abusa de uma criança e o bispo encobre o caso?

Precisamos ter muito mais clareza sobre o que fazer exatamente, como fazer e quais serão os procedimentos. Sobre este ponto, não temos muita coisa ainda, exceto isso: pedir que esses bispos ou superiores provinciais percam o cargo.

Uma das tarefas de uma comissão é identificar certos pontos-chave e ajudar as autoridades. Neste caso, não só ajudar a Congregação para a Doutrina da Fé, mas também a Secretaria de Estado e a Congregação para os Bispos, para tomar as medidas adequadas.

O documento da Comissão da ONU propõe que a Santa Sé torne públicas todas as investigações sobre padres e religiosos envolvidos em casos de abuso.

Não, a Igreja não faz isso e não pode fazer isso. Nenhum país faz isso. Eu fico muito espantado ao ver a ONU pedindo isso. Por que a ONU não exige que o Estado alemão ou o Estado italiano revelem quantos dos seus professores cometeram abusos? Isso não é possível, por motivos de direito pessoal e de direito profissional.

Esses pedidos não podem ser atendidos, simplesmente porque não podemos violar um direito, o direito da personalidade, e o direito de ser considerados inocentes até o momento da condenação. Neste sentido, seria um grande risco tentar aplicar outras normas que não respondessem aos direitos humanos, que todos possuem.

Quais foram os resultados obtidos pelo Centro para a Proteção dos Menores dentro da Universidade Gregoriana?

O Centro para a Proteção dos Menores da Gregoriana atua com alguns parceiros em algumas dioceses do mundo: duas na África, três na América Latina (Chile, Argentina e Equador), duas na Ásia (na Indonésia e na Índia), onde trabalhamos com os jesuítas, e em três países da Europa (Itália, Alemanha e Polônia).

Vocês também oferecem formação online para ajudar as vítimas e tomar medidas preventivas, correto?

Nós oferecemos um programa de e-learning, que é uma modalidade do ensino à distância, para multiplicadores, pessoas que trabalham nas paróquias e nas escolas católicas, para que elas reconheçam abusos que estejam acontecendo, ou que já aconteceram, e saibam o que fazer com a vítima, como lidar com o agressor, quais são as leis do país, como proceder. Além disso, nós também colocamos a questão espiritual e teológica: o que é que Deus quer nos dizer com tudo isso?

Temos no momento entre 800 e 900 participantes, em todo o mundo, nesta fase-piloto, que termina no final deste ano, mas também temos um resultado indireto graças à nossa presença local. Nós estamos presentes em países onde nem sequer se falava de abusos antes, nem na sociedade, nem na Igreja. Um resultado indireto é que nós temos a oportunidade de promover uma discussão mais ampla, de sensibilizar toda a sociedade, e muitas pessoas dentro da Igreja, para a necessidade de trabalhar pelo bem das crianças e de fazer tudo isso para evitar ou reduzir os abusos tanto quanto possível.

O que o papa Francisco acha do trabalho que o Centro está fazendo?

Nós nos reunimos com o papa Francisco no dia 4 de junho e mostramos a ele o que estamos fazendo no Centro. Ele ouviu com muita atenção e nos encorajou várias vezes, dizendo que "nós temos que ir em frente com isso, coragem!". Enfim, ele levou o projeto muito a sério. Além disso, o próprio fato de criar uma comissão no Vaticano mostra que ele tem um grande interesse no tratamento adequado deste assunto.

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