No consistório em Roma, os cardeais africanos dão voz a uma Igreja que precisa libertar a instituição familiar de amarras tribais ancestrais
Uma menina de 10 anos casada com um homem de 60, que, para possuí-la, entregou ao pai dela 17 vacas, um balde de farinha de trigo, cinco litros de óleo, dois pares de calças, um par de sapatos usados e um celular sem bateria. Outra adolescente, de 13 anos, foi informada do próprio casamento apenas três dias antes da cerimônia: ela seria entregue a um estranho de quem nem sequer sabia o nome.
No consistório em Roma, os cardeais africanos dão voz a uma Igreja que precisa libertar a instituição familiar de amarras tribais ancestrais e promover o respeito pela pessoa humana.
As normais tribais relativas à família ainda são influentes e admitidas por quase todas as constituições africanas, que reconhecem os direitos consuetudinários justamente em matéria de família e sucessão. Acontece que essas tradições não só contrastam com os preceitos cristãos, mas violam os direitos humanos universais e criam situações domésticas muitas vezes insustentáveis. As regras tradicionais sobre a constituição de cada unidade familiar tornam difícil (e pior, “desnecessário”) estabelecer dentro delas relações igualitárias, baseadas na confiança e na colaboração.
A tradição local ensina que os casamentos são combinados e até impostos: é proibido, impensável, decidir livremente com quem e quando casar. Em certos grupos étnicos africanos, os chefes de família impõem aos filhos os cônjuges que consideram convenientes, sem se importar com a vontade dos filhos nem lhes dar tempo para se conhecerem: são os casamentos forçados. Em outros grupos étnicos, o consentimento do filho é necessário, pelo menos formalmente, mas continuam sendo os pais que propõem a união: são os casamentos arranjados. Outras etnias admitem que os interessados, ou pelo menos os homens, tomem a iniciativa, mas o casamento não pode ser celebrado sem a permissão dos pais, que têm o direito de negá-lo de forma inquestionável. Em todos os casos, nessas sociedades tribais, são as famílias que representam os interesses das respectivas comunidades e são elas que discutem os termos dos contratos matrimoniais. Se elas não chegarem a nenhum acordo, a união não será permitida.
Uma segunda instituição, o preço da noiva, é o cerne do contrato matrimonial para centenas de tribos africanas. Nas sociedades em que esta prática é adotada, o homem que pretende se casar deve oferecer à família da noiva uma “compensação”, em bens ou em dinheiro, pelos gastos que a família teve com a criação da jovem e pelo recurso de procriação e produção que a família está cedendo. As negociações para determinar o preço, as formas de pagamento e as condições de entrega da noiva são decisivas para o contrato de casamento: mesmo quando os pais aceitam a escolha conjugal dos filhos, o casamento pode não sair se as famílias não chegarem a um acordo sobre o preço da noiva. A quitação total (que pode demorar anos quando as cifras ou a quantidade de bens é elevada) garante à família do noivo uma espécie de direito de propriedade sobre a mulher adquirida e sobre os filhos que ela gerar depois do contrato. Esses direitos permanecem vigentes mesmo em caso da morte do marido. Após o período de luto, as viúvas são obrigadas a se casar com um dos irmãos ou primos do falecido, podendo ter, às vezes, o direito de escolher qual deles. Esta instituição é conhecida como levirato.
Casamento combinado e preço da noiva, duas realidades ainda muito comuns na África, violam a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a convenção da ONU para a eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres. Como é fácil imaginar, essas práticas têm impacto muito negativo na união familiar e especialmente no destino das mulheres: assim como os homens, elas são obrigadas a se casar de acordo com essas regras, mas, para piorar a própria situação, elas são entregues em casamento, muito frequentemente, ainda na adolescência ou até mesmo na infância.