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Muito além dos divorciados recasados: a família na África enfrenta problemas estarrecedores

Matrimonio africano – pt

© Public Domain

La Nuova Bussola - publicado em 27/02/14

No consistório em Roma, os cardeais africanos dão voz a uma Igreja que precisa libertar a instituição familiar de amarras tribais ancestrais

Uma menina de 10 anos casada com um homem de 60, que, para possuí-la, entregou ao pai dela 17 vacas, um balde de farinha de trigo, cinco litros de óleo, dois pares de calças, um par de sapatos usados e um celular sem bateria. Outra adolescente, de 13 anos, foi informada do próprio casamento apenas três dias antes da cerimônia: ela seria entregue a um estranho de quem nem sequer sabia o nome.

No consistório em Roma, os cardeais africanos dão voz a uma Igreja que precisa libertar a instituição familiar de amarras tribais ancestrais e promover o respeito pela pessoa humana.

As normais tribais relativas à família ainda são influentes e admitidas por quase todas as constituições africanas, que reconhecem os direitos consuetudinários justamente em matéria de família e sucessão. Acontece que essas tradições não só contrastam com os preceitos cristãos, mas violam os direitos humanos universais e criam situações domésticas muitas vezes insustentáveis. As regras tradicionais sobre a constituição de cada unidade familiar tornam difícil (e pior, “desnecessário”) estabelecer dentro delas relações igualitárias, baseadas na confiança e na colaboração.

A tradição local ensina que os casamentos são combinados e até impostos: é proibido, impensável, decidir livremente com quem e quando casar. Em certos grupos étnicos africanos, os chefes de família impõem aos filhos os cônjuges que consideram convenientes, sem se importar com a vontade dos filhos nem lhes dar tempo para se conhecerem: são os casamentos forçados. Em outros grupos étnicos, o consentimento do filho é necessário, pelo menos formalmente, mas continuam sendo os pais que propõem a união: são os casamentos arranjados. Outras etnias admitem que os interessados, ou pelo menos os homens, tomem a iniciativa, mas o casamento não pode ser celebrado sem a permissão dos pais, que têm o direito de negá-lo de forma inquestionável. Em todos os casos, nessas sociedades tribais, são as famílias que representam os interesses das respectivas comunidades e são elas que discutem os termos dos contratos matrimoniais. Se elas não chegarem a nenhum acordo, a união não será permitida.

Uma segunda instituição, o preço da noiva, é o cerne do contrato matrimonial para centenas de tribos africanas. Nas sociedades em que esta prática é adotada, o homem que pretende se casar deve oferecer à família da noiva uma “compensação”, em bens ou em dinheiro, pelos gastos que a família teve com a criação da jovem e pelo recurso de procriação e produção que a família está cedendo. As negociações para determinar o preço, as formas de pagamento e as condições de entrega da noiva são decisivas para o contrato de casamento: mesmo quando os pais aceitam a escolha conjugal dos filhos, o casamento pode não sair se as famílias não chegarem a um acordo sobre o preço da noiva. A quitação total (que pode demorar anos quando as cifras ou a quantidade de bens é elevada) garante à família do noivo uma espécie de direito de propriedade sobre a mulher adquirida e sobre os filhos que ela gerar depois do contrato. Esses direitos permanecem vigentes mesmo em caso da morte do marido. Após o período de luto, as viúvas são obrigadas a se casar com um dos irmãos ou primos do falecido, podendo ter, às vezes, o direito de escolher qual deles. Esta instituição é conhecida como levirato.

Casamento combinado e preço da noiva, duas realidades ainda muito comuns na África, violam a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a convenção da ONU para a eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres. Como é fácil imaginar, essas práticas têm impacto muito negativo na união familiar e especialmente no destino das mulheres: assim como os homens, elas são obrigadas a se casar de acordo com essas regras, mas, para piorar a própria situação, elas são entregues em casamento, muito frequentemente, ainda na adolescência ou até mesmo na infância.


A instituição do casamento infantil, sempre forçado e afetando quase exclusivamente as crianças do sexo feminino, é generalizada e persistente na África. Em termos globais, 12% das mulheres entre os 20 e os 24 anos se casaram antes dos 15 anos de idade; na África, este percentual sobe substancialmente para 75% no Níger, 72% no Chade e 63% na Guiné. Não por acaso, os três países são de vasta maioria muçulmana: o islã admite o casamento de meninas a partir dos 9 anos de idade.

Nos países de população predominantemente cristã, a influência da religião tem permitido avanços significativos. Na Etiópia, por exemplo, entre 2005 e 2010, o número de casamentos infantis caiu 20%, mas ainda está acima de 40% do total. Resta muitíssimo a ser feito. Mais difícil ainda, inclusive para os cristãos, é renunciar ao preço da noiva e deixar os filhos livres para escolherem com quem se casar. São instituições tribais fundamentais: abandoná-las significa “minar” todo o sistema familiar e social tradicional dessas culturas, retransmitido geração após geração ao longo de milhares de anos, por fidelidade aos ancestrais fundadores do grupo. É uma ruptura muito difícil com o passado: para pessoas que foram ensinadas a preservar devotamente as tradições tribais, rompê-las exporia as famílias a um ostracismo social cujas consequências também podem ser muito dolorosas.

A mudança se torna possível quando os indivíduos e famílias são separados do contexto da comunidade ou atenuam os seus vínculos com ela, como, por exemplo, quando migram para os centros urbanos. Ou, melhor ainda, quando toda uma comunidade, unida em torno a uma igreja, decide ela própria mudar.

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