A escuridão existe em todos nós, mesmo que não gostemos de admitir
Na série policial filosófica da HBO, "True Detective", Rust Cohle (Matthew McConaughey) passa boa parte do tempo contemplando um mundo em que só existe o material, mas acaba se entretendo, frequentemente, com questões mais “místicas”, como a ideia do “eterno retorno”, de Nietzsche ("Me disseram que o tempo é um círculo plano", murmura ele. "Tudo o que já fizemos ou faremos nós vamos fazer de novo, e de novo, e de novo…").
E entra em jogo também o cristianismo. Cohle se vê sempre às voltas com o materialismo, mas está disposto e é capaz de esmiuçar "a ilusão de Deus" que ele observa no Estado da Louisiana. Políticos obscuros, pregadores excêntricos e fiéis neuróticos parecem confirmar a intuição de Cohle: a religião só torna um lugar ruim pior ainda.
"A falácia ontológica de esperar uma luz no fim do túnel", começa ele, acompanhado de uma cerveja Lone Star e da fumaça do cigarro. "É isso que o pregador vende. A mesma coisa que o psiquiatra. O pregador incentiva a capacidade de ilusão da pessoa e depois diz que é uma virtude. Sempre tem um dinheirinho nisso. E uma impressão tão desesperada de que se tem direito… ‘Tudo isso é para mim’".
Então ele levanta os olhos para o céu, zombando daquilo que chama de egocentrismo do pensamento religioso: "Eu… eu… me… me… Eu sou tão importante!".
Matthew McConaughey, o ator que deu vida a esse personagem, fez um discurso no Oscar, no início deste mês, que soou diferente:
"Primeiro, eu quero agradecer a Deus, porque é para Ele que eu olho em primeiro lugar. Ele embelezou a minha vida com oportunidades que eu sei que não surgiram de mim nem de mão humana nenhuma. Ele me mostrou, como um fato científico, que a gratidão é retribuidora. Nas palavras do falecido Charlie Lawton: ‘Se você tem Deus, você tem um amigo’".
Como o personagem Cohle reagiria se estivesse nos bastidores esperando pelo seu intérprete McConaughey?
Nem precisamos imaginar. Num artigo intitulado "Para que colocar Deus no meio disso, Matthew McConaughey?", o jornalista Sam de Brito, no diário australiano Sydney Morning Herald, canaliza perfeitamente a atitude que seria de se esperar de Cohle:
"Foi como se eu descobrisse que um grande amigo vê fantasmas… Isso cai bem no contexto cristão, que fala de um Deus onisciente, todo poderoso e todo amoroso, que escuta o minúsculo canal das orações individuais (…) [Mas não esperamos] ouvir tal absurdo proferido por uma estrela de cinema".
O verdadeiro drama de "True Detective", de certa forma, é justamente a jornada de Cohle rumo à luz da fé, a partir da escuridão do cinismo.
No terceiro episódio, começamos a ver o quanto este materialista professo critica a fé. Ele zomba de um pregador itinerante que dá um longo e apaixonado sermão, murmurando baixinho sobre o QI da multidão e o mercantilismo grosseiro daquele tipo de serviço. Mas, num clipe estendido postado na web, podemos ouvir o sermão na íntegra:
O espírito de Flannery O’Connor está em toda parte em "True Detective", particularmente nesta cena. A novelista católica sempre insistiu no papel da graça em suas histórias sobre fundamentalistas bíblicos e pregadores de rua niilistas. "A natureza humana resiste vigorosamente à graça", disse ela em certa ocasião, "porque a graça nos muda e a mudança é dolorosa".
Cohle, assombrado pelo seu passado fragmentado e pelo caso perturbador que tem nas mãos, está muito longe do conteúdo do sermão. Será por causa do dualismo febril do pregador? Dos olhares crédulos da multidão? Da desconfiança de que existem potenciais suspeitos ao seu redor? Ou, no fundo, será por causa do seu próprio coração ferido?