Algumas verdades bastante inconvenientes sobre o radicalismo libertário
Na semana passada, usamos a guerra contra as drogas como um exemplo para analisar a teoria da autopropriedade ou posse de nós mesmos: trata-se do princípio libertário radical que afirma que nenhum de nós deve nada a ninguém, a menos que livremente concorde em ceder algo a outra pessoa como presente ou objeto de troca.
De acordo com os dogmas da autopropriedade, escritos ao bel-prazer de autores como Ayn Rand e Murray Rothbard, cada um de nós é um “self-made man”, um indivíduo que se faz sozinho na vida, um criador do próprio destino, que não deve satisfações a ninguém; um individualista que conquistou da natureza implacável tudo aquilo que tem e tudo aquilo que é. A imagem desse tipo de homem se reflete na cultura popular através de obras em que o homem desajustado, solitário, proscrito, é tido como herói por se recusar a ser intimidado ou seduzido pela multidão. O filósofo Edward Feser resumiu assim a teoria subjacente a essa imagem:
libertários. Os direitos naturais à vida, à liberdade e à propriedade (cuja proteção, de acordo com o libertário, é a única função legítima do governo) derivam da autopropriedade, em particular da propriedade que cada um tem do próprio corpo e das suas partes, das próprias capacidades e do próprio trabalho, e, por extensão, de tudo aquilo que um indivíduo pode adquirir com o exercício não-coercitivo dessa autopropriedade. Nesta perspectiva, o governo não pode, legitimamente, interferir no uso que um indivíduo faz do seu corpo, das suas habilidades, etc., desde que esse uso não viole os direitos dos outros e mesmo nos casos em que esse uso por parte do indivíduo pudesse ser tido por imoral em outras circunstâncias: por exemplo, se alguém decide usar drogas ou beber noite após noite até entrar em coma, o Estado não teria direito algum de impedi-lo".
Em contrapartida, o libertário também considera que, se o Estado não tem o direito de impedir ninguém de se autodestruir, ele também não tem qualquer obrigação de resgatá-lo. As pessoas que provocam a própria falta de emprego ou a própria doença por causa dos seus maus hábitos devem lidar com as consequências sozinhas; ou, no máximo, com a caridade voluntária de particulares. Aliás, até as pessoas que são pobres demais para bancar moradia, alimentação e assistência médica, ainda que a sua pobreza não seja culpa delas mesmas, só devem contar com a ajuda de voluntários do setor privado; o Estado não deveria se ocupar com nenhuma forma de redistribuição de renda baseada na visão de justiça social imposta por quem está no poder.
Esta postura exerce um grande fascínio sobre muita gente, especialmente em nosso contexto político de galopante socialismo laico, que nos arrasta para a meta esquerdista do Estado-babá sub-humanista. A versão que Murray Rothbard apresenta do radicalismo libertário anarco-capitalista tem seduzido um surpreendente número de crentes pró-vida, o que se deve, sem dúvida, ao seu aparente “rigor filosófico” e à sua contrariedade às intromissões do Estado laico. Mas consideremos também o que Rothbard escreve sobre maternidade e família:
aborto é o direito absoluto que todo homem tem à posse de si mesmo. Isto implica, imediatamente, que toda mulher tem direitos absolutos sobre o seu próprio corpo e sobre tudo o que há dentro dele, inclusive o feto. A maioria dos fetos só está no útero da mãe porque a mãe permite, porque a mãe dá o seu consentimento livremente. Mas se a mãe decide que não quer mais o feto, ele se torna um ‘invasor’ parasitário dentro dela; neste caso, a mãe tem o perfeito direito de expulsar esse invasor do seu domínio. O aborto não deve ser encarado como o "assassinato" de uma pessoa viva, mas sim como a expulsão de um invasor indesejado de dentro do corpo da mãe. Quaisquer leis que restringem ou proíbem o aborto são invasões dos direitos das mães".