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Os gigantes de “Noé”

The Giants of Noah Paramount Pictures AP Photo Paramount Pictures Niko Tavernise – pt

AP Photo/Paramount Pictures/Niko Tavernise

Daniel McInerny - Aleteia Vaticano - publicado em 02/04/14

Os gigantes que lutam contra Noé no novo filme de Darren Aronofsky têm base bíblica: entenda

"Naqueles dias, havia gigantes sobre a face da terra, pois os filhos de Deus se uniram às filhas dos homens e elas tiveram filhos; estes são os heróis, tão afamados nos tempos antigos" (Gênesis 6,4).

Darren Aronofsky, co-autor e diretor do novo filme “Noé”, estrelado por Russell Crowe, vem sendo criticado pelas liberdades que tomou diante do texto bíblico. Em sua resenha escrita para o New York Times, como exemplo dessa liberdade criativa de Aronofsky, o crítico A. O. Scott observa: "A Bíblia menciona que ‘havia gigantes naqueles dias’, mas não especifica que eles fossem colossos de pedra com seis braços nem que tivessem as vozes de Nick Nolte e Frank Langella".

O caso é que "gigantes" são mesmo mencionados em Gênesis, capítulo 6, versículo 4. A tradução latina da Bíblia (a Vulgata) usa exatamente essa palavra: “gigantes autem erant super terram in diebus illis”. A tradução inglesa, pela New American Bible, escolhe um termo menos colorido: “The Nephilim appeared on earth in those days” [Os nephilim apareceram na terra naqueles dias]. Por que nephilim? A palavra é transliterada do texto original em hebraico. Segundo os estudiosos, a palavra significa "gigantes", mas deriva de uma raiz que significa "caídos" ou "aqueles que causam a queda de outros".

Quem são, afinal de contas, esses gigantes?

Eles aparecem no Gênesis logo antes da história de Noé e do dilúvio e depois dos relatos sobre os dois filhos de Adão e Eva: Caim, a semente ruim que assassinou o irmão Abel, e Seth, a boa semente que substituiu Abel. Os descendentes de Caim são os primeiros a tomar duas esposas (Gênesis 2,21-24), uma perversão da ordem marital estabelecida por Deus no Jardim do Éden (procure, a propósito, a fascinante discussão sobre o Gênesis no site do St. Paul Center for Biblical Theology, dirigido por Scott Hahn; está em inglês).

Os descendentes de Seth, por outro lado, desenvolveram um relacionamento de oração com Deus, chamando-o pelo nome (Gênesis 4,26). Mesmo eles, porém, eram propensos à rebelião e começaram a tomar como esposas as belas filhas da linhagem de Caim; além disso, parecem ter seguido os primos na ideia de tomar mais de uma esposa (Gênesis 6,1-4). Foi da união dos homens da linhagem de Seth com as mulheres da linhagem de Caim que nasceram os gigantes, monstros vindos da mistura de boas e más sementes. Por causa das calamidades que a sua criação provocou, Deus se arrepende (Gênesis 6,6). É então que começa a história de Noé, do dilúvio e da arca.

Os gigantes aparecem mais de uma vez nas Escrituras. Em Sabedoria 14,6, evocando-se a história de Noé, lemos: "Quando, no princípio dos tempos, fizestes perecer os gigantes orgulhosos, a esperança do universo, refugiada em uma nau governada por vossa mão, conservou para o mundo o germe de uma geração".

E Baruc, meditando sobre a criação de Deus, afirma: “Lá nasceram os famosos gigantes antigos, de estatura imensa e alma de guerreiros. Não os escolheu Deus, nem lhes mostrou o caminho da sabedoria. E, por falta de sagacidade, pereceram, vítimas da própria estultícia” (Baruc 3,26-28).

Esses textos indicam que os gigantes não eram chamados assim somente por causa da sua grande estatura. Uma nota da tradução inglesa Douay-Rheims da Bíblia (Gn 6,4) especula: "É provável que, no geral, os homens de antes do dilúvio tivessem estatura maior que a dos seus sobreviventes. Mas os chamados ‘gigantes’ não o eram apenas pela altura, mas por serem violentos e selvagens, meros monstros de crueldade e luxúria".

Os gigantes de que fala a Bíblia, portanto, são, principalmente, “monstros morais”.

A tradição literária católica abriu espaços imaginativos para os gigantes do Gênesis. Eu os encontrei pela primeira vez em meus estudos sobre o poema épico medieval Beowulf, a história dos confrontos de um herói com três monstros temíveis. O autor de Beowulf, cujo nome se perdeu na história, mas que certamente era cristão e pode até ter sido um monge, descreve o primeiro dos gigantes, Grendel, como “um do clã de Caim”. 



O poeta de Beowulf, assim, precede Darren Aronofsky na criativa elaboração dos gigantes inspirada pelas informações escassas das Escrituras. Junto com os gigantes, o poeta nos diz que as uniões entre descendentes de Caim e de Seth incluem "ogros e elfos e fantasmas do mal". O original, em inglês antigo, menciona os "ogros" com o termo “orcnēas”, transliterado como “orcs”, o mesmo nome dado aos monstros asseclas de Sauron e Saruman no épico “O Senhor dos Anéis”, de J.R.R. Tolkien. Embora o mito de Tolkien não faça nenhuma referência explícita ao Gênesis, seu empréstimo do nome "orc" vincula a sua obra, imaginativa e moralmente, à história do Gênesis através de Beowulf (os estudiosos de Tolkien poderão me corrigir, mas eu presumo que os "elfos" mencionados em Beowulf como parte do clã de Caim fossem "elfos caídos").

Ao desenvolver o papel dos gigantes em seu “Noé”, Darren Aronofsky só está fazendo o que alguns escritores católicos imensamente célebres já fizeram: usar criativamente os gigantes do Gênesis como antagonistas fisicamente monstruosos e como metáfora daqueles que, não tendo sabedoria, perecem na sua estupidez.

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