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Intersexuais: do ponto de vista teológico, uma terra de ninguém?

Intersex A No Mans Land Theologically Speaking Joy Sanchez – pt

Joy Sanchez

William Van Ornum - Aleteia Vaticano - publicado em 15/06/14

Num mundo em que Deus "criou homem e mulher", qual é o lugar dos católicos intersexuais?

Conforme o espírito e a tradição de Santo Tomás de Aquino, é necessário fazer uma contextualização, e não um debate, sobre a condição conhecida como “intersexualidade”, antigamente chamada, de forma redutiva e às vezes pejorativa, de hermafroditismo. Santo Tomás começava as suas pesquisas estudando tema por tema e considerando todos os lados de cada questão antes de chegar a uma conclusão. Esta forma dialética de pensar, em que cada lado da questão era explorado exaustivamente, contrasta com as formas modernas de pensamento, que, muitas vezes, enfatizam a defesa de uma determinada posição ou tentam fazer com que os fatos se adaptem a alguma ideologia.

A condição médica da intersexualidade tem recebido pouca atenção da Igreja. Ela não é mencionada no catecismo. Eu não consegui encontrá-la em declarações papais. Não encontrei nada no Direito Canônico que aborde esta anomalia médica. No entanto, um número significativo de pessoas, em todo o mundo, experimenta esta condição, que é médica, não psicológica. E a ignorância a respeito desta condição torna difícil que as pessoas intersexuais recebam a devida empatia e aceitação.

A Bíblia poderia ser usada para oferecer uma resposta? O Gênesis diz, claramente, que Deus criou dois sexos separados, masculino e feminino. Isso foi antes da queda de Adão e Eva, de modo que alguns poderiam supor que a condição sexual ambígua seria resultado do pecado original. Há quem ache que existe na Bíblia, sim, uma menção à intersexualidade: em Isaías 56,3, fala-se da pessoa que é “uma árvore seca”. No entanto, pode muito bem tratar-se de uma referência a outras realidades. Os eunucos, por sua vez, têm uma definição mais clara: são homens que foram castrados, muitas vezes para servirem na corte do rei ao lado das mulheres sem risco de manterem contato sexual com elas e, portanto, de as engravidarem. Outro versículo da Bíblia, porém, sugere que eles nasceram assim.

A história e a tradição da própria Igreja define o ser humano como ou do sexo masculino ou do sexo feminino. Pode-se assim, reflexivamente, adotar o ponto de vista de que não há nenhuma condição sexual verdadeiramente ambígua e que o masculino ou o feminino predominam em todos os casos. Nesta perspectiva, não haveria nenhum problema teológico.

Mas à medida que a ciência moderna descobre mais e mais aspectos biológicos importantes sobre os gêneros, uma pessoa razoável poderia se perguntar se essas novas informações têm relevância para a doutrina da Igreja. Assim como Santo Tomás trouxe contribuições da filosofia "pagã" para o tesouro da Igreja, talvez algum Santo Tomás contemporâneo possa resolver esta área intimidante da sexualidade.

O caso é que uma pessoa intersexual não é uma pessoa transexual. A definição mais aceita de pessoa transexual é a de alguém cuja "identidade psicológica" está em desacordo com a sua condição biológica de nascença. Isto significa, por exemplo, que um homem biologicamente normal poderia ver a si mesmo com identidade feminina. Para obviar a esta situação, muitos transexuais procuram a cirurgia de mudança de sexo. Um aspecto extremamente controverso da chamada cirurgia de “reconfiguração de gênero” diz respeito à sua aplicabilidade a crianças. Há legislações que hoje aceitam esta definição de transexualidade e já foi registrado pelo menos um caso em que um juiz determinou que o Estado era responsável por bancar a cirurgia de reconfiguração sexual de um cidadão presidiário.

Os últimos 150 anos de história dos chamados "transtornos de identidade de gênero", como opostos ao conceito de intersexualidade, podem trazer mais confusão do que clareza. No final do século XIX, médicos militares começaram a identificar condições sexuais que pareciam ir além das categorias de masculino e feminino. Eles as chamaram de “pseudo-hermafroditismo” e “hermafroditismo”. Os pseudo-hermafroditas estão, provavelmente, mais próximos da atual definição de transexual. Um século atrás, os hermafroditas eram definidos como pessoas que tinham verdadeiros ovários e, ao mesmo tempo, pênis e testículos funcionais, condição vista como uma impossibilidade médica.

Na década de 1920, uma visão filosófica, e não uma descoberta médica, traçou uma distinção arbitrária entre "identidade sexual de gênero" e "identidade sexual biológica". Alegou-se que uma pessoa pode desenvolver uma identificação sexual diferente da própria condição biológica, devido a fatores ambientais ou culturais. O polêmico trabalho de John Money, da Universidade Johns Hopkins, hoje bastante desacreditado, seguiu essa linha filosófica e sociológica.

A pessoa intersexual é definida de forma diferente. Graças a muitos avanços médicos nos últimos 20 anos, tem havido muitas descobertas sobre diferenças biológicas em homens e mulheres que vão além da presença ou ausência do pênis ou da vagina. Devido a isso, é difícil, para os médicos ou para qualquer pessoa, afirmar com certeza definitiva se a pessoa é homem ou mulher.

As seguintes condições médicas, em diferentes combinações, podem estar presentes no que é designado como uma pessoa intersexual: deficiência de 5-alfa redutase; síndrome de insensibilidade aos andrógenos, afalia, clitoromegalia; hiperplasia adrenal congênita; disgenesia gonadal; mosaicismo relativo aos cromossomos sexuais; ovotestículos; virilização induzida pela progesterona; síndrome de Swyer; síndrome de Turner; e síndrome de Klinefelter.

Encontrei uma discussão interessante sobre a compreensão da condição intersexual dentro da teologia católica e do direito canônico no site "Respostas Católicas", provavelmente o maior apostolado de apologética e de evangelização dos Estados Unidos. Um leitor intersexual abriu a discussão em um dos fóruns: "Qual é a posição da Igreja sobre a intersexualidade e a transexualidade?".

Outro leitor afirmou: “Eu tentei durante mais de 3 anos obter uma resposta direta da Igreja sobre o sexo que eu tenho hoje. Medicamente, fui diagnosticado com ‘grave androgenização de mulher não-grávida’, mas a visão da Igreja pode ser completamente diferente. Minhas cartas e e-mails não foram respondidos e a minha pergunta não foi abordada na seção ‘Pergunte a um apologista’, aqui no fórum”.

Um terceiro leitor comentou: "Um texto do Vaticano define a transexualidade como um transtorno psíquico de pessoas cuja constituição genética e características físicas são, sem ambiguidade, de um sexo, mas elas se sentem pertencentes ao sexo oposto". Note-se que isto não define a intersexualidade.

Eis o que escreveu, por sua vez, um quarto leitor, que se identificou como canonista:

“As regras são:

1. A Igreja define os termos que emprega para representar o que ela quer dizer em sentido muito técnico. Assim, não podemos assumir que ela esteja usando os termos da mesma forma que nós usaríamos: muitas vezes, interpretamos mal o que a Igreja quer dizer quando aplicamos os nossos entendimentos à sua linguagem técnica.

2. A Igreja só legisla em matérias das quais tem certeza, porque se dirige a uma audiência mundial.

3. Há muitas questões sobre as quais a Igreja permanece em silêncio. Silêncio na legislação da Igreja significa que não há uma certeza que possa ser transformada em regra geral. Não se legisla até se ter certeza moral sobre uma questão. Nos assuntos sobre os quais a Igreja permanece oficialmente em silêncio, deve-se recorrer à própria consciência, às leis que regem situações semelhantes e aos conselhos de um diretor espiritual ou confessor, para determinar a moralidade do tema em questão.

4. Todas as leis devem refletir a finalidade da Igreja, que é a salvação das almas.

Vamos então voltar àquela definição de transexualidade: “um transtorno psíquico de pessoas cuja constituição genética e características físicas são, sem ambiguidade, de um sexo, mas elas se sentem pertencentes ao sexo oposto”. Se esta tradução está correta, não é uma definição acidental. Eu acredito que ela foi cuidadosamente elaborada para excluir aqueles cujo gênero é medicamente ambíguo. Esta definição específica de transexualidade se refere apenas àqueles que não têm nenhuma questão pendente, em termos biológicos e médicos, quanto à determinação do seu gênero. Assim, se você se encaixa nesta definição, de pessoa que é clinicamente de um gênero, mas, por alguma razão "psíquica", deseja mudar (por exemplo, você é mulher, mas quer ser do sexo masculino porque acha que os homens têm mais oportunidades), a Igreja considera esta situação como um transtorno mental que pode ser abordado de outras formas.

Agora pense nisto usando as regras acima. O "transexual" foi definido de forma bastante clara, considerando-se que a sua "determinação sexual não é ambígua". Eu acredito que é intencional o fato de esta definição não incluir as pessoas em torno de cuja identidade de gênero há elementos de ambiguidade biológica. Por quê? Porque esta questão é tão complexa e tem tantas variações que é impossível, legal e pastoralmente, fazer uma declaração que englobe todas estas permutações. Assim, em vez de tentar fazê-lo, a Igreja permanece intencionalmente em silêncio. Ainda mais animador: este silêncio vem depois de concluído o seu estudo sobre o assunto, o que parece indicar que a Igreja rejeitou o argumento do Dr. McHugh de que todas as questões de transexualidade têm origem mental. Os teólogos decidiram que a melhor e mais pastoral maneira de proceder é não encarar a questão de modo amplo, mas lidar de forma bem delimitada com este aspecto da transexualidade.

Se a Igreja não está abordando a questão da intersexualidade agora, não é por ter decidido evitá-la, mas por prudência e porque está esperando a descoberta de mais detalhes científicos. O que parece totalmente coerente com a fé, para mim: aprender sobre a condição intersexual é importante e promove a empatia tanto intelectual quanto emocional. A resposta mais cristã de todas, afinal, é entender e aceitar quem carrega esta enigmática e pesada cruz.

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