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A Copa do Mundo é nossa? (Parte 1)

César Nebot - publicado em 19/06/14

Documentário dinamarquês sobre o preço social e humano da Copa do Mundo no Brasil

Uma família muito humilde que morava em uma favela recebeu uma inesperada e surpreendente notícia. O pai havia atendido a ligação de um importante homem de negócios: “Dentro de três dias, jantaremos em sua casa”. Um grupo de poderosos empresários internacionais desejava visitá-los. O pai foi passando, pouco a pouco, do estupor ao entusiasmo.

“Não é todo dia que temos uma oportunidade como esta”, repetia para si mesmo. Talvez conseguisse um emprego que lhe permitisse ganhar o suficiente para alimentar seus cinco filhos, que lhe tirasse da miséria e lhe oferecesse um futuro – não só o seu futuro, mas o dos seus filhos. Talvez a Providência estivesse enviando um sinal para resgatá-lo do poço em que se encontrava. “Para que perguntar-se o porquê?”, pensava a esposa – afinal de contas, o importante era como esta oportunidade mudaria suas vidas.

O casal começou a pensar em como deixariam seu barraco mais decente. Toda a família participou. Não lhes restava muito tempo, mas tudo o que pudesse ser feito seria bom. Comprariam uma televisão, sim. Tinham um aparelho velho, meio quebrado, indigno demais para receber tão ilustres visitantes. Pediram emprestado um sofá e uma cortina. Proibiram os filhos de sentar-se no sofá, para não estragá-lo, já que estava destinado a pessoas importantes.

Chegado o dia, estiveram preparando o jantar com os melhores pratos que conheciam e podiam comprar. Finalmente, chegou a hora. O encontro tão esperado.

Vários veículos de luxo estacionaram na frente da sua humilde casa. Desviando-se do barro da rua, os magnatas começaram a entrar. A família estava toda em pé para recebê-los, com olhos cheios de esperança. Mas ninguém sequer lhes dirigiu o olhar. Entraram e se sentaram à mesa, sem cumprimentá-los.

A mãe, solícita, ofereceu-lhes o jantar, enquanto as crianças iam pegando os humildes pratos e a bebida. Os visitantes recusaram o jantar, pois estavam concentrados demais na negociação. O que se cozinhava ali não eram alimentos, mas um grande negócio, porque nenhum dos magnatas tirava os olhos dos documentos. O jantar esfriou e nem o experimentaram.

Ao acabar, sentaram-se no sofá para ver uma partida de futebol na televisão. Comemoraram o gol do seu time, que lhes deu a vitória do campeonato, e foram embora sem quase nem se despedir. Antes de entrar no carro, um deles agradeceu ao pai de família, que não conseguia sequer formular uma frase.

O filho melhor, de apenas três anos, perguntou a um dos visitantes: “Senhor, gostou da cortina?”. O homem olhou para o menino com indiferença e lhe perguntou: “O quê? Quem é você? Que cortina?”. Olhou para seu relógio e nem esperou a resposta. Entrou no carro e desapareceu. O filho mais velho saiu de casa gritando: “Um dólar no sofá! Deve ter caído do seu bolso!”.

* * *

Começou a Copa do Mundo 2014, no Brasil. A mídia nos inunda com notícias deste grande evento global. Há vários jogos diariamente. Debates televisivos sobre a atuação dos jogadores. Os fãs de futebol acompanham com atenção os resultados.

No entanto, entre uma notícia e outra, aparece a dura realidade socioeconômica do país. O Brasil é um vulcão de descontentamento social, em meio a greves e manifestações. Tal descontentamento se torna mais clamoroso diante do desembolso de 16,5 milhões de dólares dos cofres públicos para investimentos em obras da Copa.

Segundo estatísticas da ONU, o Brasil ostenta o 123º lugar de um total de 135 países no ranking mundial de igualdade econômica. A desigualdade do Brasil alcança um índice de Gini de 54,7%, vinte pontos a mais que os países da Zona Euro, Grécia e Espanha, com 34%.

Em 2012, o Índice de Desenvolvimento Humano, com 0,73, situava o Brasil no 85º lugar do ranking mundial. Ajustando o índice pela desigualdade, o valor é de 0,531. O Brasil fica no 77º lugar, quando o global dos países latino-americanos ocupa o 69º lugar.

Apesar de a mídia parecer ter recebido a ordem de passar outra imagem, a pobreza e o conflito são temas cotidianos no país. Mais de 21% da população vive com uma renda inferior ao limiar da pobreza nacional, e o país ocupa o 31º lugar em taxa de homicídios. Quando não há mais remédio que destacar esta situação, costumam compensar a notícia com os potenciais benefícios de se organizar uma Copa do Mundo.

É que, no paradigma econômico neoliberal, persiste a ideia de que, no capitalismo, incentivar o crescimento econômico é a maior garantia de desenvolvimento e redução da pobreza pelo efeito transbordamento. A lógica consiste em que, quando os mercadores funcionarem a todo pulmão, transbordarão e derramarão excedentes suficientes para que, no melhor dos casos, o social possa se beneficiar.

É por isso que a organização de uma Copa do Mundo deveria gerar negócio suficiente para beneficiar não só os que dispõem de capital para participar no negócio, mas também os que não.

O Papa Francisco expõe, no número 54 da exortação apostólica “Evangelii Gaudium”, que “alguns defendem ainda as teorias da ‘recaída favorável’ que pressupõem que todo o crescimento econômico, favorecido pelo livre mercado, consegue por si mesmo produzir maior equidade e inclusão social no mundo. Esta opinião, que nunca foi confirmada pelos fatos, exprime uma confiança vaga e ingenua na bondade daqueles que detêm o poder económico e nos mecanismos sacralizados do sistema económico reinante. Entretanto, os excluídos continuam a esperar”.

O vídeo que aparece no início deste artigo fala do preço da Copa do Mundo. Seu autor, o jornalista dinamarquês Mikkel Jensen, renunciou à intenção de cobrir a Copa do Mundo para explicar o drama social que o país brasileiro enfrenta.

Jensen gravou no Rio de Janeiro e em Fortaleza a matança e perseguição de crianças de rua, ordenada pelas autoridades com o suposto fim de limpar as cidades antes da invasão turística. Mais uma vez, infelizmente, esta economia de exclusão mata.

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