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O Jesus muçulmano

The Muslim Jesus Waiting for the Word – pt

Waiting for the Word

Philip Jenkins - Aleteia Vaticano - publicado em 06/07/14

Alguns registros de palavras de Jesus que nunca imaginamos que existissem

Por volta do ano 1600, o imperador indiano Akbar construiu um esplêndido portão cerimonial em Fatehpur Sikri e escreveu nele algumas palavras atribuídas a Jesus, o filho de Maria: "O mundo é uma ponte: cruze-a, mas não construa a sua casa sobre ela".

É um ditado evocativo, um dos muitos atribuídos a Jesus na tradição islâmica.

Mas será que existe alguma chance de que essas palavras tenham mesmo alguma ligação autêntica com o Jesus histórico?

Fique sabendo que as chances são maiores do que você pensa!

O Alcorão traz uma boa quantidade de material sobre Jesus. Mais relevantes neste caso, porém, são as muitas histórias e dizeres reunidos por sábios muçulmanos ao longo dos séculos seguintes, recolhidos pelo estudioso moderno Tarif Khalidi em seu livro “O Jesus Muçulmano: Provérbios e Histórias na Literatura Islâmica”. Khalidi argumenta que, juntos, esses textos constituem todo um “Evangelho muçulmano”.

Esse “Jesus muçulmano” lembra a linguagem e o pensamento da escritura cristã primitiva, com leves modificações em comparação com os evangelhos que nós conhecemos. Isto é particularmente verdadeiro no caso das histórias e citações mais antigas, que remontam ao século IX. Jesus mostra as aves do céu e fala do quanto Deus se importa com elas; Jesus exorta os seus seguidores a acumularem tesouros apenas no céu; Jesus diz que eles não devem lançar pérolas aos porcos. Em cerca de 30 exemplos, as semelhanças com os evangelhos sinóticos são impressionantes. Como se não bastasse, muito poucos desses dizeres do “Jesus muçulmano” apresentam ideias distintamente islâmicas.

São textos que parecem nos levar de volta até um estágio autenticamente primitivo da formação do Novo Testamento. Os estudiosos concordam que os primeiros registros sobre Jesus era escritos em forma de provérbios ou como sequências de dizeres, com muito pouco da narrativa que conhecemos dos evangelhos canônicos. Uma dessas coleções hipotéticas é o "Q", uma fonte de relevância crítica para Mateus e Lucas. Os cristãos se lembravam das palavras de Jesus e só mais tarde é que os autores foram juntando aqueles fragmentos isolados até lhes dar unidade. Os provérbios que não foram incluídos nos textos canônicos continuaram sendo citados como “ágrapha”, ou seja, como dizeres não escritos, não registrados. Nós os conhecemos hoje porque eles aparecem com frequência em citações de líderes da Igreja primitiva ou em leituras de manuscritos do Novo Testamento.

E isso nos traz de volta ao caso das palavras de Jesus registradas por comentaristas muçulmanos antigos, que, em seu estilo e formato, carregam uma surpreendente semelhança não com os evangelhos canônicos, mas com fontes como o "Q". É quase como se aqueles estudiosos tivessem tido acesso aos provérbios e construído uma narrativa plausível com base neles, sem que fosse, necessariamente, a mesma estrutura fornecida pelos evangelistas cristãos. Será que eles usaram algo como o "Q"? Talvez alguma fonte judaico-cristã hoje perdida?

Para ilustrar o “sabor de cristianismo primitivo” desses dizeres do “Evangelho muçulmano”, ofereço abaixo uma mistura aleatória de frases creditadas a Jesus, algumas oriundas de escritos cristãos não canônicos e as restantes tiradas do Evangelho muçulmano. Veja se você acerta qual dos “Jesuses” disse o seguinte:

1. Estejam no meio, mas caminhem do lado.
2. Tornem-se transeuntes.
3. Os que estão comigo não me entenderam.
4. Abençoado é aquele que vê com o coração, mas cujo coração não está no que ele vê.
5. Estou perto de vós como a roupa do vosso corpo.
6. Satanás acompanha o mundo.

As respostas: 1, 4 e 6 são muçulmanos; 2, 3 e 5 são cristãos. Se não nos dessem as respostas, seria muito difícil identificarmos as duas categorias. Excetuando os estudiosos especialistas no texto do Novo Testamento, eu duvido até que a maioria dos estudiosos do cristianismo primitivo ou medieval pudesse acertar todos.


Este grau de semelhança é impressionante, considerando-se a cronologia. Todos os exemplos cristãos datam dos séculos I ou II; nenhum dos exemplos muçulmanos tem registro anterior ao século IX. Eles respiram, no entanto, exatamente a mesma atmosfera.

Não é muito difícil enxergar como esses dizeres primitivos foram preservados e transmitidos, e a pista pode estar na característica de “negação do mundo” que está presente em muitas dessas frases: o mundo é uma ponte! Tais palavras teriam sido atesouradas por monges e eremitas cristãos do Oriente, de regiões como a Síria e a Mesopotâmia. Sabemos também que, desde os primeiros tempos, alguns monges e clérigos cristãos aceitaram o islã. O Alcorão relata como os seus olhos se enchiam de lágrimas, enquanto eles oravam: "Nós cremos; faz-nos um, pois, com todos quantos testemunham a verdade!".

Como que quer que essa transmissão tenha acontecido, porém, eis um pensamento surpreendente: talvez a tradição muçulmana nos ofereça várias dezenas de plausíveis palavras de Jesus que jamais imaginamos que tínhamos!

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CristianismoHistóriaHistória da IgrejaJesusMuçulmanos
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