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As incompreensões no livro da entrevista do Papa Francisco

Intervista di Scalfari al papa – pt

@DR

Angelo Bellon O.P. - publicado em 23/07/14

Nunca devemos esquecer que, além da clareza de quem expõe, existe também a capacidade de compreensão de quem escuta

Questão

Caro padre,
Em minha casa compramos o livro do diálogo entre o Papa Francisco e Scalfari, olhei um pouco, mas li duas afirmações que me deixaram perturbado: “Cada um de nós tem sua visão do Bem e do Mal. Precisamos estimulá-lo a prosseguir em direção daquilo que pensa ser o Bem” e “Aqui repito. Cada um tem sua ideia do Bem e do Mal e precisa escolher seguir o Bem e combater o Mal da maneira que o concebe. Bastaria isso para melhorar o mundo”.
Nesses dias termina a campanha em defesa do embrião humano e me ocorreu de falar várias vezes com algum amigo, ou parente em relação à dignidade do concebido. Ao que me parece das palavras do Papa, porém, eu não me esforçaria para fazer com que meu interlocutor compreendesse o valor de cada ser humano que ainda não nasceu, mas deveria “estimulá-lo a prosseguir em direção daquilo que pensa ser o Bem” (ou seja, a experimentação com embriões e “direitos” similares). E se me encontrasse diante de um nazista, terrorista, ou qualquer outro deveria “estimulá-lo” a continuar pela estrada "que pensa ser certa"? No mundo se encontra um certo relativismo ético pelo qual um acreditava ser bom e justo o sacrifício humano, outro o casamento com a própria irmã, outros ainda a prática do aborto e assim por diante. A tarefa do cristão é acomodar erros mais ou menos graves da consciência como estes ou exercitar uma decisiva “correção fraterna”?
O senhor pode me esclarecer as palavras do Papa?
Obrigado

Resposta do sacerdote

1. Agradeço pela paciência em esperar minha resposta. Durante a espera aconteceram muitas coisas: a revogação da entrevista por parte do L’Osservatore Romano e depois a declaração de Scalfari, que disse que não teria levado o gravador, ou seja, a entrevista continha mais ou menos as palavras do Papa. O conteúdo da entrevista assustou muitos pelo teor das afirmações erradas e inaceitáveis. Agora sabemos que aquelas não eram as palavras do Papa, mas do entrevistador Scalfari, que “traduziu” com suas palavras o que o Papa tinha dito. 

2. Voltemos à expressão que me colocou: “Cada um de nós tem sua visão do Bem e do Mal. Precisamos estimulá-lo a prosseguir em direção daquilo que pensa ser o Bem”. Esta afirmação faz pensar que não existam critérios comuns e objetivamente válidos por todos para determinar aquilo que é o bem e aquilo que é o mal. A lei moral é relativa. Mas essa é uma afirmação errada e negada pela Sagrada Escritura e várias intervenções do Magistério.

3. Segundo o ensinamento da Igreja existem normas objetivas e conhecidas por todos. Essas constituem o primeiro grupo dos princípios morais, ou de valores que se formam logo que a razão é aplicada para dirigir uma ação. São idênticas em todos os homens e não podem ser corrompidas. Praticamente se identificam com a chamada sindérese, e aos primeiros princípios morais da consciência. A essas normas se refere São Paulo quando diz que também os pagãos, que não têm a lei de Moisés, seguem todavia a consciência deles, a sua luz e pronunciam as avaliações deles: “Os pagãos, que não têm a lei, fazendo naturalmente as coisas que são da lei, embora não tenham a lei, a si mesmos servem de lei; eles mostram que o objeto da lei está gravado nos seus corações, dando-lhes testemunho a sua consciência, bem como os seus raciocínios, com os quais se acusam ou se escusam mutuamente” (Rm 2,14-15).

4. A esta lei se refere também o Concílio Vaticano II quando afirma: "No fundo da própria consciência, o homem descobre uma lei que não se impôs a si mesmo, mas à qual deve obedecer; essa voz, que sempre o está a chamar ao amor do bem e fuga do mal, soa no momento oportuno, na intimidade do seu coração: faze isto, evita aquilo. O homem tem no coração uma lei escrita pelo próprio Deus; a sua dignidade está em obedecer-lhe, e por ela é que será julgado. A consciência é o centro mais secreto e o santuário do homem, no qual se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser (10). Graças à consciência, revela-se de modo admirável aquela lei que se realiza no amor de Deus e do próximo" (GS 16).

5. Paulo VI exprime o mesmo conceito quando diz: “É preciso, antes de tudo, revelar que a consciência, por si mesma, não é arbitrária do valor moral das ações que essa sugere. A consciênciaé a intérprete de uma norma interior e superior; não a cria por si. Essa é iluminada da intuição de certos princípios normativos, congênitos na razão humana (cf. São Tomé, Suma Teológica, I, 79, 12 e 13; I-II, 94, 1); a consciência não é a fonte do bem e do mal; é a advertência, é a escuta de uma voz, que se chama a voz da consciência, é o chamado à conformidade que uma ação deve ter em uma exigência intrínseca ao homem, até que o homem seja verdadeiro e perfeito. Isto é a intimação sugestiva e imediata de uma lei, que devemos chamar natural, apesar de que muitos hoje não querem mais ouvir falar de lei natural” (12.2.1969). Ressalto a expressão onde o Papa fala de uma lei que aparece por si só na consciência, que ilumina através de uma intuição, sem raciocínio sobre aquilo que é bem, ou mal.

6. Igualmente João Paulo II: “a consciência não é juiz totalmente autônomo. Em última análise, ela deve submeter-se à verdade imutável, ao nosso alcance. Mais, deve formar-se e rectificar-se constantemente, a fim de permanecer espaço sagrado, iluminado pela verdade, onde Deus fala ao homem que o quer e sabe ouvir" (17.8.1983).

7. Perguntamo-nos: qual lei aparece na nossa consciência? É uma lei válida para todos? Pode-se corromper em alguém? São Tomás diz que “sobre os primeiros princípios, a lei natural não pode ser cancelada totalmente do coração do homem em nível universal” (Summa Teológica, I-II, 94,6). Até mesmo, “a razão humana não pode errar no conhecimento abstrato dos princípios mais comuns da lei natural” (Ib., I-II, 92, 2, ad 2). Ele afirma categoricamente: “O papel da sindérese (primeiros princípios da consciência, n.d.r.) é de protestar contra o mal e se inclinar ao bem. E nisso não pode existir deficiência” (São Tomás, De Veritate, 16,2). “A sindérese está intacta também nos infiéis, no que diz respeito à luz natural” (São Tomé, In II Sent., 39, 3, 1, ad 3). Essa, portanto, é indestrutível e nos seus primeiros princípios é idêntica em todos os homens.

8. Pode ser perturbada, em algumas pessoas, por causa de alguns impedimentos, como a loucura, que não permite ser consciente daquilo que se faz. Mas terminada a perturbação, a sindérese volta a resplandecer. O Catecismo da Igreja Católica segue o mesmo pensamento: “A lei natural é imutável e permanente através das variações da história. Subsiste sob o fluxo das ideias e dos costumes e está na base do respectivo progresso. As regras que a traduzem permanecem substancialmente válidas. Mesmo que se lhe neguem até os princípios, não é possível destruí-la nem tirá-la do coração do homem; ela ressurge sempre na vida dos indivíduos e das sociedades” (CIC, n. 1958).

9. João Paulo II disse que “não é suficiente falar: siga sempre a sua consciência. É necessário acrescentar sempre: pergunte-se se sua consciência diz a verdade ou não e busque incansavelmente conhecer a verdade” (17.8.1983).

10. Não podemos esquecer o grande princípio de Aristóteles: “quid quid recipitur, ad modum recipentis recipitur” (tudo o que é recebido, é recebido ao modo do recipiente). O recipiente (Scalfari) com o qual o Papa falou é um recipiente que, por motivos que não cabem a mim julgar, conservou intacta a sindérese, mas ofuscou ou cancelou muitos outros princípios. Ele tomou ao seu próprio modo as palavras do Papa, e também as difundiu segundo o seu próprio critério.

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