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EUA: os distúrbios sociais em Ferguson são sintomas de um fracasso em todos os níveis

Protester in Ferguson – pt

AP

Mark Gordon - publicado em 22/08/14

Há algo em comum entre a agitação social americana e os protestos de rua no Brasil?

Aleteia reproduz o seguinte artigo sobre os protestos violentos que estão acontecendo na localidade norte-americana de Ferguson e deixa aos leitores brasileiros a sugestão de refletir sobre o que existe em comum entre estes episódios e os distúrbios sociais que sacudiram recentemente várias cidades do Brasil.

* * *

A situação na cidade norte-americana de Ferguson tem sido vastamente divulgada pela mídia mundial. Em 9 de agosto, um sábado, enquanto já atendia outra ocorrência, o policial branco Darren Wilson foi avisado de um assalto a uma loja de conveniência. Foi repassada a ele, também, uma descrição e a localização do suspeito. O policial viu Michael Brown, o suspeito de 18 anos de idade, numa rua perto da loja de conveniência assaltada. Não ficou esclarecido se Wilson reconheceu Brown como suspeito do roubo. De qualquer forma, seguiu-se um confronto, físico ou verbal, variando conforme a versão de cada testemunha. Brown, desarmado, foi baleado seis vezes, duas na cabeça, e morreu no local.

Na noite seguinte, domingo, uma vigília com velas pela morte de Brown se transformou rapidamente numa sequência de saques e de atos de vandalismo. Trinta pessoas foram presas. Na segunda-feira, 11 de agosto, o FBI anunciou uma investigação paralela sobre a morte de Brown. Os pais do jovem rejeitaram a violência e exigiram justiça para o filho. Ainda assim, houve novas agitações na noite daquela segunda-feira. Na terça, o presidente Barack Obama pediu calma. Um amigo que estava com Brown no momento em que ele foi baleado afirmou que o jovem estava com as mãos levantadas, sem opor resistência ao policial. Na quarta-feira, a mídia internacional já dava grande ênfase ao caso. Repórteres do Huffington Post e do Washington Post foram detidos. A polícia lançou gás lacrimogêneo contra uma equipe da Al Jazeera América e prendeu um vereador da cidade de Saint Louis.

Na quinta-feira, 14 de agosto, o governador do Estado do Missouri anunciou reforços da Polícia Rodoviária Estadual e nomeou um capitão afro-americano para liderar as operações. Foi a primeira noite da semana sem violência. Houve novas vigílias em várias cidades dos Estados Unidos. Na sexta-feira, foi divulgado o nome de Darren Wilson, o policial que tinha atirado em Brown. Na mesma noite, a violência recomeçou. A polícia respondeu com gás lacrimogêneo e balas de borracha. No dia seguinte, o governador do Missouri declarou estado de emergência e impôs toque de recolher depois de ficar provado que os responsáveis ​​pela maior parte dos atos de violência eram agitadores de fora da cidade de Ferguson, nomeadamente de Chicago. Na segunda-feira, 18 de agosto, o governador solicitou a intervenção da Guarda Nacional, mas cancelou o toque de recolher, que tinha se mostrado ineficaz.

No mesmo dia 18, dom Robert J. Carlson, arcebispo de Saint Louis, publicou uma carta sobre a situação em Ferguson. "Visitei pessoalmente a cidade de Ferguson e o memorial a Michael Brown para oferecer as minhas orações por todos os afetados por esta tragédia. Em todas as circunstâncias, mas especialmente nestes tempos difíceis, todos nós somos chamados a ser instrumentos de paz, com as nossas palavras e com os nossos atos. O papa Francisco declarou recentemente que ‘todos os homens e mulheres de boa vontade devem se engajar na tarefa de promover a paz’".

O arcebispo anunciou uma Missa pela Paz e Justiça na catedral-basílica de Saint Louis, celebrada nesta quarta-feira, 20 de agosto. Carlson encerrou a carta pedindo que todos os fiéis da arquidiocese de Saint Louis “se unam a mim na oração a Nossa Senhora e ao seu Filho, nosso Senhor Jesus Cristo, pela paz e pela justiça em nossa comunidade”.


O preâmbulo da constituição dos Estados Unidos resume os objetivos do governo desta forma: "Nós, o povo dos Estados Unidos, a fim de formar uma união mais perfeita, estabelecer a justiça, assegurar a tranquilidade interna, prover a defesa comum, promover o bem-estar geral e assegurar as bênçãos da liberdade para nós mesmos e para a nossa posteridade, elaboramos e estabelecemos esta Constituição para os Estados Unidos da América".

Estes objetivos são interligados e mutuamente dependentes. Uma união mais perfeita, por exemplo, não pode ser alcançada sem que exista justiça igual para todos sob o comando da lei. A justiça, por sua vez, não pode ser estabelecida sem que haja tranquilidade interna, e vice-versa. Considerada desta perspectiva, a turbulência em Ferguson representa uma falha sistêmica do governo em todos os níveis relacionados com a consecução desses objetivos.

Ferguson se tornou o ponto de interseção de vários vetores sociais que têm assolado os Estados Unidos já faz algum tempo. Entre eles, a realidade de uma permanente subclasse americana caracterizada pelo desespero e pelo abandono da lei; a militarização do policiamento, incentivada pelo governo federal; a mídia onipresente que inflama rotineiramente os ânimos em busca de lucro; a adoção generalizada de critérios discriminatórios nas estratégias de negócios, que aumenta o isolamento das comunidades minoritárias; e o problema contínuo do racismo, em especial no tocante ao sistema de justiça criminal.

De um ponto de vista católico, a polícia é investida da autoridade necessária para manter a ordem pública, o que contribui para o bem comum ou, antes ainda, o viabiliza. Essa autoridade se estende ao uso das armas: a defesa do bem comum exige que o injusto agressor seja impedido de causar danos. Por esta razão, aqueles que legitimamente detêm a autoridade também têm o direito de usar de armas para impedir que os agressores firam a comunidade civil confiada à sua responsabilidade.

Ao mesmo tempo, a polícia sempre deve exercer com justiça a sua autoridade, a fim de restabelecer a tranquilidade da ordem na sociedade. A autoridade só é exercida de forma legítima quando se busca o bem comum do grupo em questão e se empregam meios moralmente lícitos para alcançá-lo. Caso os governantes imponham leis injustas ou tomem medidas contrárias à ordem moral, essas disposições não poderão obrigar as consciências. Em tais casos, a autoridade se desintegra completamente e se transforma em vergonhoso abuso. É preferível que cada poder seja equilibrado por outros poderes e por outras esferas de competência que o mantenham dentro do seu justo limite. Este é, conforme o catecismo, o princípio do "Estado de Direito", no qual é soberana a lei e não a vontade arbitrária dos homens.

Os cidadãos também têm a responsabilidade de agir de acordo com o bem comum, mesmo quando as autoridades se comportam de modo injusto. O catecismo católico diz que os cidadãos, inclusive quando sofrem opressão de uma autoridade pública que ultrapassa a sua competência, não devem se recusar a fazer o que é objetivamente exigido deles em prol do bem comum; mas é legítimo, por outro lado, que eles defendam os próprios direitos e os dos seus concidadãos diante do abuso dessa autoridade, mantendo-se dentro dos limites da lei natural e da lei do Evangelho.

O que não sabemos sobre a situação de Ferguson é se o policial Darren Wilson agiu injustamente. O simplismo “policial branco x vítima negra” não nos informa o suficiente. É necessária uma investigação completa sobre as ações de Wilson, levando-se em conta todas as provas e testemunhos. Mas isso não pode acontecer sem que a ordem pública seja restabelecida. O que sabemos sobre a situação de Ferguson é que os saques, o vandalismo e os ataques são injustiças manifestas, cometidas tanto contra as vítimas imediatas quanto contra a comunidade em geral. Para que a justiça seja feita, a tranquilidade interna precisa ser restaurada.


Em 1968, com a erupção da violência nas cidades norte-americanas, Martin Luther King Jr. fez um discurso em que defendeu o seu compromisso com a não-violência. Suas palavras merecem ser lembradas nesta situação:

"Eu continuo convencido de que a não-violência é a mais poderosa arma que pode ser usada pelas pessoas oprimidas em sua luta por liberdade e justiça. Eu sinto que a violência criará mais problemas sociais do que poderá resolver; que, em sentido real, é impraticável para o negro sequer pensar em uma revolução violenta nos Estados Unidos. Por isso, eu vou continuar condenando os motins e dizendo aos meus irmãos e irmãs que este não é o caminho. Eu vou continuar afirmando que existe outro caminho. Mas, ao mesmo tempo, condenar com vigor as condições que levam as pessoas a achar que elas devem se envolver em tumultos é tão necessário para mim quanto condenar os próprios tumultos. Eu acho que os Estados Unidos precisam enxergar que os tumultos não surgem do nada. Continuam existindo em nossa sociedade certas condições que têm que ser condenadas tão vigorosamente quanto os tumultos. Mas, em última análise, o tumulto é a linguagem dos que não são ouvidos".

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