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Sínodo da família: não tenhamos medo do debate na Igreja

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Jorge Traslosheros - publicado em 24/09/14
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Que ninguém se assuste: os cardeais Kasper e Müller não estão questionando a sacramentalidade do matrimônio
Estamos a poucos dias do sínodo extraordinário dos bispos, no qual abordarão os problemas da família no mundo atual. Ainda que seja difícil de acreditar, o planeta é maior que o Ocidente, onde, aliás, a mídia gerou expectativas infundadas.
 
O objetivo do sínodo, como bem explicou o cardeal Parolin, não é mudar a doutrina da Igreja (pois esta depende do Evangelho), mas abordar os problemas da família e do casamento, para definir uma estratégia pastoral que vá do local ao global.
 
O desafio é fantástico. Pessoalmente, alegra-me saber que, no mundo dos relativismos e frivolidades, existe uma instituição que leva a sério uma realidade que nos acompanhará durante a vida inteira: a família.
 
As falsas expectativas obedecem à falta de conhecimento sobre a maneira como se desenvolve um debate no âmbito católico, de maneira especial quando entram em jogo grandes temas, como o da família.
 
Nada mais falso do que a ideia da suposta soberana intransigência dentro da Igreja, ainda que a tentação sempre exista, razão pela qual é necessário combatê-la sem piedade.  Também existem os que confundem a autoridade com a imobilidade. Para entender como se desenvolve um debate dentro das coordenadas católicas, é preciso atender, em princípio, a 5 elementos.
 
1. Unidade no essencial, liberdade no duvidoso e caridade em tudo
 
O essencial é pouco e sólido, pois depende da doutrina emanada do Evangelho e da tradição. Assim, porque o solo é firme, os debates costumam ser intensos. No entanto, quando se respeita o essencial, impera a caridade, que não deve ser confundida com sorrisinhos e cumprimentos educados.
 
Em um debate sério, como o que agora presenciamos antes do sínodo, a caridade se afirma com abertura e diálogo, ou seja, buscando a verdade, ainda que faltem os sorrisos. Por outro lado, quando o essencial não é respeitado, a liberdade se torna retórica e a caridade se ausenta. Então, a catolicidade se perde. Até agora, não vimos ninguém nesta situação e tenho certeza de que não o encontraremos.
 
O debate entre os cardeais Kasper e Müller é intenso, mas segue a lógica de Santo Agostinho, exposta no título deste tópico. Ninguém questiona a sacramentalidade do matrimônio, que é o essencial, razão pela qual argumental com grande liberdade sobre a atenção pastoral aos divorciados novamente casados. Outros cardeais se uniram à discussão, o que é lógico e, além disso, muito saudável. Que ninguém se assuste: no final, a caridade vencerá a partida.
 
2. O debate mantém uma ordem específica de acordo com a fé e a razão
 
Observa-se um problema, apresenta-se uma hipótese, buscam-se os argumentos a favor e contra, aproveitando diversos saberes teológicos, científicos, sociológicos, históricos etc, para tomar decisões firmes e informadas.
 
O normal, nestes casos, é a participação de diversos agentes eclesiásticos em diferentes momentos – sejam eles leigos, religiosos, presbíteros, bispos, teólogos –, por meio de consultas, como assessores etc. Há uma profunda convicção de que a realidade é o mapa da nossa existência; a razão, o meio que nos ajuda a compreender; e a fé, bússola que orienta o caminho.
 
Ao que parece, no caso acima comentado, com a autorização do Papa, Kasper e Müller têm opiniões fortes e estão convencidos do que dizem. O próprio Papa se encarregou de apresentar a hipótese a debate sobre a conveniência de, em certos casos, depois de períodos penitenciais, aceitar a comunhão sacramental dos divorciados novamente casados.
 
O que vemos é que o método vai se cumprindo e há material abundante para ser discutido neste campo, como em muitos outros. As decisões pastorais, podemos ter certeza, não serão tomadas com superficialidade.

 
3. Promove-se o diálogo entre justiça e misericórdia
 
Unicamente com justiça, caímos no rigorismo; somente com misericórdia, esta se confunde com a lassidão, oposto da misericórdia. Quando o debate se realiza dentro das coordenadas fé-razão e justiça-misericórdia, entramos no campo da caridade, o que, por outro lado, confirma o velho princípio da cultura católica: et-et­, somar na caridade.
 
O leitor poderá esboçar um plano cartesiano em cujo centro se encontre precisamente a caridade. Será de grande ajuda para entender onde se encontram as diversas posições, com seus matizes, e também como nenhuma delas abandona o Evangelho e a tradição.
 
4. As diversas escolas teológicas ocupam um lugar muito importante no debate
 
Hoje, é necessário levar isso em consideração; desde o cardeal Newman, busca-se centrar a reflexão na dignidade da pessoa frente aos excessos coletivistas, individualistas e utilitários da nossa época. Este personalismo filosófico e teológico esteve muito presente no magistério dos últimos papas, inclusive Francisco.
 
O princípio é simples. Cristo nos mostra a plenitude da nossa humanidade porque nos abre o caminho rumo a Deus. O diálogo entre fé e razão, entre nossa frágil humanidade e Jesus, entre a justiça e a misericórdia, orienta-se à dignificação de cada pessoa e de todas as pessoas, com o fim de tornar-se realidade na particularidade de cada cultura.
 
Francamente, no momento atual do debate, e tendo revisado as diversas posições, observo nos participantes, sem exceção, a mesma intenção e vocação pela pessoa.
 
5. O debate se submete o tempo todo a uma prova de autenticidade
 
A fé na razão deve coincidir com as razões da fé. Só então estaremos diante de uma genuína discussão dentro das coordenadas católicas.
 
O processo, em seu conjunto, conduz a tomar decisões firmes no campo pastoral, ainda que sejam impopulares ou politicamente incorretas. Sua implantação e desenvolvimento poderão levar gerações, mas acontecerão. No momento culminante da tomada de decisões – não podemos nos esquecer –, o Papa estará sozinho diante de Deus.
 
A denúncia profética de Paulo VI contra a mentalidade antinatalista da nossa época, e da injustiça sistêmica contra os pobres do mundo, bem como sua defesa não menos profética do Concílio, do ecumenismo e da liberdade religiosa, são bons exemplos do que expusemos aqui.
 
Sua valentia, tão atacada dentro e fora da Igreja por motivos às vezes diversos, permitiu aos católicos avançar em meio a dificuldades. Hoje, a promoção da vida e do diálogo ecumênico e inter-religioso, a defesa da liberdade religiosa, a afirmação da doutrina social da Igreja e do próprio Concílio são realidades cotidianas para muitos católicos.
 
Mas alguns se esquecem das grandes polêmicas que houve naquela época. Diversas pessoas inclusive abandonaram o catolicismo criticando seu extremismo e afirmando ser, eles, os autênticos católicos.
 
A sinodalidade na condução da Igreja, tão amada por Paulo VI, assim como por Francisco, confirma a responsabilidade pessoal de cada bispo e do próprio Papa na tomada de decisões. Pouca surpresa, como explicou muito bem Ratzinger: a Igreja caminha pelo delicado equilíbrio entre a colegialidade e a responsabilidade pessoal – leigos incluídos, claro. Mais uma vez, o velho princípio: et-et, somar na caridade.
 
Só pode existir liberdade porque há ordem e clareza nos debates eclesiásticos. Pensar que a Igreja poderia alcançar um estado de quietude argumentativa é um engano. Isso nunca aconteceu, nem sequer na época dos Apóstolos, o que constitui uma das grandes riquezas do catolicismo.
 
De fato, este é um dos seus mais importantes motores ao longo da história e a razão pela qual é tão apaixonante estudá-la. Tenho certeza de que o Sínodo sobre a família, em seus dois capítulos, não será a exceção. Suas decisões marcarão o rumo da Igreja na presente e nas futuras gerações.
 
Só uma recomendação: apertem os cintos, porque isso tudo será muito emocionante!