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O cristianismo pode ser para nós uma mera ideologia?

Crosses held up at sunset – pt

© Rawpixel/SHUTTERSTOCK

Marcelo López Cambronero - publicado em 02/10/14

Isso acontece quando deixamos de lado o Cristo vivo e colocamos em seu lugar um férreo moralismo, um projeto político ou algo parecido

A ideologia é a traição à experiência e sua substituição pelo discurso. Como seres humanos, temos a necessidade e o desejo de compreender, de cuidar do mundo que nos cerca, esse mundo que é complexo demais, está em constante transformação e é difícil de assumir. Por isso, para poder entender o que acontece, é preciso elaborar algumas categorias que mostrem a realidade e nos permitam explica-la, organizá-la e, assim, viver entre as coisas e a sociedade.

Este fato em si não é pernicioso, mas uma das características que nos definem e honram como seres humanos é a capacidade de pensar, analisar, julgar e classificar a realidade e, assim, exercer certo domínio eficaz sobre ela. O homem é um ser racional, que requer de reflexão como modo de existência, adaptação e transformação do mundo.

No entanto, nem sempre utilizamos a linguagem e os esquemas de compreensão para apreender a realidade. Às vezes, acabamos nesta tensão humana básica para fechar-nos no interior de um discurso que suplanta o real, o simplifica, o torna mais assumptível e nos proporciona uma enganosa sensação de possuir a verdade. Então deixamos de tentar explicar o que nos acontece assim como nos foi dado e, ao contrário, utilizamos mecanismos e estruturas de uma aparente depurada racionalidade para transformar nossa experiência segundo o que já conhecíamos com antecedência.

Assim, nós nos fechamos à novidade, ao dar-se próprio do mundo, para trilhar caminhos conhecidos e estáveis. É um mecanismo de segurança que pagamos com a nossa liberdade. Deixamos de ser nós mesmos, complicados, em transformação constante e misteriosos para fazer parte de critérios ideológicos abstratos e repletos de violência, já que se impõem ao que é querendo que seja o que não é.

Eis aqui o efeito da ideologia: rejeitar a vertigem produzida pelo dom da existência em troca da certeza equívoca de um engano manufaturado. Se olharmos para os lados, perceberemos que vivemos em uma época insuportavelmente dominada pelos discursos ideológicos, na qual poucas pessoas reluzem com a orça da sua abertura e liberdade.

Ninguém está a salvo de cair em um modelo desta índole. Hoje em dia, modernos como somos, valorizamos demais as concepções universalistas que pretendem proporcionar respostas para tudo e corremos constantemente o risco de ficar presos em alguma dessas visões reducionistas. Assim, esquecemos as perguntas e exigências humanas que nos abordam em todo momento e que nos apresentam o panorama de um cosmos tão ordenado como cheio de mistério.

O cristianismo é um ideal de dimensões extraordinárias. Os cristãos têm a experiência de uma felicidade que foge da compreensão humana, de uma alegria que nem sequer pediram, porque não tinham a esperança de que fosse possível. Ao mesmo tempo, não estão isentos dos sofrimentos da vida. Não me refiro somente à doença e à morte, próprias e alheias, que tentamos ocultar, mas também ao decair das amizades, ao afastamento dos afetos, à incompreensão, à injustiça e à dor.

Bem sabemos que nem sequer Cristo, pleno homem e pleno Deus, foi poupado de tais circunstâncias. Ele também sofreu, foi traído, golpeado e suportou o fedor da morte, e não nos prometeu que não passaríamos pelos açoites da mesma  condição, mas sim que estaria ao nosso lado na adversidade e ainda abraçando-nos muito além da última barreira.

É difícil manter uma esperança semelhante e de fato, sozinhos, apoiando-nos unicamente em nossas pequenas estampas de carne e osso, não conseguimos, Só Ele, só com Ele, a vida é suportável para o homem.

Mas às vezes nos falta fé, a certeza atual da sua presença e companhia, que permite seguir em frente nos vales escuros. Não é difícil cair na tentação de fabricar nossa própria salvação, nosso próprio ideal, ceder à pretensão de tornar-nos deuses, os que possuem o dom e a capacidade de afirmar, dominar e impor a verdade.


É preciso voltar uma e outra vez ao Sacrário para agradecer pelo dom da fé, pelo dom da vida, por essa Graça que faz o mundo transcender. Precisamos voltar a Ele constantemente. Talvez não sejamos grandes santos; com certeza, a magnitude das nossas proclamas ideológicas são apenas um papel vazio, um protocolo de instruções insípido que situamos diante dos nossos olhos porque pensamos que a cegueira nos protege de cair.

É possível que sintamos certa silenciosa repugnância ao observar nossa imagem no espelho, mas podemos aceitar o que somos, sem resignação e inclusive com alegria, porque assim, como fomos feitos, fomos feitos para Ele. Ele vai nos amar e nos ama, nos acolhe e nos respeita, em todos e cada um dos momentos da nossa vida. Em todos e cada um.

É mentira que o cristão caminha pelas ruas todos os dias com um sorriso hipócrita e palhaço, e sem dúvida não pode oferecer aos outros mais que sua frágil humanidade. No entanto, sabe que, por meio dela, e não pelos seus méritos ou seus altos ideais ou qualidades morais, transmite a única esperança dos homens.

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