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Choque de civilizações: a Santa Sé está fazendo uma interpretação errada?

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Nicolas-Raymond CC

George Weigel - publicado em 16/10/14

Talvez a política externa do Vaticano precise de uma guinada

Dois discursos recentes, feitos por autoridades do Vaticano que lidam com a política mundial, sugerem que algumas posições-padrão da Santa Sé precisam ser revistas e mudadas.

Ambos os discursos fizeram referência ao livro "O choque de civilizações e a recomposição da ordem mundial", de Samuel Huntington. Os dois representantes vaticanos, numa perspectiva infeliz, deploraram uma suposta ansiedade de Huntington por antecipar o conflito entre as civilizações.

Resumamos o essencial dos argumentos de Huntington:

1) As linhas de atrito da política mundial após a Guerra Fria não são de tipo ideológico ou econômico (por exemplo, comunismo x democracia e mercado); as novas linhas de atrito são culturais.

2) Os Estados-nações continuarão a ser os principais atores no cenário internacional, mas eles se organizarão em blocos que refletem mais as suas afinidades culturais do que compromissos ideológicos ou sistemas econômicos concorrentes entre si.

3) A grande maioria dos cientistas políticos e dos teóricos das relações internacionais não se dá conta desta grande mudança nas placas tectônicas que subjazem à política mundial, porque eles são materialistas para quem só contam a política (a busca do poder) e a economia (a busca da riqueza). Esta cegueira deixa as autoridades públicas (que muitas vezes compartilham esse viés materialista) terrivelmente vulneráveis ​​a eventos cuja origem elas não conseguem compreender ou sequer imaginar.

4) Compreender o que está acontecendo no mundo, portanto, requer atenção a realidades geralmente ignoradas pelos cientistas políticos, pelos teóricos das relações internacionais e pelos próprios políticos, tais como a importância duradoura da convicção religiosa na modelagem das culturas, para o bem ou para o mal.

Sam Huntington, um filho da chamada “América WASP” (“white, anglo-saxon and protestant”, ou seja, branca, anglo-saxã e protestante) que demonstrou grande interesse pelo meu trabalho sobre o papel do catolicismo no colapso do comunismo, não estava prevendo, em sua obra, um caos inevitável provocado pelas linhas de atrito civilizacionais e culturais que ele tinha identificado. Ele estava nos alertando, em 1993, para os novos fatos da vida na política mundial, além de exortar tanto os teóricos quanto os estadistas a recalibrarem o seu pensamento a fim de administrar as tensões que, inevitavelmente, surgiriam ao longo dessas linhas de atrito. O artigo original de Huntington, publicado em 1993, bem como o livro derivado do artigo em 1996, são merecedores até hoje de leitura, até porque "O choque de civilizações" foi o primeiro livro, em várias gerações, no qual um cientista político de classe mundial levou a religião a sério como fator dinâmico, influente e, por vezes, determinante nos assuntos mundiais.

A sensibilidade de Huntington à relação entre religião e política mundial deveria ter sido considerada de modo mais profundo e sério pelo Vaticano. Entretanto, um Huntington-profeta-da-guerra-civilizacional-sem-fim é sempre evocado quando os funcionários da Santa Sé consideram necessário afirmar que "uma guerra entre o islã e ‘os outros’ não é inevitável" (o que seria verdadeiro se a guerra civil dentro do islã se resolvesse em favor dos muçulmanos que apoiam a tolerância religiosa e o pluralismo); ou que a perseguição contra os cristãos no Oriente Médio é um problema que deve ser encarado em conjunto com a ONU (ridículo); ou que o caminho para a paz reside no diálogo e não no confronto (o que também seria verdadeiro se a outra parte no diálogo não fosse tão dada a decapitar "os outros").

É claro que a proposta de Huntington não está acima de toda crítica, mas ele descreveu com precisão a grande mudança que ocorreria na
política mundial depois das guerras da modernidade tardia (as duas guerras mundiais do século XX e a guerra fria); ele previu com exatidão o que provavelmente derivaria das chamadas "fronteiras sangrentas" do islã caso os islamistas e jihadistas não fossem devidamente controlados pelos seus próprios companheiros muçulmanos; e identificou corretamente que a convicção religiosa (ou a falta dela, como no caso da Europa) desempenharia um papel muito importante em moldar o mundo do século XXI. Treze anos depois do 11 de setembro de 2001 e à luz das manchetes dos jornais de hoje, será que a proposta de Huntington é realmente tão implausível?

Há algo de muito estranho em torno a uma Santa Sé cujas posições-padrão incluem uma depreciação ritualizada da tese de Huntington, juntamente com uma insistente vontade de acreditar na capacidade da ONU de ser algo mais do que uma câmara de eco. Dentre todos os grandes atores globais, a Igreja católica deveria ser vanguardista em reconhecer o papel central que a cultura exerce na modelagem da política mundial e do papel crucial que a religião exerce na modelagem da cultura.

Espera-se que o pontificado reformador do papa Francisco mude não apenas as estruturas do Vaticano, mas também as enraizadas más ideias que persistem por trás do Muro Leonino.

Tags:
PolíticaVaticano
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