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Os cristãos deveriam admirar os valores muçulmanos?

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Rachel Lu - publicado em 29/10/14

Não devemos esperar que o mundo muçulmano assuma a liderança na resposta à ameaça do laicismo

Considerando que nós, católicos, nos debatemos pensando na melhor maneira de lidar com os frutos mais amargos da modernidade (como a depravação sexual e o desmoronamento do casamento e da família, por exemplo), pode ser que queiramos nos voltar à outra parte do planeta para observar uma cultura que tem demonstrado considerável sucesso na preservação dos costumes tradicionais. Estou falando, é claro, do mundo islâmico. Afinal, enquanto os cristãos abandonam em massa as suas centenárias convicções sobre o casamento e a sexualidade desordenada, os muçulmanos ainda aderem massivamente a essas visões tradicionais.

Vincent Ryan Ruggiero destacou este fato recentemente no US Catholic Journal, salientando que a maioria significativa dos muçulmanos que vivem no mundo islâmico gostaria que a sharia (a lei islâmica considerada como revelação divina) fosse adotada oficialmente em suas nações. A maioria esmagadora dos muçulmanos conserva as visões tradicionais sobre casamento, sexo, eutanásia e suicídio. Ruggiero repara que os ocidentais tendem a enxergar a sharia como bárbara e desumana, particularmente à luz das punições cruéis que ela determina (incluindo o apedrejamento dos adúlteros, a execução dos apóstatas e a amputação da mão dos ladrões). No entanto, ele sugere que deveríamos admirar o conjunto da moralidade islâmica, reconhecendo que os muçulmanos têm sido muito mais firmes do que nós na preservação das suas perspectivas morais tradicionais. Nós não estamos, com o perdão da suposta ironia, em posição de atirar pedras contra eles.

Os muçulmanos são notáveis pelas suas opiniões rigidamente conservadoras sobre muitos assuntos. Sendo assim, podemos considerá-los dignos amigos e aliados na defesa de certos objetivos em comum. Por exemplo, podemos unir as nossas forças com as de muçulmanos que tenham filhos na mesma escola onde estudam os nossos, visando defender um código razoável de vestimenta.

Mas será que devemos, num sentido mais amplo, admirar os valores muçulmanos? Ou devemos considerar os elementos mais perturbadores da lei islâmica e as ações bárbaras de grupos militantes islâmicos como uma prova de que o islã contém de fato alguns elementos desumanos?

O islã tem estado conosco há quatorze séculos e nem todos esses séculos foram repletos do horror que vemos hoje nos extremistas islâmicos. Os apologistas destacam que, historicamente, as sociedades islâmicas chegaram a ser, por vezes, muito elevadas e humanas em sua cultura, promovendo arte, filosofia e arquitetura de impagável valor. Nesses pontos mais altos da história da sociedade islâmica, as minorias religiosas desfrutaram, na maior parte das vezes, de uma existência pacífica, embora geralmente sob a condição de não procurarem cargos públicos de destaque nem tentarem fazer proselitismo entre os vizinhos muçulmanos. O islã nunca se sentiu à vontade com o pluralismo; e a apostasia sempre foi vista como grave pecado. Mas, nas suas manifestações mais elevadas, a cultura islâmica pode revelar certo respeito pelos judeus e pelos cristãos, especialmente porque vistos como companheiros que descendem de Abraão.

Devemos considerar os jardins de Córdoba a "norma" das sociedades muçulmanas e o Estado Islâmico uma aberração? Às vezes parece difícil responder. Mas é interessante notar que as sociedades islâmicas mais avançadas e prósperas tiveram influências helenísticas ou cristãs notáveis​​. Córdoba e Granada, no sul da Espanha, foram construídas na fronteira com a cristandade medieval. A Mesopotâmia islâmica floresceu durante o período em que as influências aristotélicas e neoplatonistas eram mais intensas. Alguns dos maiores pensadores do mundo islâmico “iluminista”, notavelmente Averróis, eram mais gregos do que muçulmanos em seu pensamento, e viam a religião, em grande medida, como uma muleta para as massas.


Averróis, aliás, continua sendo uma figura central na história islâmica e seu destino ecoa pelos séculos até os dias atuais. Ele acabou perdendo uma batalha que, de maneiras diferentes, aconteceu nas três religiões abraâmicas: a da relação entre fé e razão, e, especialmente, a de saber se a verdade revelada por Deus podia se conciliar com as conclusões da razão natural. Até que ponto deveríamos dar liberdade ao intelecto humano para explorar o mundo? Até que ponto deveríamos confiar nas nossas faculdades naturais?

Para as três religiões abraâmicas, estas questões se apresentaram de forma premente sob o disfarce de Aristóteles, o gigante da filosofia natural. Cobrindo uma enorme gama de assuntos, da metafísica à ética e à teoria política, Aristóteles propôs uma filosofia consistente e empiricamente satisfatória. Filósofos das três religiões queriam integrar esses conhecimentos ao seu trabalho. Mas Aristóteles era pagão: ele não teve acesso à revelação divina. Seria possível aprender algo dessa pessoa? Que tipo de autoridade ele poderia ter perante as pessoas de fé, se é que tinha alguma? Seria possível celebrar a “mera” realização humana sem evocar o primado de Deus?

A batalha para responder a essas perguntas se mostraria transformadora de maneiras diferentes para as três grandes religiões monoteístas. Havia muito mais em jogo do que o trabalho de um pensador antigo. Se os filósofos pudessem sintetizar com sucesso a teologia revelada com uma fértil filosofia natural, as recompensas poderiam ser enormes. Tal síntese poderia servir de base para uma tradição intelectual ao mesmo tempo ampla (e capaz, portanto, de se dirigir a uma enorme variedade de questões do mundo real) e profunda (no sentido de plenamente enraizada nas verdades reveladas por Deus). Encontramos esta síntese em seu grau mais magnífico na obra dos escolásticos medievais, em particular na de Santo Tomás de Aquino.

O trabalho de Aquino abrange uma enorme variedade de temas, desde proposições metafísicas até preocupações éticas do dia-a-dia. A tradição intelectual para a qual ele contribuiu tem consistência e flexibilidade suficientes para estender-se a uma vasta gama de civilizações, culturas e períodos históricos; é substantiva, sem ser reacionária. Ao mesmo tempo, é humanizadora: pode exultar na sabedoria dos nobres pagãos sem negar nem a autoridade de Deus nem o destino sobrenatural do homem. Integrando as virtudes humanas naturais numa história maior sobre a criação de Deus e sobre a redenção das almas, a filosofia cristã é capaz de subordinar os seres humanos a Deus sem obscurecer de modo algum o esplendor da sua própria bondade.

O islã nunca alcançou com sucesso uma síntese desse nível. O aristotélico Averróis ficou banido da Ibéria islâmica durante grande parte da sua vida por causa de suspeitas sobre a natureza possivelmente sediciosa do seu pensamento. Enquanto isso, o teólogo Al-Ghazali fez críticas mordazes contra as escolas helenísticas no mundo islâmico e foi tamanho o seu sucesso que os estudiosos muçulmanos nunca mais tentaram seriamente fazer outra síntese helenística. Al-Ghazali acabou se tornando uma das figuras mais importantes do pensamento islâmico. Obviamente, esse pensamento não é monolítico, mas, carecendo da base ampla e profunda de que goza a tradição cristã, as respostas do islã para a modernidade têm sido mais obviamente reacionárias. Para os muçulmanos, é difícil distanciar a sua espiritualidade de uma visão moral e política bem específica, que tem ramificações potencialmente desastrosas para os adeptos da fé que vivem no mundo moderno.

Os problemas que os muçulmanos modernos enfrentam são relevantemente semelhantes aos problemas dos cristãos e de todas as pessoas de fé: alienação generalizada, perda de sentido da vida humana, colapso dos costumes religiosos e tradicionais, na esteira de uma cultura laicista agressiva. E mesmo que admiremos, por exemplo, os pais muçulmanos que conseguem persuadir os filhos a resistirem às exigências da cultura laicista, temos que avaliar até que ponto as culturas muçulmanas apelam para o medo e até mesmo para a tortura a fim de garantir que os cidadãos continuem professando a fé e cumprindo códigos detalhados de comportamento.

Tais métodos podem, às vezes, ser eficazes, em especial no curto prazo. Mas a manutenção de um regime religioso por meio do medo e da ameaça de violência é obviamente incompatível com a dignidade humana. E, dada a magnitude da ameaça laicista, parece que as táticas necessárias para forçar os cidadãos a viver em conformidade com a lei islâmica se tornarão, com o tempo, ainda mais terríveis. Essas tendências já estão emergindo, a ponto de organizações cruéis como a Al-Qaeda acabarem ficando eclipsadas ​​por organizações ainda mais bárbaras, como é o caso do grupo Estado Islâmico.

Certamente, os cristãos devem se preocupar bastante em transmitir aos próprios filhos as suas crenças tradicionais, especialmente as relacionadas com a sexualidade sadia. Temos que ter o entusiasmo de continuar o trabalho de articular respostas convincentes e éticas para os problemas morais e espirituais da cultura contemporânea. E, nas ocasiões apropriadas e convenientes, podemos nos unir a companheiros muçulmanos na busca de objetivos sociais ou políticos específicos que temos em comum, além de respeitar, sempre, a integridade e a liberdade religiosa de todos os nossos concidadãos, inclusive os islâmicos.

Não devemos, porém, esperar que o mundo islâmico assuma a liderança na resposta à ameaça do laicismo radical. Para isso, temos que nos aprofundar nos múltiplos recursos da nossa própria tradição, com a confiança de recuperar uma cultura rica em virtudes, que celebra a dignidade humana e a liberdade, promovendo a prosperidade não só dos cristãos, mas de todos os seres humanos.

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