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Celibato tem mesmo a ver com abuso sexual?

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Marcin Mazur/UK Catholic

Philip Jenkins - publicado em 07/11/14

Os escândalos na Igreja anglicana, onde não há celibato, podem indicar que não...

Faz cerca de trinta anos que as igrejas começaram a reconhecer a dimensão e a gravidade dos abusos contra menores cometidos por parte do clero. Estamos hoje muito perto de chegar a conclusões de importância crítica sobre os fatores que causam e os fatores que não causam esse crime hediondo. Em particular, estão prestes a ser finalizados novos estudos muito relevantes sobre o real impacto do celibato sacerdotal nesses casos nefastos.

A crise dos abusos sexuais tem sido mais notória no âmbito da Igreja católica. Nos Estados Unidos, entre os anos de 1950 e 2002, cerca de 4,2% do clero católico foi acusado, plausivelmente, de ter cometido atos abusivos. Há também acusações contra indivíduos batistas, luteranos, judeus e de muitas outras confissões religiosas, mas essas evidências ainda parecem ser consideradas “anedóticas”, por falta de dados estatísticos que possam ser comparados adequadamente com as informações já levantadas sobre os abusos no contexto católico. Diante deste quadro, os ativistas e militantes de várias inclinações políticas se sentem mais livres para atribuir as causas dos abusos cometidos por clérigos católicos aos fatores que mais se encaixam na sua visão de mundo, culpando principalmente algumas características atribuídas ao sacerdócio católico: o celibato obrigatório, a tolerância prática à homossexualidade de uma parcela dos clérigos, a exclusão das mulheres do sacerdócio e assim por diante (comentário óbvio: eu estou apenas citando essas acusações, que são frequentes, o que não quer dizer que eu concorde com elas).

Mas, agora, o panorama dessas interpretações parece estar mudando. Estamos começando a ter acesso, finalmente, a dados concretos sobre os casos de abuso sexual ocorridos em outra Igreja, a anglicana. Isto permitirá uma comparação mais séria e efetiva com as estatísticas católicas já levantadas. No melhor estilo das ciências sociais, portanto, as variáveis agora poderão ser testadas e excluídas.

Há anos, o clero da Igreja da Inglaterra tem enfrentado repetidos escândalos envolvendo abusos muito parecidos com os dos alardeados casos ocorridos na Igreja católica: padres abusadores que ficaram impunes, autoridades eclesiásticas virando os olhos para o outro lado, denúncias de vítimas passando em branco. Estas histórias de terror tomaram proporções tão graves que levaram a uma abrangente e sistemática investigação de casos de abuso sexual cometidos por clérigos anglicanos ao longo dos últimos 60 anos. E as revelações iniciais são apavorantes.

À cabeça da Igreja anglicana está o arcebispo de Canterbury, Justin Welby, ex-executivo da indústria do petróleo e homem pouco dado a sentimentalismos. Mesmo assim, os seus recentes pronunciamentos têm chegado perto de um nível apocalíptico. Os casos de abuso clerical, segundo ele, não só "foram terríveis além de toda descrição" como a sua larga escala ameaça a própria fé. A Igreja da Inglaterra "falhou terrivelmente", complementa ele. Num debate sobre o assunto, Welby chegou a chorar. Ele afirmou também que, mesmo já sendo estarrecedores todos os escândalos recentes, "existem mais coisas que ainda não foram reveladas".

O arcebispo anglicano de York, por sua vez, propôs exigir que o clero revelasse os casos de abusos contra menores que tivessem chegado ao seu conhecimento inclusive sob o sigilo do confessionário. Trata-se de uma proposta que indica o quanto a situação é grave.

Dentro de um ano, mais ou menos, teremos um relatório abrangente, com os números dos casos plausíveis de abusos sexuais cometidos nos últimos tempos na Igreja anglicana. Coincidentemente ou não, Welby também está falando em revisar todos os registros do clero dos últimos 60 anos, período de tempo muito próximo do que foi coberto pelo famoso Relatório John Jay nos Estados Unidos (que compilou os casos católicos naquele país desde 1950 até hoje).

Ainda não temos as conclusões deste inquérito, mas podemos supor que, quando os números forem disponibilizados, eles serão no mínimo iguais aos da Igreja católica nos Estados Unidos. Possivelmente, até mais altos. Para fins de argumentação, poderemos então comparar os casos e analisar as consequências dessa comparação. Serão duas instituições com índices equiparáveis de casos de abusos cometidos por clérigos. Ambas as Igrejas – anglicanos ingleses e católicos norte-americanos – são bastante semelhantes na sua estrutura institucional e no papel especial que atribuem ao clero.

Mas elas se diferenciam num particular que é de enorme relevância para este debate: a Igreja católica impõe o celibato clerical. A Igreja anglicana não. Uma primeira conclusão óbvia, portanto, é que a exigência ou não do celibato sacerdotal não tem relação de causa com a incidência de abusos sexuais cometidos por clérigos.

Repito: eu estou fazendo suposições sobre o conteúdo que os inquéritos anglicanos ainda deverão apresentar, mas, se os primeiros indícios servirem como base, o celibato obrigatório terá que ser eliminado da mesa de discussões e da lista de fatores causais do abuso sexual. Poderá haver razões muito relevantes para se manter ou se acabar com o celibato sacerdotal, mas a “culpa” pelos casos de abusos sexuais não poderá mais ser citada entre essas razões.

Quero fazer mais duas observações gerais.

A primeira é que podemos apontar outra grande diferença entre os anglicanos e os católicos: o fato de que os anglicanos ordenam mulheres sacerdotisas. Isto, porém, não seria de grande relevância nas estatísticas dos abusos sexuais, já que as mulheres só começaram a ser ordenadas nos últimos anos e, portanto, não poderiam ter tido impacto algum nos casos anteriores a essa mudança.

A segunda observação é a seguinte: eu pressuponho que, quando terminarem o seu inquérito, os anglicanos vão perceber que a grande maioria dos casos de abusos comprovadamente cometidos por clérigos aconteceu a partir da década de 1970, quando a mudança da atitude social para com a sexualidade criou uma atmosfera excessivamente tolerante e, portanto, muito perigosa para os contatos sexuais entre adultos e menores. Foi exatamente este o caso observado nos Estados Unidos em relação com a Igreja católica. No caso inglês, o tempo nos dirá.

Pode haver uma vasta gama de outras descobertas, mas a principal, no tocante ao apontamento de “causas”, é esta: se a crise anglicana for mesmo tão terrível como parece que é, os futuros debates sobre o celibato terão que excluir ou diminuir muito o peso da sua suposta “culpa” pelos abusos cometidos por clérigos.

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