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Cristãos lutam pela sobrevivência no Líbano

Refugiados sírios no Líbano

Lusa / Ricardo Perna / Família Cristã

Ricardo Perna - Família Cristã - publicado em 27/11/14

Num país com 4 milhões de habitantes, o caos é uma realidade. Os refugiados sírios estão em todo o lado, em todos os edifícios de todas as aldeias, não apenas nos campos de refugiados

«Consegue imaginar mulheres a serem vendidas num mercado, como carne?» a pergunta ecoa ainda no espírito deste jornalista, horas depois de terminada a entrevista com a Ir. Hanan Youssef, da Congregação das Irmãs do Bom Pastor, que trabalha no Líbano com refugiados desde 2006, altura em que chegaram os primeiros 5 mil refugiados, resultado do ataque israelita ao Líbano. Hoje são 2, 5 milhões aqueles que, «só com a roupa que têm vestida», chegam aos campos de refugiados no Líbano.

Num país com 4 milhões de habitantes, o caos é uma realidade. «Imagine que, em Portugal entravam, num ano, 5 milhões de pessoas refugiadas, e pode ter uma ideia da dificuldade da situação em que vivemos», conta a Ir. Hanan, enquanto faz um retrato negro da situação no terreno. «Todos escolhem o Líbano porque é um país cristão e seriam bem recebidos. Mas o país está destruído, não há lugares nas escolas, nos hospitais, muitas mulheres dão à luz em todo o lado, não há água potável, não há eletricidade… podem imaginar a crise. O país tenta colocar-se de pé, mas é difícil, e não vem ajuda quase nenhuma da parte dos outros países. Mas o problema não é sequer o alto número de refugiados, mas sim os jihadistas que entram disfarçados de refugiados, matam pessoas e estão a fazer guerra contra os soldados libaneses dentro do seu próprio país. Há dias raptaram 30 soldados e mataram um de cada vez. É uma situação muito má», lamenta a religiosa.

As condições no terreno são mínimas, e aquilo que as Irmãs do Bom Pastor garantem é não mais que o básico para sobreviver. «Roupa, fraldas, leite, cobertores e um kit de higiene é o mínimo, mas não temos mais, e colaboramos com uma universidade de medicina no Líbano que nos envia doutores de várias especialidades. Prestamos serviços de saúde e de psicologia, porque eles estão a enfrentar traumas muito grandes», sustenta a religiosa.

Traumas que passam pelas situações mais incríveis que se possa imaginar. «São muitas as histórias, mas conto três que sucederam poucos dias antes de vir para aqui. Uma manhã estava no dispensário e vi um homem que trazia a sua mãe, de 85 anos e cega, numa cadeira de rodas. Ela foi forçada a deixar a sua vida, a sua casa, e vir para o Líbano assim, nesta idade, sem nada. Ela estava deprimida, a chorar, e a pergunta a Deus, como no fim da sua vida, tal lhe tinha acontecido. Depois encontrei dois jovens que vieram ver-me e dizer: "Irmã, não precisamos de comida, roupa ou medicamentos, precisamos de trabalho", e começaram a chorar. Fiquei muito impressionada, porque naquela região os homens não choram, supostamente são fortes e isso é sinal de fraqueza. Choravam porque os pais tinham vendido tudo, o carro, as joias, para lhes comprar um bilhete de avião para eles virem do Iraque para o Líbano, e eles queriam trabalhar para ganhar dinheiro para os trazer de lá também. Sentiam-se culpados por terem lá deixado os pais e terem fugido para o Líbano. Finalmente, a história de uma jovem de 16 anos que recebi e que chegou incapaz de pronunciar sequer uma palavra, e com uma expressão na cara muito fechada. Perguntei à mãe o que tinha acontecido, e ela contou-me, a chorar, que a filha tinha sido raptada e violada pelos jihadistas 17 vezes, após um pedido de resgate elevado. Ela vendeu tudo para conseguir o dinheiro, eles libertaram-na e ela fugiu para o Líbano com ela», relata a Ir. Hanan.

«A situação é inumana, é como se a vida humana não tivesse qualquer valor. O Papa Francisco disse há umas semanas que não compreendia como esta barbárie acontecia no Oriente. Parece que recuámos aos tempos antes de Cristo, e não conseguimos perceber como chegámos a esta situação…», lamenta.



Fogem para não mais voltar

Ninguém sabe o que fazer com estes refugiados. «Não há um plano para nada. O plano é viver dia após dia. Não sabemos como gerir isto, e o Estado não faz nada. Só as iniciativas particulares é que permitem ir fazendo algum trabalho, mas sem um plano, vivemos dia a dia, ou melhor, sobrevivemos dia a dia, não vemos uma solução no futuro…», diz a religiosa. Num país que se viu, de repente, inundado de refugiados, ninguém consegue ver uma solução para a crise, e todos estão preocupados com a possibilidade dos refugiados sírios não poderem voltar ao seu país. «Os iraquianos deixaram o Iraque para sempre. Vieram para aqui, e foram recebidos. Mas eram uma minoria. Não podemos fazer o mesmo aos refugiados sírios, são muitos…»

De repente, um pequeno acesso de fúria toma conta do discurso calmo da Ir. Hanan. «Ninguém faz nada para que isto acabe. É… não há vontade para pôr um fim nisto, os seres humanos não se preocupam com estes seres humanos… ninguém se preocupa connosco ou com o facto de muitas vidas se estarem a perder. As crianças são levadas para a guerra, homens e mulheres são vendidos no mercado. Consegue imaginar? Vendem mulheres assim, como mercadoria, e ninguém toma uma posição sobre isto, para dizer "Chega!" É realmente desumano», critica, com um ar pesaroso.

A crise está, aliás, a afetar os próprios libaneses. «Os refugiados sírios estão em todo o lado, em todos os edifícios de todas as aldeias, não apenas nos campos de refugiados. É uma grande crise, e é por isso que muitos libaneses também já estão a abandonar o país, porque a situação está a tornar-se insustentável. Eles não são contra receberem os refugiados, mas não aguentam viver nestas condições», disse a Ir. Hanan.

O drama das crianças que nascem refugiadas

Considerando que há cerca de 8 anos que o Líbano se vê a braços com o problema dos refugiados, há uma nova geração de crianças que nasceram já nos campos de refugiados e que nunca conheceram outro modo de vida que não o de ser refugiado, viver sem casa, não ter direitos no país onde vive e não ter possibilidade de regressar ao país onde poderia ser cidadão de plenos direitos. «Essa é a grande questão e um grande desafio. As crianças no Líbano estão envolvidas num círculo de violência, e não podem experienciar uma vida normal. Não podem ser como outras crianças da sua idade, que vão à escola, vão para casa, recebem uma educação… a UNICEF tenta, mas são iniciativas muito pequenas, e esta é uma questão muito indefinida. Não vemos um futuro para esta geração de crianças…», avisa a Ir. Hanan.

O problema estende-se, aliás, a todos os refugiados que o Líbano acolhe. «Os refugiados palestinianos já vivem essa realidade. São refugiados, não têm nacionalidade, e tememos que suceda o mesmo com os sírios. Só trabalham no mercado negro, e tornam-se uma comunidade muito fechada e com muita violência dentro dos campos, e isto é péssimo para as crianças e gerações futuras», defende a religiosa, que teme que este "porto seguro" que é o Líbano se torne, em breve, um país em conflito interno. «Temos que o país possa cair, se nada se fizer», afirma.

Por isso, não são também criadas infraestruturas de apoio aos refugiados. Se, por um lado, a instabilidade da região não permite, por outro não é bom criar estruturas definitivas que possam dar «estabilidade» aos refugiados. «Queremos que as pessoas voltem às suas casas. Se construirmos todas essas infraestruturas, as pessoas não vão querer regressar ao seu país, vão querer ficar, e isso não é suportável para nós», sustenta, adiantando que, neste momento, não pensam numa «vida normal, com casas, escolas». «Só queremos sobreviver», suspira.

Ir. Hanan Youssef

Despertar consciências para que o povo pressione os políticos

Não se sabe como tudo vai terminar naquela região. Mas a Ir. Hanan não está preocupada com o como. Só quer é que pare a barbárie. E isso passa por uma maior consciencialização do problema da parte de políticos e cidadãos dos países com capacidade de intervenção. «Na Europa fazem-se manifestações e fecham-se estradas por um cão, ou um gato. Ali, destroem-se vidas todos os dias, morrem pessoas, e encara-se isto como se fosse normal, porque estamos muito longe de vocês», diz. «Precisamos que a imprensa ponha isto na primeira página, é muito perigoso ficarmos silenciosos, é como se estivéssemos a tomar parte no problema. A opinião pública deve forçar os políticos a atuar», pede a religiosa libanesa. «Nós não podemos decidir nada. Está tudo nas mãos de quem pode decidir. Eles podem decidir acabar com isto quando quiserem», considera a Ir. Hanan Youssef.

Quanto ao povo, resta-lhes rezar. E fé é coisa que não lhes falta. «As pessoas têm fé em Deus, e não duvidam da sua existência. Sto. Inácio de Antioquia disse que onde a Igreja é perseguida a sua fé é mais forte, e isso é verdade. As pessoas esperam em Deus que o próximo dia seja melhor, têm esperança…»

Pode ler a entrevista na íntegra com a Ir. Hanan Youssef clicando aqui.

Pode ler o artigo original publicado no site da Família Cristã aqui.

Ricardo Perna
Fotos: Lusa e Ricardo Perna

Tags:
Cristãos
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