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O Natal do silêncio e da oração

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Ricardo Perna - Família Cristã - publicado em 23/12/14
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Na clausura, tudo se faz de forma diferente
No Mosteiro da Cartuxa, em Évora, o Natal é diferente. Em silêncio e contemplação, os monges vivem este tempo de festa com tanto ou maior entusiasmo que as famílias que se reúnem. A FAMÍLIA CRISTÃ esteve lá, visitou a clausura e conta-lhe a história de um Natal diferente do habitual.
 
Se alguém lhe dissesse que os seus ingredientes de um Natal perfeito eram jejum, oração prolongada e silêncio, acharia estranho? Pois bem, era muito pouco provável que, de facto, alguém lhe dissesse isso, pois é possível que os únicos que utilizam esses ingredientes sejam monges e vivam em clausura no Mosteiro Cartuxa Scala Coeli, em Évora (e noutros mosteiros que a congregação tem em todo o mundo) e não têm contacto com ninguém.

Os monges da Cartuxa serão, provavelmente, os mais radicais na escolha da forma de passar o Natal. Jejum, oração e silêncio parecem estranhos a quem pensa no Natal como a festa da família, quando todos se reúnem à volta da mesa para festejar, ou vão juntos à Missa do Galo, que é uma celebração alegre e de ação de graças. Mas fazem todo o sentido. «Por ser, para nós, um dia de festa tão importante, pede-nos uma união maior com Deus e portanto passamo-lo em silêncio e oração. É uma vivência tão forte da liturgia e da união com Deus que não nos dá vontade de falar», diz-nos o Pe. Antão Lopez, superior da comunidade da Cartuxa, monge há 60 anos, 50 deles passados ali, em Évora.

Num mosteiro em que se divide o dia em três partes idênticas (oito horas cada) de descanso, oração ou leitura e trabalho, as festas maiores da Igreja são celebradas com ainda mais empenho e oração. Existem, na Cartuxa, três momentos comunitários: uma oração à meia-noite, missa pela manhã e oração de vésperas pela tarde. Comunitários, mas em silêncio, que o convívio entre os monges apenas acontece aos domingos, depois da missa dominical e durante o almoço.

No Natal, no entanto, o processo é ligeiramente diferente. O dia 24 é de jejum a pão e água, «em memória da morte de Nosso Senhor», como o é todas as sextas-feiras ou vésperas de dias santos. À noite, pelas 23 horas, começa a Missa do Galo, conforme é mais vulgarmente conhecida, e as orações prolongam-se por cerca de quatro horas, ao que se segue o descanso. No dia 25, segue a festa da celebração do nascimento de Jesus, mas sempre em silêncio, com as orações das horas intermédias a serem rezadas nas celas. «Temos muita liturgia, mas não temos convivência neste dia, a não ser com Deus», explica-nos o Pe. Antão.

Esta convivência mais comunitária surge apenas dia 26. «No dia 26 é como se fosse domingo. Comemos juntos ao almoço e ficamos durante a tarde em convívio até ao lanche, que também partilhamos em conjunto, ao contrário dos domingos normais», conta o Pe. Antão. Um processo que deixa espantados os noviços, e as próprias famílias dos monges, que «reclamam» destas regras, comenta o Pe. Antão, divertido. «Os noviços estranham, mas quando nos sintonizamos com a nossa oração, eles compreendem e faz sentido. Já as nossas mães reclamam muito (risos)», confidencia o sacerdote espanhol, que conta que nesta altura do ano não há visitas nem comunicações. «Nós renunciamos à nossa família de sangue, e não os visitamos, são eles quem nos visita. Este é um dos maiores sacrifícios que os jovens que entram na Cartuxa sentem, e na altura do Natal mais um pouco. O Natal vive-se na Cartuxa em família. Dia 24 estamos em família em oração, dia 25 gostamos de estar em silêncio a falar com Deus, e 26 estamos juntos, mas sem a família de sangue. Até procuramos evitar que venham nesta altura, vêm mais no verão, até porque seria complicado ter aqui todas as famílias, e nós não queremos “perder” esse tempo, já que queremos estar em oração. Mas sabemos que é doloroso, por outro lado, passar esse tempo sem eles», diz.

Um isolamento nem sempre isolado por causa da fé das pessoas

O Mosteiro da Cartuxa não está aberto a visitas. Se por um lado é essencial que assim seja, para preservar o isolamento em que os monges resolveram viver, por outro é uma pena que não se possa sentir a paz e o silêncio retemperador que ali se vive, conforme testemunhou a reportagem da FAMÍLIA CRISTÃ. Os corredores vazios e o silêncio que penetra no espírito elevam a alma. Cheios deste espírito de Deus, os monges nem precisam de trocar prendas no Natal. A oração é o presente de Deus e o convívio, o presente que oferecem uns aos outros os cinco monges que ali vivem. «Não trocamos prendas, somos comunistas (risos). Temos na cela apenas o que precisamos, e não temos nada para dar a ninguém. Entre nós não somos sequer “proprietários da bengala que usamos”, diz a nossa Regra de vida, e por isso o convívio e a conversa é o presente que trocamos uns com os outros», conta o Pe. Antão.

Mas isso não significa que o Natal não seja marcado por gestos externos. «No dia de Natal enfeitamos mais a igreja e temos um presépio grande», conta o Pe. Antão, que recorda um monge português, antigo jogador do Sporting, que, «por ser negro, colocava Baltazar, o Rei Mago negro, sempre à frente dos outros dois». «Fazemos um grande presépio e vamos avançando os Reis Magos um pouco cada dia. Só no dia 6 de janeiro é que são colocados frente ao Menino Jesus», diz o sacerdote e monge.

Este isolamento dos monges da Cartuxa não significa um corte com o mundo de fora. Seria impossível, a avaliar pela quantidade de telefonemas, cartas e pedidos que recebem. O Pe. Antão celebra semanalmente uma missa numa capela do mosteiro que está fora da clausura e que tem sempre «cerca de 30 carros parados à porta», com amigos, vizinhos e pessoas que vêm de longe porque «gostam da simplicidade de uma missa toda rezada».

De fora vêm também muitas prendas na altura do Natal. «Doces, comidas, oferecem-nos até demais para nós. Recebemos muito porque os amigos se lembram de nós», reconhece o superior do mosteiro da Cartuxa. Prendas, mas intenções de oração também. «Como superior, que atende também o telefone, esse é um assunto para mim comovente. Ao contrário de outros mosteiros da Cartuxa, aqui há muita religiosidade popular e muito pedido de oração, por telefone, carta ou e-mail. Pedem que reze pelo filho que tem o casamento em crise, ou o marido que está a morrer, nem se identificam, por vezes. Rezamos por todas as intenções que nos são pedidas, nas várias missas que temos. E algumas pessoas ligam-nos mais tarde a falar sobre o que sucedeu e como a graça foi atingida. Tínhamos um padre de Lisboa que nos encomendava muitas intenções da sua paróquia, e depois ligava-nos sempre a dizer como tinham corrido as coisas», diz o Pe. Antão, que acrescenta que «não precisamos do feedback, porque sabemos que Deus nos escuta, mas é sempre agradável receber essas notícias». No Natal, não há intenções especiais. «São as mesmas de todo o ano. Mas ligam-nos muitas vezes para desejar um Feliz Natal», conta.

Em silêncio e contemplação, o Natal tem um sabor tão igual para estes monges como para as famílias que se reúnem em festa ruidosa. O Deus Menino nasce para todos, e cada um vive essa festa ao seu jeito particular. E você que nos lê, como escolhe viver o seu Natal?



texto e fotos Ricardo Perna

 
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