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Falta de fé pode ser fonte de nulidade matrimonial?

Pope Francis with Prelate Auditors, Officials and Advocates of the Tribunal of the Roman Rota – AFP – pt

© OSSERVATORE ROMANO / AFP

Pope Francis stands with Prelate Auditors, Officials and Advocates of the Tribunal of the Roman Rota during an audience for the occasion of the solemn inauguration of the judicial year at the Clementine Hall of the Vatican Apostolic Palace on January 23, 2015. AFP PHOTO / OSSERVATORE ROMANO

Ricardo Perna - Família Cristã - publicado em 27/01/15

Papa Francisco relançou a questão com novos dados, perante a Rota Romana

O Papa Francisco pediu na sexta-feira ao Tribunal da Rota Romana que considere apenas a vontade da pessoa como argumento para a declaração de nulidade matrimonial, além da vontade demonstrada de que as limitações financeiras impeçam «o acesso de todos os fiéis à justiça da Igreja». «Os sacramentos são gratuitos, os sacramentos dão-nos a graça, e um processo matrimonial diz respeito ao sacramento do Matrimónio. Quanto gostaria que todos os processos fossem gratuitos», confessou.

No dia em que apresentou a sua Mensagem para o Dia Mundial das Comunicações Sociais, Francisco discursou para os membros do Tribunal da Rota Romana, o Tribunal eclesiástico da Santa Sé, na abertura do ano judicial. Um discurso bem mais valioso do que a sua cobertura mediática, pois passou despercebido à maioria dos órgãos o pedido de Francisco aos juízes. «O juiz, ao ponderar a validade do consentimento expresso, deve ter em conta o contexto de valores e de fé – bem como a sua carência ou ausência – em que a intenção matrimonial se formou», disse o Papa.

Em casos de dúvida sobre a validade do casamento, assinala o Papa, o juiz deve verificar se houve «um vício de origem do consenso», seja por falta de uma intenção «válida» seja por um «grave défice na compreensão do próprio Matrimónio». O Papa aludiu ao «contexto humano e cultural» em que se forma esta «intenção matrimonial», marcado atualmente por uma «crise de valores».

Poderíamos assumir estar perante uma posição idêntica à já defendida por Bento XVI e João Paulo II. Mas esse pode não ser o caso, pelo menos segundo o Pe. José Alfredo Patrício, canonista da diocese de Lamego, para quem o discurso de Francisco hoje «encerra uma novidade e coloca novas questões».

No seu discurso, o Papa afirma que «a falta de conhecimento da fé pode levar ao que a Igreja define como erro determinante da vontade, conforme o cânone 1099». Ou seja, o que o Papa defende é que a «formação da intenção matrimonial» dos nubentes pode ser deturpada pela falta de fé desse nubente e que tal facto pode ameaçar «não só a estabilidade do Matrimónio, a sua exclusividade e fecundidade, mas também a ordenação do Matrimónio para o bem do outro», conforme se pode ler no seu discurso.

Esta postura é «nova» e não vai no mesmo sentido das intervenções dos anteriores Papas, segundo o Pe. José Alfredo. Em 2003, no seu discurso perante a Rota Romana, João Paulo II colocava já a hipótese de haver matrimónios que, em virtude da falta de fé dos nubentes no momento de aceitação do sacramento, pudessem ser declarados nulos. E Bento XVI, em 2013, repetiu essa mesma intenção aos membros do Tribunal da Rota Romana. «Certamente o fechamento a Deus ou a recusa da dimensão sagrada da união conjugal e do seu valor na ordem da graça torna árdua a encarnação concreta do modelo altíssimo de matrimónio concebido pela Igreja segundo o desígnio de Deus, podendo chegar a minar a própria validade do pacto quando, como assume a consolidada jurisprudência deste Tribunal, se traduz numa recusa de um princípio da mesma obrigação conjugal de fidelidade, ou seja, dos outros elementos ou propriedades essenciais do matrimónio», dizia Bento XVI na altura.

No entanto, ambos os pontífices alertavam para o facto de «o pacto indissolúvel entre homem e mulher não exige, para fins da sacramentalidade, a fé pessoal dos nubentes; o que é exigido, como condição mínima necessária, é a intenção de fazer o que a Igreja faz», como dizia Bento XVI. Ou seja, que o argumento da falta de fé apenas poderia ser utilizado se estivesse «aliado à falta de acreditar numa das propriedades do matrimónio, como o ter intenção de se divorciar, ou não desejar ter filhos», confirma o Pe. José Alfredo Patrício.

Apenas intenção não chega para anular outros sacramentos

Então qual é a diferença essencial entre ambas as posições? «Há uma ausência da referência à recusa de alguma das propriedades do matrimónio. O Papa afirma que a formação da intenção matrimonial no indivíduo pode ter preponderância como elemento de avaliação sobre a nulidade do matrimónio, ao contrário dos que afirmaram os dois pontífices anteriores», diz o Pe. José Alfredo, que acrescenta que isto levanta outras questões. «A fé não é necessária para a realização dos sacramentos. Dois não batizados podem casar-se que a Igreja reconhece a sua união, no caso do batismo a criança não demonstra ter fé quando o recebe, ou mesmo quando um sacerdote celebra uma missa estando ele próprio em pecado, o sacramento é válido para os fiéis que comungam», exemplifica o canonista de Lamego. «A validade do sacramento não se coloca em causa se não houver fruto», acrescenta.

As bases para estas posições vêm do Concílio de Trento, que foi o concílio que "organizou" toda a Igreja, ainda no século XVI, e que definiu, segundo diz o Pe. José Alfredo, as condições de validade para todos os sacramentos, exceto para o do matrimónio, onde definiu que «é o consentimento que o torna válido», conforme também defendia Bento XVI.

Esta argumentação já estava vigente num grupo «minoritário» dentro da Rota Romana. «Há vários anos que um grupo minoritário defende que a falta de fé dos nubentes pode ser enquadrada no cânone 1099 como um erro invalidante da vontade, e o Papa fez hoje sua esta corrente minoritária», considera o sacerdote.

Uma corrente que, segundo este especialista ouvido pela Família Cristã, pode ser questionada. «O que torna válido o sacramento é o consentimento, que se baseia numa intenção proclamada, não é a oscilação da intenção dos ministros, que neste caso são os nubentes», considera.

Consequências desta abordagem

Perspetivando o futuro, o Pe. José Alfredo acredita que esta abordagem poderia fazer aumentar ainda mais os casos de pedidos de nulidade, correndo o risco de se poder «vulgarizar» este instrumento, quase como um "divórcio religioso". «Há esse risco, é verdade. Até porque, na minha opinião, e ao contrário do que alguns colegas consideram, os pedidos de nulidade vão continuar a aumentar nos próximos anos. Antes de mais, porque há mais informação e preparação dos tribunais. Mas principalmente porque a Igreja é a única instituição no mundo que defende o casamento para toda a vida e com filhos, e as pessoas têm apreço por isso. Mesmo que as pessoas não a consigam cumprir, a proposta da Igreja é atrativa», considera o sacerdote da diocese de Lamego.

Até porque, na sua opinião, «muitas pessoas vêm à nossa procura, nos tribunais eclesiásticos, depois de se terem dado conta do que é o casamento pela Igreja, e esse número tem aumentado».

A solução não pode estar também no impedimento da celebração do sacramento. Apesar da maior exigência que se pode colocar, e que foi falada no Sínodo dos Bispos e tem sido falado por alguns responsáveis da pastoral familiar em todo o mundo, «não se pode medir o grau de fé das pessoas de forma objetiva, e deixar isso nas mãos dos sacerdotes é tornar todo o processo aleatório. Este padre não me casa, vou ao outro do lado, e isso não pode ser regra no Direito Canónico», considera o sacerdote.

O Papa tinha formado, ainda antes do Sínodo, uma comissão para estudar todas as questões relacionadas com a nulidade matrimonial, e mostrou também hoje que esta é uma questão importante para si, ao pedir aos membros da Rota Romana que «não fechem a salvação das pessoas dentro das restrições do legalismo». «Precisamos de uma conversão pastoral de estruturas eclesiásticas para fornecermos a opção justa aos que se voltam para a Igreja a pedir que lancemos luz sobre a sua situação conjugal», disse o Papa. Um caminho que não promete ser fácil no sentido de construir consensos, como tem sido apanágio de Francisco.

Ricardo Perna (com Agência Ecclesia)

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