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Aos 81, um câncer terminal, uma reflexão para todos

Oliver Sacks – pt

Luigi Novi

Aleteia Vaticano - publicado em 23/02/15

"O meu sentimento predominante é de gratidão. Tenho amado e tenho sido amado. Recebi muito e dei algo em troca"

Oliver Sacks tem um câncer terminal. Vale a pena ler e refletir sobre o artigo que ele publicou no dia 19 de fevereiro no jornal The New York Times. Professor de neurologia da Escola de Medicina da Universidade de Nova York e autor de "Tempo de Despertar" ("Awakenings") e de outras obras, ele anunciou sua doença pelo jornal e publicou um depoimento tocante, com o título de "My Own Life". A tradução livre ao português é do jornalista Ethevaldo Siqueira e foi publicada em sua página no Facebook. Eis o artigo de Oliver Sacks:

"Há cerca de um mês, eu achava que estava muito bem, com boa saúde. Aos 81 anos, eu ainda nadava uma milha por dia. Mas minha sorte acabou. Há algumas semanas, eu soube que múltiplas metástases se espalham por meu fígado. Há nove anos, eu havia sido diagnosticado com um tumor raro no olho, um melanoma ocular. Embora a radioterapia e o raio laser usados para remover o tumor me tivessem causado a cegueira daquele olho, estava otimista pois só em casos muito raros tais tumores renascem em metástase. No entanto, fui contemplado com os 2% de risco desse tipo de câncer.

Sou grato pelos nove anos que desfrutei de boa saúde e produtividade depois daquele diagnóstico, mas agora estou cara a cara com a morte. O câncer já ocupa um terço do meu fígado, e embora seu avanço possa ser retardado, este tipo particular de câncer não pode ser interrompido.

Cabe-me agora escolher como viver os meses que me restam. Tenho que viver da maneira mais rica, mais profunda, mais produtiva que puder. Nesta situação, busco ânimo nas palavras de um dos meus filósofos favoritos, David Hume, que, ao saber que ele estava mortalmente doente aos 65 anos, escreveu uma pequena autobiografia em um único dia, em abril de 1776. Ele intitulou-o "My Own Life".

"Encontro-me agora em processo de rápida dissolução", escreveu ele. "Até agora, sofri muito pouca dor com a minha doença; o mais estranho, contudo, é que, não obstante meu grande declínio físico, nunca me deixei abater. Mais do que nunca, disponho de grande entusiasmo, disposição pelo estudo e alegria pela companhia das pessoas".

Tenho tido bastante sorte para viver além dos 80 e os 15 anos que ultrapassei a idade de Hume foram igualmente cheios de trabalho e amor. Nesse tempo, publiquei cinco livros e completei uma autobiografia (algumas páginas mais longa do que a de Hume), a ser publicada ainda no primeiro semestre deste ano. E ainda tenho vários outros livros em fase final de conclusão.

Mais adiante, continua Hume: "Eu sou (…) um homem tranquilo, de temperamento controlado, de um humor aberto, social e alegre, agradecido, mas pouco suscetível de inimizade, e de grande moderação em todas as minhas paixões."

Aqui eu me afasto de Hume. Embora tenha apreciado relacionamentos amorosos e amizades e o fato de não ter inimizades reais, eu não posso dizer (nem que qualquer um que me conhece dizer) que eu sou um homem de temperamento tranquilo. Pelo contrário, eu sou um homem voluntarioso, com decisões extremadas e nenhuma moderação em todas as minhas paixões.

E, no entanto, uma frase do ensaio de Hume me parece especialmente verdadeira: "É difícil que alguém seja mais desapegado da vida do que sou hoje." 

Nos últimos dias, tenho sido capaz de ver a minha vida a partir de uma grande altitude, como uma espécie de paisagem, e com um profundo senso de conexão de todas as suas partes. Isso não significa que eu me sinta no fim da vida. 

Pelo contrário, eu me sinto intensamente vivo. Mais ainda: no tempo que me resta, quero e espero consolidar minhas amizades, para dizer adeus àqueles que eu amo, para escrever mais, para viajar e, se tiver força, para alcançar novos níveis de visão e compreensão da vida e do mundo.

Isso implicará audácia, clareza e simples uso da palavra; tentar acertar minhas contas com o mundo. Mas haverá tempo, também, para me divertir (e até mesmo fazer algumas bobagens, também).

De repente, percebo um foco luminoso e uma perspectiva. Sei que não há tempo para nada não essencial. Tenho de me concentrar em mim mesmo, em meu trabalho e em meus amigos. Eu já não devo assistir ao telejornal "NewsHour" com as notícias de todo o mundo, todas as noites. E que já não preciso prestar nenhuma atenção à política ou às razões ponderáveis sobre o aquecimento global.

E isso não é indiferença, mas desapego: eu ainda me importo profundamente com o Oriente Médio, com o aquecimento global, com a crescente desigualdade. Mas estes não são mais assuntos da minha conta. Eles pertencem ao futuro. Alegro-me quando encontro jovens superdotados — mesmo aquele especialista que fez a biópsia e diagnosticou minhas metástases. Ao conhecê-los, sinto que o futuro está em boas mãos.

Ao longo dos últimos dez anos, tenho sido cada vez mais consciente da morte de meus contemporâneos. Minha geração está a caminho, e sinto cada morte como um descolamento, uma perda a rasgar de parte de mim.

Não haverá ninguém como nós quando se forem, mas, em seguida, não haverá ninguém como qualquer outra pessoa, de nenhum modo. Quando as pessoas morrem, elas não podem ser substituídas. Elas deixam vazios que não podem ser preenchidos, pois esse é o destino — o destino genético e neural — de cada ser humano, como se fosse um indivíduo único, que encontra o próprio caminho, para viver sua própria vida, para morrer sua própria morte.

Não posso fingir que não tenho medo. Mas o meu sentimento predominante é de gratidão. Tenho amado e tenho sido amado. Recebi muito e dei algo em troca. Eu li e viajei, pensei e escrevi. Tive uma relação carnal com o mundo, a relação especial de escritores e leitores. Tenho sido, acima de tudo, um ser que sente, um animal pensante, neste belo planeta, coisa que me parece ter sido um enorme privilégio e aventura."

http://www.nytimes.com/2015/02/19/opinion/oliver-sacks-on-learning-he-has-terminal-cancer.html?_r=1

Tags:
CâncerDoençaMorte
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