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«Há um genocídio que está a ser silenciado»

Líbano: criança refugiada

AIS Portugal

Ricardo Perna - Agência Ecclesia - publicado em 10/04/15

Os campos de refugiados no Líbano e no Iraque: cristãos perseguidos, obrigados a deixar as suas terras para fugirem da perseguição do Estado Islâmico

Catarina Martins, diretora da Fundação Ajuda à Igreja que Sofre em Portugal, integrou um grupo internacional da Fundação que esteve de visita aos campos de refugiados no Líbano e no Iraque, que estão a ser apoiados pela AIS. O retrato que traz do terreno é, ao mesmo tempo, preocupante e extraordinário, pela falta de condições em que as pessoas são obrigadas a viver e pelo testemunho de fé que emana destes cristãos perseguidos, obrigados a deixar as suas terras para fugirem da perseguição do autoproclamado Estado Islâmico.

O que é que encontrou no terreno?

Esta foi uma viagem difícil em termos pessoais, pois vimos situações muito difíceis de ver e de perceber como é que, no século XXI, há pessoas obrigadas a viver nestas condições. Mas ao mesmo tempo foi muito interessante verificar como é que há pessoas que vivem numa alegria muito grande, apesar da desgraça que caiu sobre elas. Muito confiantes na fé, em Deus, o que me tocou muito. Vi dois países destruídos, em que há um impacto muito grande dos milhões de refugiados no funcionamento do país, o que a chegada implicou no racionamento da água, da luz, na falta de bens essenciais… o impacto é visível e foi muito sentido por nós durante esta visita.

Sentiram-se inseguros?

Sim, sentimos, particularmente no Líbano. O Líbano tem 4 milhões de habitantes e mais de 2 milhões de refugiados e a maioria dos refugiados são sírios. Houve a guerra Síria-Líbano e há ainda muitos traumas resultantes desse conflito, e neste momento os libaneses sentem-se invadidos pelos sírios. Toda esta pressão que a presença dos sírios exerce sobre a sociedade libanesa torna tudo instável. Há muita segurança na rua, muitos militares, checkpoints de controlo, a segurança é visível. Depois, os refugiados iraquianos que chegaram agora precisam de ajuda total, pois partiram sem nada do seu país. A comunidade cristã no Líbano, que era uma comunidade muito forte, por causa de todos estes refugiados, agora é uma minoria porque a maior parte dos refugiados que chegam são muçulmanos e há muitos conflitos que sentimos que poderiam ser a gota que faria transbordar o copo de água.

A maioria dos refugiados são então muçulmanos?

Maioritariamente sim. Há um grupo de cristãos, claro, mas em termos de números são mais os muçulmanos. Tudo isto, com o aumento da escassez dos alimentos, 40% de desemprego no Líbano já antes da entrada dos refugiados… o Líbano não consegue responder a tudo. Falta água, luz, as crianças libanesas deixaram também elas de ir à escola, tudo isto tem provocado um grande impacto na sociedade e percebe-se a tensão no ar. E estive em zonas onde há confrontos com as tropas do ISIS e as tropas libanesas, portanto está tudo muito confuso. Se o Líbano entrar em conflito, pode ser desastroso para as minorias.

Tendo em conta que o Líbano é um país que serve como pilar de saudável convívio entre as religiões, isso pode ser um ponto de viragem completo.

Eu falei com algumas pessoas que pretendem que o Líbano seja um exemplo para os países vizinhos, e mostrar que a forma que encontraram na sua constituição de ter um equilíbrio entre todas as religiões pode ser exemplo para os outros. Se acontecer alguma coisa lá, será dramático porque ficará provado que este modelo não funciona, pelo que vamos ver. Ouvi pessoas com esperança no exemplo que está a vir do Egito, que pode ser modelo a seguir, mas vamos ver, as coisas têm sido tão instáveis nos últimos anos que não sabemos o que pode acontecer.

Quais são as principais preocupações em relação aos refugiados no Líbano e aos deslocados internos no Iraque?

No Líbano a preocupação é tentar ajudar as pessoas a encontrarem uma solução para as suas vidas, para além da ajuda de emergência para que sobrevivam todos os dias. A esperança de muitos dos refugiados com quem eu falei é de regressarem aos seus países, mas isso só acontecerá se houver paz e segurança nos seus países, o que vai demorar o seu tempo. Alguns querem desesperadamente sair para vir ter com os seus familiares na Europa, EUA e Austrália, mas os países ocidentais também não têm capacidade para acolher estas pessoas, os vistos estão a ser muito demorados, pelo que estas pessoas terão de continuar lá e as organizações internacionais terão de lá continuar a apoiar, porque as pessoas vão sempre depender dessa ajuda.

No caso do Iraque, e dos deslocados internos, a grande preocupação da Igreja cristã é encontrar um espaço que permita às famílias saírem dos contentores em que estão e passar para uma casa, um quarto, onde as famílias possam estar com a sua privacidade, ao contrário do que acontece agora. Apostar fortemente na educação das crianças que estão nos campos, pois a sua educação foi interrompida, assim como a de jovens que conheci e que estavam a terminas as suas licenciaturas. É preciso preparar estes jovens e crianças para que elas possam ajudar a desenvolver o país daqui a uns anos.

Conseguirão os cristãos no Iraque voltar a suas casas?

Pode ser necessário encontrar um novo espaço, porque os cristãos estavam predominantemente na planície de Nínive, onde está Mossul, Qaraqosh, mas neste momento há muitos cristãos na zona Norte, no Curdistão, em Ankawa. Há esta ideia e disponibilidade da Igreja no sentido de encontrar novas regiões e novos espaços onde os cristãos se possam estabelecer. O objetivo da Igreja é que o Cristianismo não desapareça do Médio Oriente.

E a zona onde os yazidis estão é de convivência pacífica?

É muito tranquila a relação. Eu estive com várias famílias yazidis que me disseram que, de geração em geração, vai passando o ensinamento que diz que "sempre que tiveres um problema dirige-te à igreja, que a Igreja ajuda-te, os cristãos ajudam-te", e o que eles fizeram agora foi ficar junto dos cristãos. Conheci um padre no Norte que estava a ajudar 55 famílias a sobreviver, que são famílias que sofreram muito com as perseguições do ISIS.

Ouvimos muito falar de um conflito com cariz religioso. Mas o facto de haver também tantos muçulmanos a serem perseguidos e expulsos das suas terras dá a entender que isto pode ser mais uma questão política encoberta por motivos religiosos?

Neste momento há grandes interesses económicos no Médio Oriente. Mesmo o ISIS, que se afirma como um estado religioso, eu tenho dúvidas que eles tenham alguma coisa a ver com religião, segundo o que ouvi no terreno. Eles usam a religião para justificarem determinadas posições, mas o que está em causa são questões económicas e há um conflito pela tomada de posições chave de forma a ficarem com as riquezas deste país.

Mas é uma conquista por razões religiosas, ou que procura dominar zonas estratégias economicamente?

São zonas economicamente vantajosas, muito férteis, muito produtivas. Depois têm esta ideia por trás de fazer esta limpeza étnica, porque todas as pessoas que não correspondem aos padrões que eles acham que são os melhores estão em perigo. Há um genocídio que está a ser silenciado na Europa que não é apenas de cristãos, mas sim de todas as minorias, pois eu falei com muçulmanos xiitas que neste momento também estão em risco porque não fazem parte dos sunitas e estão em risco.

A solução para uma situação destas passa por uma intervenção militar?

Todas as pessoas com quem falei no Líbano e no Iraque diziam que a solução militar não irá resultar, e que apenas uma solução política pode resolver o problema. A Europa tem de parar de fazer comércio de armas, de enviar jovens para estes países, e sentar as várias partes para encontrar uma solução política para este conflito.

Mas existirá a mínima disponibilidade do ISIS em se sentar a uma mesa para conversar?

Não sabemos. Há muitos grupos no Iraque e na Síria a combater. O que as pessoas nos relatam é que as pessoas do Estado Islâmico não são pessoas de confiança, não se pode chegar a um acordo porque o que é agora válido daqui a um minuto não é. Mas é preciso encontrar uma solução política para todos. Em Tikrit temos visto que a solução militar implica perder vidas civis, e se for assim a solução, muitos mais civis irão morrer, e já basta todos os mortos.

Que testemunhos ouviu?

Ouvíamos sobretudo relatos da fuga em agosto passado. Foram testemunhos impressionantes de pessoas que fugiram desesperados. Nos deslocados de Mossul havia muita mágoa porque quem os roubou e quem os obrigou a deixar tudo foram os vizinhos com quem eles vivam e conviviam há 30 ou 40 anos. Havia uma mágoa muito grande por terem sido os vizinhos e amigos, que partilharam alegrias e tristezas ao longo de uma vida, a expulsá-los de lá. Esses foram os testemunhos mais dolorosos que ouvi.

A comunidade cristã é uma comunidade bem preparada, com estudos ao nível superior, com negócios, com vidas bem organizadas, e de repente perderam tudo por causa deste Estado Islâmico que, de um dia para o outro, chegou e diz que não pode haver ninguém para lá da sua religião. Pessoas muito sofridas com a vida, mas também dizendo que, passados estes oito meses, já tinham perdoado a quem lhes tinha feito isto, que sabiam que Deus não os abandonava, que Deus esteve com eles quando fugiram de Qaraqosh depois dos peshmerga terem abandonado as suas posições. Muitos cristãos fugiram com seus pertences em carros, mas depois foram obrigados a deixá-los nos checkpoints, pois os peshmerga receavam que pudessem ser membros do ISIS, e o pouco que levavam deixaram-no ali. Milhares de pessoas sem água nem comida a fazer 60 kms a pé, que chegaram aos locais onde estão hoje no limite da sua condição humana. Mas todas dizem que Deus as acompanhou, as salvou e as conduziu até este lugar em que estão hoje. Dizem que Deus dá o que precisamos, e que não precisam mais do que isso.

Essa fé pode ser um pilar importante na construção de um novo Iraque cristão no Curdistão?

As várias pessoas com quem falei diziam que, se os cristãos desaparecerem do Médio Oriente, esta zona deixará de ser o que sempre conhecemos. Os cristãos habitam-na há 2 mil anos, estiveram presentes e são uma comunidade muito importante para o desenvolvimento da região, pois têm acesso, tantos as mulheres como os homens, à educação, a grande maioria tem cursos superiores e pode ajudar no desenvolvimento do país, sabem perdoar e querem viver em país. São valores que fazem falta ao Médio Oriente, e é impossível pensar, e a comunidade internacional tem esse papel, que os cristãos irão desaparecer dali.

Têm chegado muitos relatos de destruição de património da Humanidade, nomeadamente cristão. Pôde confirmar esses relatos no terreno, assim como as suspeitas de vendas no mercado negro?

Houve igrejas e conventos que confirmámos que foram destruídos. Mas outros não se sabe bem. Sabemos que as cruzes foram retiradas, os cemitérios destruídos mas os edifícios nem sempre o são. São usados como prisões, quarteis de apoio às operações militares, etc. Depois há património mais pequeno, como livros e documentos que vêm desde o tempo de Jesus Cristo e que chegaram até hoje e que, felizmente, muito foi retirado a tempo pelos religiosos que lá estavam e que estão seguros. O contacto com aquela zona é muito complicado, pelo que na verdade não se sabe o que aconteceu a estas relíquias.

Muito desse património pode estar a ser usado para financiar o ISIS?

Sim, essa é uma das formas de financiamento. Quando o Estado Islâmico chegou a Mossul, todo o dinheiro que estava nos bancos ficou para ele, e havia muito dinheiro. Mas neste momento diz-se que este financiamento está a acabar, e por isso há muitos sequestros, muita venda de mulheres, crianças, como forma de angariar dinheiro para manter estas operações.

Fala-se que estas vendas de artigos de valor incalculável estão a acontecer, e alguém está a ficar com estes objetos e a beneficiar com estas compras.

Existe a noção no terreno de que o ISIS não é sustentável per si?

Sim, claramente, e vimos que há conflitos internos dentro do Estado Islâmico, porque os guerrilheiros que vêm da Europa estão a receber mais que os guerrilheiros que são daquela zona, e a Igreja acredita que, se a comunidade internacional conseguir estancar a venda de armamento, se parar a compra de petróleo ao Estado Islâmico – disseram-nos que o Estado Islâmico vende o petróleo a 3 dólares o barril – o financiamento será cortado e o Estado Islâmico vai autodestruir-se. É preciso parar com a hipocrisia de estarmos a vender armas e a fazer negócio ao mesmo tempo que, do outro lado, usamos mais armas para combater essas armas que venderam. É preciso parar com estes negócios e perceber que existem pessoas que estão a sofrer. O grande problema é as grandes potências olharem para o Médio Oriente como cifrão, como lucro, e não verem o desastre que está a acontecer, a destruição de património e de uma história milenar. O Patriarca Gregorius disse-nos que, se a paz for conseguida naquela zona, que também os nossos países na Europa gozarão dela. Nós estamos a perder a nossa liberdade e a nossa segurança por causa de todos estes movimentos radicais que começam a afetar a Europa também. Não se compreende como é que hoje temos pessoas a viver da forma que encontrámos no Iraque e no Líbano.

Se esses guerrilheiros estão a ser pagos para combater, também se esfuma a ideia da guerra santa, motivada pelo ardor religioso…

Ninguém sabe bem o que leva estes jovens a irem lutar, mas não vão apenas para defender uma causa, vão à procura de lucro e de uma forma diferente de fazerem coisas com adrenalina. Um bispo dizia-nos que a ida de todos estes jovens servia para nos mostrar como está a falhar a nossa educação e como a família está a falhar na Europa. O nosso sistema falhou com estes jovens, pois a maioria destes jovens vêm de famílias destruturadas, com problemas, e muitos são abandonados à sua sorte. O desemprego na Europa leva à desocupação, e por isso estes jovens acabam por descobrir aqui um rumo por falta de encontrarem outro na Europa. Estes jovens vão para lá a pensar no seu lucro.

Ricardo Perna

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