Aleteia logoAleteia logoAleteia
Sábado 20 Abril |
Aleteia logo
Estilo de vida
separateurCreated with Sketch.

Abraçando o impossível

Young happy woman in canola field on sunset. © IBushuev / Shutterstock – pt

young happy woman in canola field on sunset. © IBushuev / Shutterstock

Comunidade Shalom - publicado em 26/05/15

Deus pede a cada um o impossível que mais convém à sua alma

Se há algo de curioso nos pontos em comum dos vários chamamentos de Deus na Bíblia e na vida dos santos é, sem dúvida, o “abraço no impossível”. Parece fazer parte da pedagogia do Deus dos Impossíveis exigir daquele que Ele chama este abraço radical que levará a dois do fundamentos básicos para o “sim” à vontade de Deus: um esvaziamento total e radical de si mesmo e, ao mesmo tempo, a entrega e confiante à vontade de Deus.

Quem foram os grandes eleitos de Deus na Bíblia? Quais as características de personalidade? Como se deu com cada um, este tão imensamente difícil e libertador abraço no impossível”?

“Deixa!”

“Deixa!” Foi esta a primeira palavra que Deus disse a Abrão. Deixa! O que Deus pedia para o caldeu Abrão deixar? Basicamente a mesma coisa que Jesus pediria aos seus, séculos mais tarde: terra, família, a casa do pai. O Deus dos Impossíveis pedia a Abrão que deixasse tudo. Não teria mais pátria, nem a terra que ele conhecia tão bem e que o mantinha. Não teria mais o apoio seguro da presença da família, que provavelmente nunca mais veria, nem a tradição do clã, ao qual jamais voltaria. (Gn 12,1-4)

“Deixa”, diz Deus a Abrão. Em troca de quê? De promessas. Abrão calou-se e obedeceu. Séculos mais tarde, o intempestivo Pedro não se calaria: “Vê, nós abandonamos tudo e te seguimos”(Mt 19,27-29). O Deus dos Impossíveis lembra que é também o Deus das Promessas e responde com a mesma garantia dada a Abrão: a promessa do cêntuplo, com tribulações, e a vida eterna.

Abrão obedeceu. Resolveu abraçar o impossível. Sabia que ele e Sarai eram idosos e que ela era estéril. Sabia que devia obedecer não apenas por causa da promessa, mas, muito especialmente por causa daquele que o chamava. O autor do Gênesis reserva para o capítulo 15 o momento da pergunta de Abrão, cuja fé havia já sido provada no sofrimento da fome e da seca, na humilhação do Egito, na desfio da guerra. Mesmo sabendo que, aqui o Gênesis não segue uma cronologia, pode-se contemplar Abrão, provado pela tribulação, que argumenta: “Senhor Javé, o que me darei vós?” (Gn 15,2)

Você sabe a resposta. O Senhor dá a Abrão uma promessa impossível ao velho marido da estéril Sarai: “Levanta os olhos para os céus, e conta as estrelas, se és capaz… Pois bem, ajuntou ele, assim será a tua descendência (Gn 15,5). Abrão não mais argumentou: “confiou no Senhor e o Senhor lho imputou para justiça”(Gn 15,6). Na nossa linguagem, diríamos: “o Senhor viu nesta atitude de Abrão uma prova de confiança e santidade e fez com que este ato de fé se transformasse em graças em favor daquele que seria “pai de uma multidão”. (Gn 17,4)

A confiança de Abrão nos promessas de Deus levou-o a selar com Ele um pacto pela circuncisão da carne. A confiança do nosso intempestivo Pedro, levou-o a selar com Deus uma aliança nova e eterna, no sangue de Jesus Cristo.

A maior parte dos santos não se apoiou em outra promessa que não a promessa bíblica do cêntuplo e não foi guiada por outra motivação que não a do amor a Deus.

“Moisés, Moisés!”

“Moisés, Moisés!”. Com estas palavras, o Deus que costuma chamar Seus filhos pelo nome interpela Moisés. Séculos mais tarde, interpela da mesma maneira o grande Paulo: “Saulo, Saulo!” o que ordenou o “Eu Sou” a Moisés? Naturalmente, o impossível: “Vai, eu te envio ao Faraó para tirar do Egito os israelitas, meu povo” (Ex 3,10).

E ao altivo Saulo, homem intelectualizado, conhecedor das culturas helênica e judaica, cidadão romano a quem ninguém ousava enfrentar, o que ordenou aquele a quem Saulo perseguira e agora chamava “Senhor” (At 9,5) ? O que queria aquele Senhor que o valente Saulo, preparado para qualquer desafio, fizesse? Nada! Pelo menos, da sua auto-suficiência. Instruído minuciosamente pelo Senhor para levantar-se, entrar na cidade e esperar novas ordens, Saulo se vê cego e, portanto, impotente para cumprir a ordem que lhe fora dada. Deus, novamente, pede o impossível e Saulo, tomado pelo mão, é introduzido em Damasco, tendo passado três dias sem ver, sem comer nem beber, esperando, em tremendo desconforto, que fosse cumprida a promessa de que lhe “seria dito” o que deveria fazer (At 9,1-9)

“Quando o Espírito Santo Deseja Algo, Sempre Realiza” ( S. Cura D’ars)

Observando da ótica do Deus dos Impossíveis, poderíamos percorrer cada um dos grandes homens da Bíblia e perceber a presença do trinômio: “chamado – impossível – promessa”. O mesmo ocorreria se víssemos a vida dos santos. O “Reconstrói a minha Igreja” era tão impossível a Francisco que ele nem consegue atinar o seu significado e confunde Igreja com a igreja de S. Damião. No entanto, ainda que inocente sobre o plano total de Deus, Francisco, como Abrão, como Pedro, como Moisés e Paulo, deu cada pequeno passo de obediência e fé, e a graça de Deus caiu sobre a Igreja sob a forma do franciscanismo, renovando – a

A reforma da secular Ordem Carmelita não seria impossível a uma “formigazita”, a uma “mulherzita”, como Sta. Teresa de Jesus se intitula? Teresa não vislumbrou aonde conduziria a Sua obra.

Sentia, a realidade, a “despreocupação de tudo quanto não fosse servi-lo”(Fundações, Capítulo I). Deu, no entanto, o passo na fé que lhe pedia o Deus dos Impossíveis, confiada, inteiramente, na Sua graça e fidelidade.

A maior parte do santos não se apoiou em outro promessa que não na promessa bíblica do cêntuplo e não foi guiada por outra motivação que não a do amor a Deus. No entanto, permanece o trinômio “chamado – impossível – promessa” ao qual cada um responde como amor obediente a Deus e a fé confiante em Sua fidelidade.

Claro, tudo isso nada mais é que a correspondência à graça, ao Espírito que lhes trabalha na alma, pois, “quando o Espírito deseja algo, sempre o realiza”.

“Senhor, eu te dou tudo… E eu te peço tudo!”

Alguém no mundo jamais recebeu ou receberá chamado tão impossível como o de Maria? Alguém jamais terá ouvido promessa tão improvável? Alguém terá jamais respondido com tamanha fé e simplicidade?

“A Deus nenhuma coisa é impossível (Lc 1,37), afirma o Arcanjo Gabriel resumindo em uma frase a explicação da ação fiel da graça de Deus em milênios da história da Salvação. O Deus dos Impossíveis foi tecendo, ao longo dos “sim” dos homens. “sim” ora titubeantes e medrosos, ora corajosos, arrojados, impetuosos, mas sempre “sim”. Na verdade, Deus precisa apenas deste “Sim” inicial, porque, de resto, tudo é graça que o renova revitaliza e conduz para o centro da Sua vontade`.

“Fiat!”, disse Maria, na palavra que resume, ecoa e eleva a píncaros insondáveis todos os “fiat” de todos os tempos. Resume o “Pai, é difícil, mas eu creio, eu quero, eu vou”, porque Tu queres, eu quero. Resume ainda a entrega daqueles que têm a graça de unir a generosidade à humildade; a entrega ao abandono, em uma “humilde rendição a Deus”.

Deus, na verdade, pede a cada um o impossível que mais convém à sua alma. No entanto, em todos os “impossíveis” que pede, está sempre presente a exigência da entrega, da humildade, do abandono de si mesmo. O orgulho e a auto-suficiência consistem nos maiores empecilhos para que seja feita a vontade de Deus na vida de alguém. “Confiar em si mesmo não é somente conservar a consciência e a propriedade do próprio ser. É, ainda que inconscientemente, erigir-se como princípio último de seus próprios atos, afirmar, prática, sua independência, confrontando-a ao ser de Deus. A alma que confia em si não tem como estar perfeitamente submissa e nem, por conseguinte, pode amar”. Como abraçar o impossível se confia apenas em si mesmo, se considera como princípio último dos próprios atos a sua própria força e potência? Não foi à toa que Deus precisou deixar Paulo cego!

Deus, na verdade, pede a cada um o impossível que mais convém à sua alma

Consciente de sua inteira incapacidade e pobreza, Pe. Jacques Marin orou, no momento de sua entrega a Deus: “Senhor, eu te dou tudo… e eu te peço tudo”. É como se orasse: Eis aqui o meu “Seja feita”, mas vê bem, é voz passiva! Não sou eu quem farei, é tu quem farás em mim e por mim, para que vejam a Tua glória”. Quem pensa assim diz com Maria “realizou em mim maravilhas Aquele que é poderoso e cujo nome é Santo Sua Misericórdia se estende, de geração em geração sobre os que o temem. Manifestou o poder do seu braço”(Lc 1, 49ss). Quem tem esta convicção sincera da própria impotência diante do chamamento de Deus – e age e m coerência com Ela! – abraça o impossível.

Deus, Drama e Solução

“Deus, Drama e Solução” é o título do segundo capítulo do livro de Maximiliano Herraiz Garcia “Solo Dios Basta”.

Olhando nossos irmãos que durante toda a história da salvação e da Igreja abraçaram o impossível, reconhecemos a veracidade e adequação desta expressão. Deus foi o seu drama, diríamos, até, seu “problema”, mas foi também , sua única e felicíssima solução!

Abrão, Moisés, José, Samuel, Judite, Rute, Ester, Davi, Elias, Isaias, Oséias, certamente concordaram com esta afirmação. José, João Batista, Maria, Pedro, Felipe, André, Barnabé, João, Saulo, testemunham-na com suas vidas. Os santos a retratam; sua vida é Deus, está inseparável e intrinsecamente ligada à Vida d’Ele e n’Ele. Jeremias, porém, resume-a magistralmente:

“Seduziste-me, Senhor; e eu me deixei seduzir!

Dominaste-me e obtiveste triunfo.” (Jr 20,7)

Incompreendido, caluniado e perseguido por causa de Deus, Jeremias tem n’Ele o seu problema e a sua solução depois, quando a opção por Deus entra pelo caminho da aceitação humilde, do amor desinteressado, do abandono confiante e do despego efetivo, ainda que pobre nos começos, dos amores que haviam resistido ao Amor”.

A Solidão Necessária

Jeremias viu-se só e, na solidão e dor, optou fundamental e definitivamente por Deus. O mesmo fizera Davi no silêncio da caverna onde poderia ter optado por si mesmo e matado Saul. Davi e Jeremias partilham da solidão necessária para o “sim” fundamental e incondicional, crescente e irreversível, responsável e consciente a Deus. O abraço no impossível é, necessariamente, solitário. Seu itinerário é tão exigente e doloroso quanto mais agudas as arestas que o Oleiro precisar moldar.

Daí ser fundamental retirar-se para o “Horeb” e lá, em oração humilde e paciente, “afinar” cada vez mais os ouvidos da alma para poder perceber a vontade de Deus no “murmúrio da brisa ligeira”( I Rs 19) Sem a oração não conhecemos a Deus. Se não O conhecemos, não temos como confiar n’Ele. Moisés precisou ir “para além do deserto” de sua curta visão para encontrar a sarça. Oséias e João Batista foram levados ao deserto. Cada santo, cada um deles, contou com o auxílio da oração e, pela oração conheceu e encontrou a Deus e a Sua vontade. Na oração, encontramos resposta e força para, na solidão do encontro frente a frente com Deus, abraçarem o impossível.

Não há como não evocar aqui José, que encontra, na solidão mais absoluta, a resposta e orientação de Deus:“Filho de Davi, não temas… Maria concebeu do Espírito Santo… é a Virgem de Israel que dará à luz o Messias, filho de Deus”(cf Mt 1,20ss). José, repentinamente arrebatado a um deserto de angústia, dúvida e solidão, encontra a resposta no seu Deus, a quem certamente invocara embora, por sua decisão humana, houvesse resolvido “rejeitar Maria secretamente”. A resposta de Deus àquele homem justo superou em amor sua generosidade lícita de poupar Maria. Deus sempre dá uma resposta mais adequada ao amor àquele que, na solidão, O escuta.

O Abraço no Caminho Mais Excelente

Pelos séculos afora, Deus tem sido o problema e a solução de todo aquele que O ama. A estes homens e mulheres chamados a amá-lo acima de tudo, Deus propõe o abraço do impossível. A eles oferece uma promessa, na qual devem confiar por causa de Quem a faz. Seduzidos pelo Amor, confiam naquele que os ama e obedecemos. Nem têm mais diante de si a promessa, mas somente o desejo de amar mais e melhor.

O Espírito, que sempre realiza o que deseja, leva-os a mar cada vez mais a Deus e ter na vivência deste amor seu principal problema e sua principal solução.

E quem a Deus ama, ensina Jesus, prova este amor pela obediência à Sua vontade (cf Jo 14,21-24). A estes amantes obedientes Deus dá o Espírito Santo porque obedecem (cf. At 5,32). O Espírito, que sempre realiza o que deseja leva-os a amar cada vez mais a Deus e ter na vivência deste amor seu principal problema e sua principal solução. Impulsionados a amar a Deus, íntimos dele na solidão da oração, entendem profundamente o “Amai-vos como eu vos amo”(Jo 15,12). Entendem-no porque o experimentem, sabem como é que Deus ama, conhecem na própria vida a maneira dele amar. Podem, assim, cumprirs, nas diversas formas de chamamento, o único carisma comum a todas as vocações e abraçam, impotentes, humildes e generosos, o impossível de amar a Deus e ao homem como são amados pelo fiel Deus dos Impossíveis. Deixam, assim seus passos de luz no caminho que abraçaram, o “mais excelente de todos”.

Possa o Fiel Deus dos impossíveis tomar-nos, como a eles, seduzir-nos, colher nosso “sim”e ser nosso problema – diante do qual nos rendemos – dando tudo – e nossa solução – quando, dependendo inteiramente dele, pedimos tudo.

Tags:
Confiança
Top 10
Ver mais
Boletim
Receba Aleteia todo dia