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Maranhão, 2015: governo ausente, mineração, Bolsa-Família e… pedofilia liberada

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Aleteia Brasil - publicado em 01/02/16

Enquanto Brasília defende seus bolsos, as terras de ninguém se defendem como podem - afinal, quem se importa?

Tem surgido na internet uma grande variedade de canais do chamado “jornalismo alternativo”, aquele que procura se distanciar da “grande mídia” para produzir reportagens independentes. Em uma dessas novas plataformas, a Brio, encontramos a reportagem “As novinhas e os visitadores“, do repórter Aiuri Rebello, que passou uma semana convivendo com operários da Estrada de Ferro Carajás no interior do Maranhão, sem se identificar como jornalista. O tema da matéria é a espantosa “naturalidade” com que a exploração sexual de menores é praticada nos rincões do Brasil, sem que sequer as vítimas se vejam como vítimas: a cultura do sexo precoce como diversão em si mesmo ou como moeda de troca parece não causar estranheza alguma, nem aos jovens, nem às famílias, nem às autoridades.

ATENÇÃO: A reportagem traz descrições cruas e, em alguns trechos, mantém o linguajar chulo do contexto que procura denunciar. Também é ilustrada por algumas imagens provocantes. A gravidade do seu conteúdo, no entanto, a torna bastante relevante para um debate católico adulto sobre os rumos que uma cultura sem valores sólidos vem impondo à nossa juventude já desnorteada. Consideramos que, como cristãos, não podemos ignorar essas realidades que clamam por reação.

Os seguintes trechos são transcritos da matéria de Aiuri Rebello:

Um cenário ignorado pelas promessas de prosperidade de governo após governo

“Calor, poeira, pernilongos e urubus não perdoam ninguém no km 240 da obra de duplicação da Estrada de Ferro Carajás, no interior perdido do Maranhão. A impressão é de que se está no lugar mais remoto do Brasil (…) Os 33 graus desse fim de tarde primaveril coroam o inferno privê vivido pelos 1.140 trabalhadores de empreiteiras contratadas pela gigante mineradora Vale, todos eles escondidos debaixo de macacões vermelho-operário de tecido pesado e grosso (…), todo fechado dos pés ao pescoço e com faixas reflexivas nas mangas, tronco e pernas. Conforme desembarcam, os homens — só há homens — seguem para o depósito para largar equipamentos, como cintas com ferramentas, rádios, botas e luvas pesadas de construção. Alguns lavam o rosto e as mãos sobre o cascalho na soleira da entrada do complexo com galões de água. Muitos fumam. São de todas as idades. Há jovens de 20 e mais velhos, de 40, 50 anos de idade. A desolação nos arredores de Tufilândia é quase total e nenhuma operadora de telefonia celular, fora a Oi, funciona desde a saída de Santa Inês, lá atrás. O cenário de terra de ninguém é reforçado por montes de carcaças de gado, cavalos, burros, jumentos e outros animais grandes que apodrecem nos acostamentos e matagais próximos à pista, atraindo nuvens de urubus (…) No centrinho de Tufilândia, é possível encontrar em meio a escombros uma placa do governo federal que anuncia a construção de uma quadra escolar coberta e com vestiário, em convênio com a prefeitura. No valor de R$ 509 mil, a obra terminaria em maio de 2014. No fim de 2015, o que existe no local é só entulho e a placa”.

Um “malandro brasileiro”, admirado e popular em seus “valores” tortos – que incluem o crime de pedofilia

“Gambiarra saiu de casa em Ananindeua, na região metropolitana de Belém, no Pará, quando tinha 16 anos. Se jogou no mundo atrás de mulher e aventura. Largou a escola, deu tchau para a mãe e caiu no mundo. O pai já era morto. Arrumou emprego como servente de pedreiro em Belém e, por um tempo, as coisas foram bem. Um dia o vício em crack da namorada, que era um ano mais velha, tinha 17 anos, acabou de forma trágica. Ela foi assassinada. Gambiarra não gosta dessa lembrança e muda de assunto sem explicar direito o que aconteceu. Depois disso, continuou viajando e trabalhando pelo país. A maior parte do tempo no Pará, Amazonas, Mato Grosso e Maranhão. Nunca mais voltou a viver em casa. Gambiarra vai para uma das mesas de plástico com um pequeno balde de gelo e uma surpreendente garrafa de uísque 12 anos Old Parr na mão, quadradinha e marrom, que parece deslocada ali naquele ambiente e calor. Gambiarra mostra uma lista de conversas com garotas no WhatsApp. — Tá vendo? Essa, essa, essa, essa… — desfila ele uma lista de pelo menos oito ou nove meninas enquanto cita o nome e a idade de cada uma. A mais velha tem 16 anos”.

As “novinhas” e uma “cultura” generalizada de pedofilia

“Mesmo vestida com um shortinho jeans com zíperes nas laterais das coxas e uma blusa com estampa de flores transparente dando para ver o sutiã preto por baixo, seus movimentos demonstram insegurança. Os olhos claros e grandes são curiosos e parecem espiar a tudo, assustados. Das três, parece ser a mais nova, mas foi a que perdeu a virgindade primeiro. Aos 12 anos. — Essa aí descobriu o que é bom primeiro, com 12 — contaria Michelly com sua voz grossa e forte, sempre em tom de deboche, algumas noites depois. De acordo com ela, um dos primos, mais velho, claro, pegou Luyza ‘de jeito’ no fundo do quintal num dia em que estavam sozinhos em casa. A menina, personagem da história como se não estivesse ali, ria meio constrangida e olhando para os lados. Ela mesma, Michelly, foi ‘descobrir o que era bom’ aos 14, ‘véia já’, na própria opinião”.

“Pergunto ao dono do quiosque onde estão as mulheres mais velhas — só parece haver adolescentes de ambos os sexos e homens de várias idades, inclusive menores, com poucas mulheres adultas. — As mais velhas tão tudo em casa com um monte de filho vendo TV — responde de bate-pronto. — Aqui, é só novinha que tem para pegar — afirma categórico e orgulhoso enquanto trabalha. Ele está sozinho essa noite. Puxa garrafas de cerveja do freezer, vai buscar gelo, pega dinheiro e dá o troco. — Tem de 15, 16, 17, 14… Aqui, em Tufilândia, não tem esse negócio de menor de idade, não. Mesmo porque com 18, 20, as meninas já tão tudo é acabada, barriguda, com filho… Então, tem que aproveitar enquanto elas é novinha mesmo. Não tem problema, sempre foi assim aqui e ninguém acha ruim, não. As novinha aqui tudo começa cedo, engravida cedo e envelhece cedo. Fica tudo gorda e acabada antes dos 25. A hora delas aproveitar e nóis aproveitar elas é agora”.

“Um jovem aparentando uns 12 anos de idade, mas que deve ser um pouco mais velho, desce de uma scooter e cambaleia até o balcão. Ele pede uma vodka, e o atendente volta com um copo de plástico branco daqueles compridos e o enche com uma garrafa da marca Natasha. O menino paga com duas notas de R$ 2, pega o copo e, sem gelo, começa a matar a dose a goladas”.

Ideais de vida? Valores? Responsabilidade? Comprometimento?

“A animação e o som aumentam. Aos poucos, mais gente chega e estaciona motos e carros nos fundos da praia. Várias caminhonetes brancas iguais às das empresas que atuam na região — mas sem os adesivos de identificação nas portas — estão por ali. ‘O pessoal tira os adesivos na hora de ir pra farra, pra não dar problema depois com os patrão’ — explica Gambiarra”.

“Você sabe o que é ficar três anos desempregada, moço? — pergunta, de maneira retórica, uma jovem gorda de 24 anos em meio a uma conversa em um dia na praia. — Eu levei currículo para todas essas empresas aí. Eu sou formada como auxiliar de enfermagem, mas topava fazer qualquer coisa, até faxina de banheiro químico, e não rolou nada até agora”.

“— Não tem vez para este pessoal mal qualificado e sem experiência. Os trabalhadores do local acabam sempre pegando mesmo as vagas que sobraram, que não deu para preencher com o povo de fora — diz o operário. Ele reclama que muita gente ali também conseguiu um emprego, ficou de três a seis meses e se demitiu. Segundo ele, só queriam ficar na obra o tempo mínimo para poder receber algumas parcelas do seguro-desemprego (isso antes das medidas de restrição ao benefício promovidas pelo governo federal este ano). O operário conta que isso sempre acontece nas frentes de serviço. ‘Muita gente não está afim de trabalhar, não'”.

A presença do Estado se reduz ao Bolsa-Família? Até quando?

Governo Federal – “Não existem números oficiais de desemprego em Tufilândia, mas, de acordo com o Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome, em outubro de 2015, havia 1.565 famílias da cidade inscritas no cadastro do programa social de transferência de renda Bolsa-Família. Se for feito um cálculo subestimado de que cada família tem, em média, três pessoas, chegamos à conclusão de que pelo menos 4.695 dos quase 6 mil habitantes de Tufilândia são considerados oficialmente pobres ou de baixa renda, e recebem ajuda do governo federal. Daquelas famílias, 1.167 possuem renda mensal per capita de até R$ 77. A média do auxílio mensal do governo por família é de R$ 261,66”.

Prefeitura – “Na prefeitura, é difícil encontrar o prefeito (…) Diz-se pela cidade que o médico Raimundo Neto, do PSB, vive em São Luís. Quando está na região, passaria a maior parte do tempo em Santa Inês e em sua fazenda, próxima dali. O oficial de Justiça do Ministério Público do Maranhão encarregado de intimá-lo não consegue cumprir as ordens judiciais desde agosto”.

Conselho Tutelar – “O Conselho Tutelar estava, até o início de outubro, sem eleições desde 2003. Funciona em uma pequena sala na prefeitura. O órgão não tem carro, orçamento ou qualquer outra estrutura, e os conselheiros admitem que é difícil conseguir fazer alguma coisa”.

Delegacia de Polícia – “Fica a quase 100 quilômetros de distância, em Pindaré-Mirim, município de 32 mil habitantes de onde Tufilândia foi emancipada em 1994 após um plebiscito e referendo popular”.

Polícia Militar – “O clichê ‘terra sem lei’ é perfeito para a cidadezinha. Além dos dois policiais militares que patrulham o município apenas com a ajuda de duas motocicletas de 50 cilindradas e que raramente são vistos pelas ruas, não há mais nada. A pequena base da PM está sempre de portões fechados, luz apagada e parece abandonada. Não há delegacia e não é incomum encontrar pessoas armadas com facas e facões, revólveres e até pequenas espingardas, como a Winchester calibre 22, usada para caçar tatus, aves ou qualquer coisa que se mexa nas matas locais”.

Justiça – “A situação é ainda pior. A Comarca responsável, também em Pindaré-Mirim, ficou sem juiz e promotor por um ano e meio, até meados do primeiro semestre de 2015. Quando estive lá em setembro, fui informado de que a juíza titular Ivna Cristina de Mello Freire, que teria assumido em junho, estava de licença, desde agosto, até o dia 15 de outubro. Como ela é a responsável por todos os processos no fórum — civil, criminal, trabalhista e os da Vara da Infância e Juventude — , continua tudo parado. A assessora jurídica dela e o secretário geral do local também não foram encontrados trabalhando nas duas vezes que passei lá”.

Ministério Público – “Prédio novinho, distante algumas quadras do fórum. O ritmo é parecido. O promotor, Cláudio Borges, assumiu em fevereiro, e dizem por ali que raramente é visto na cidade. Na semana em que estivemos lá, estava viajando para os lados de São Luís e voltaria só no final de semana para acompanhar a eleição unificada do Conselho Tutelar, que aconteceu em todo o Brasil no dia 4 de outubro”.

Secretaria de Assistência Social – a assistente social Neliane de Araújo denuncia que a situação “piorou muito com a chegada das construtoras e de seus exércitos de peões. ‘Não tenho números, mas temos notícias de meninas de 14, 15 anos que contraíram Aids. Tem uma menina de 12 anos que engravidou recentemente de um homem bem mais velho que foi embora (…) Se a Vale ou qualquer outra das empresas desenvolve um trabalho social, é algo incipiente (…) Acho que fica mesmo essa questão da corrida pelo ouro, do lucro pelo lucro (…) O que fica aqui é um rastro muito negativo. Se for pegar, pesar, medir e conferir, acho que o impacto negativo que essas obras deixam pelo caminho é muito maior do que o impacto positivo. Depois que elas vão embora, vai surgir uma demanda muito forte para as políticas públicas atenderem, porque deixa um rastro: gravidez precoce, doenças sexualmente transmissíveis, famílias desfeitas, e por aí vai”.

A versão das empresas, segundo o jornalista

“A mineradora [Vale] afirma que repudia a exploração sexual de crianças e adolescentes. ‘A empresa é signatária do Pacto de Enfrentamento à Violência contra a Criança e Adolescente’ (…) A Vale afirma ainda que promove o Programa de Educação Sexual e Promoção da Saúde (…) e diz que Tufilândia recebeu as palestras e oficinas entre agosto e dezembro de 2014. Aconteceram cinco reuniões com a participação de 61 pessoas. O resultado dos trabalhos foi uma caminhada e uma gincana de conscientização contra a exploração sexual de crianças e adolescentes na cidade, realizadas no começo de 2015”.

“Procuradas para comentar o problema, as empresas Camargo Côrrea e ECB não responderam”.

“Não obtive contato com os responsáveis pela Lucena Infraestrutura e Marka”.

Leia a matéria completa no site Brio.

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