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“Mistério” da Cultura: muita fama, muito dinheiro, pouca ética e católicos passivos

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Aleteia Brasil - publicado em 18/02/16
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Como um católico deve reagir diante de certas “normalidades” do mundo dos “famosos” e da politicagem ideológica travestida de “cultura”? A Lei Rouanet é considerada o “principal mecanismo de financiamento e incentivo à cultura” no Brasil. Seu nome vem de Sérgio Paulo Rouanet, secretário da Cultura no governo Collor: foi sob sua gestão que a lei foi criada para permitir que empresas públicas e privadas, bem como pessoas físicas, pudessem patrocinar projetos culturais destinando a eles uma parte do valor que teriam de pagar em imposto de renda.

Cada projeto, no entanto, tem de ser aprovado pelo Ministério da Cultura (MinC).

E é aí que as coisas desandam.

Não são raras as aprovações de valores astronômicos para projetos de valor cultural bastante questionável ou para produções de grande porte que não precisariam de verba pública. De fato, no primeiro governo Dilma, 3% das propostas levaram 50% dos incentivos, piorando o cenário de concentração de incentivos financeiros no país e pouco dando apoio aos projetos realmente necessitados de incentivo.

Além disso, uma notável carga ideológica parece pesar nas decisões do Ministério da Cultura. Por exemplo, em 2014, o ministério não aprovou um documentário sobre o ex-governador paulista Mário Covas alegando ser ano eleitoral. Fez muito bem. Mas em 2006, também ano eleitoral, tinha aprovado não apenas um, e sim dois projetos sobre Leonel Brizola – e os dois projetos conseguiram verba milionária não de empresas privadas, mas de empresas estatais. Coerência não entra no conceito de “cultura”?

No começo deste mês, o Tribunal de Contas da União decidiu finalmente agir e proibir que recursos incentivados pela Lei Rouanet fossem destinados a projetos culturais com “potencial lucrativo“. A decisão também pretende acabar com o financiamento de projetos que podem se bancar sozinhos, mas preferem apelar para a eterna mamata do dinheiro público.

O gesto de despertar do Tribunal de Contas, no entanto, não chegou a tempo de impedir que a popular artista Claudia Leitte fosse autorizada pelo Ministério da Cultura a captar R$ 356 mil a fim de… publicar a sua biografia: ela, que é uma das “artistas do axé” mais famosas do país, pediu dinheiro público para imprimir 2.000 exemplares de um livro que conteria uma “entrevista exclusiva”, fotografias, letras e partituras. Segundo a empresa Ciel Empreendimentos Artísticos (que pertence a ela e que tinha pedido não “apenas” R$ 356 mil, mas sim R$ 540 mil), o livro teria “impacto cultural positivo” e seria “distribuído gratuitamente” (embora o próprio projeto também informasse que 900 exemplares, ou quase a metade do total, seriam destinados a patrocinadores, imprensa e bibliotecas).

Diante da repercussão negativa da notícia, a empresa da cantora disse que “repudia notícias maldosas que sugerem que Claudia Leitte se beneficia de incentivos fiscais e informa ainda que [o projeto] já estava abortado e será arquivado no MinC“.

É mais um caso para os anais.

Mas há casos piores:

“O Vilão da República” – em 2013, o MinC aprovou R$ 1.526.536,35 para o documentário “O Vilão da República”, filme sobre a vida de José Dirceu desde a sua participação em movimentos guerrilheiros até a sua condenação a 10 anos e 10 meses de cadeia por corrupção, em 2012. Mesmo aprovado pelo ministério, o projeto não conseguiu apoio de empresa nenhuma e ficou no papel.

DVD (pago) de show de funk (pago) – em 2015, o MinC aprovou R$ 516.550,00 para a produção de um DVD a ser gravado durante um show do funkeiro MC Guimê na cidade de São Paulo. Alguns dados muito interessantes: segundo estimativas, o funkeiro que apelou para os cofres públicos fatura R$ 300 mil por mês; no show, 40% dos ingressos seriam distribuídos gratuitamente, mas outros 40% seriam vendidos a R$ 50 e o restante 20% seria dividido entre patrocinadores e “população de baixa renda”; dos 3 mil DVDs, 80% seriam vendidos a R$ 29. É dinheiro público, em resumo, doado para que um artista aufira lucros.

Blog de Maria Bethânia – em 2011, o MinC aprovou nada menos que R$ 1.356.858,00 para a criação de… um blog. Possivelmente o blog mais caro do mundo, ele teria o título de “O Mundo Precisa de Poesia” e, durante um ano, ofereceria diariamente um novo poema lido em vídeo por Maria Bethânia. A indignação pública fez a cantora desistir do projeto – o que nos impediu de ficar sabendo como é que um blog conseguiria custar um milhão e trezentos mil reais de dinheiro público para apresentar 365 poemas “necessários ao mundo”.

Turnê milionária de Luan Santana – em 2014, o MinC aprovou a bagatela de R$ 4.143.325,00 para uma turnê do cantor Luan Santana por diversas cidades do país. Ao cuspir na própria natureza da Lei Rouanet, criada para auxiliar artistas menores e com pouca visibilidade, o “mistério” da Cultura alegou, em defesa própria, que tinha aprovado o apelo de mais um artista rico aos cofres públicos a fim de “democratizar a cultura” e “difundir raiz sertaneja pela música romântica”. Não dispomos da tradução dessa frase, infelizmente.

Turnê de… Claudia Leitte – em 2013, o MinC aprovou R$ 5.883.100,00 para realizar 12 shows da cantora de axé. Diante da grita popular, o ministério resolver contradizer seus próprios critérios (sejam lá quais forem) e reduzir a verba aprovada para “apenas” 1,2 milhão. O escândalo foi além: segundo o jornal O Dia, a produtora Ciel (pertencente a Claudia Leitte) tinha na época uma série de dívidas e teria montado um esquema com diferentes CNPJs para conseguir a aprovação do MinC.

Concertos de 25 milhões de reais de um artista que sequer sabia do pedido – em 2013, o MinC aprovou R$ 25.319.712,98 para dois projetos envolvendo o maestro João Carlos Martins… que não os tinha solicitado nem sabia dos projetos. Investigações mostraram que a empresa solicitante, a Rannavi Projeto e Marketing Cultural, tinha feito o pedido sem o consentimento do maestro. A empresa sequer tinha apresentado documentação que comprovasse a sua relação com os projetos do maestro. Nada disso, porém, impediu o “mistério” da Cultura de aprová-los gostosamente. O maestro solicitou que o projeto apresentado e aprovado sem o seu consentimento fosse cancelado.

“Painel artístico” em… um clube da elite paulistana – em 2013, o MinC aprovou R$ 5.714.399,96 para “um painel artístico de difusão cultural nos segmentos da música, dança e artes cênicas” dentro do Club A, em São Paulo – tido por local de “alta sociedade”, com Amaury Jr. entre seus ex-sócios. O clube faria uma lista com pessoas selecionadas para participar do evento de inauguração do painel. O caríssimo projeto, de caráter privado, recebeu a aprovação do “mistério” da Cultura na categoria “Música Popular”.

Aleteia pergunta aos católicos brasileiros: será mesmo que isso não tem nada a ver conosco?

Ao declarar que devemos “dar ao césar o que é do césar e a Deus o que é de Deus“, será que Jesus nos pediu ficar indiferentes às “coisas do dinheiro” – mesmo quando se trata do “nosso” dinheiro?

Ou será que Ele estava deixando claro que, além de dar a Deus o que é de Deus, também devemos cumprir o dever cívico de pagar corretamente os impostos – o que implica, por coerência, exigir que os impostos sejam empregados também corretamente e com a justiça necessária para se dar a Deus o que é de Deus?

Se há desmandos nas salas do tesouro, não será em grande medida porque nós, chamados por Cristo a “dar a Deus o que é de Deus e ao césar o que é do césar”, não estamos cumprindo a nossa obrigação moral de entender que “dar a Deus o que é de Deus” também significa garantir que o povo de Deus receba o que lhe pertence por justiça?