"Deves ter notado que um dia te levantas triste e abatido e, no dia seguinte, tão alegre que terias vontade de dançar"
Três coisas têm grande influência sobre a vontade: o sentimento, a imaginação e o temperamento.
Não somos totalmente senhores deles; o “livre arbítrio” do homem não é, pois, completo em nós. Tu mesmo deves ter notado que um dia te levantas triste e abatido e, no dia seguinte, estás tão alegre que terias vontade de dançar; e não sabes dizer a razão do abatimento de ontem nem da alegria de hoje.
O mesmo ocorre com a imaginação. De repente, e sem causa alguma, as recordações de um acontecimento passado emergem na tua memória, ou então, sob os vincos da tua fronte, ideias absurdas e imagens enganadoras se desenham. De onde elas vêm? Por que se apresentam naquele minuto preciso? Não saberias dizê-lo (…) E é frequente que a nossa imaginação assim nos jogueteie, é comum que nos mostre dificuldades imensas e obstáculos insuperáveis no caminho dos nossos trabalhos para nos desanimar deles. Se tens um dente para mandar extrair ou tratar, não é o trabalho do dentista que é o mais doloroso; é a meia hora que passas na sala de espera, deixando livre campo à tua imaginação, que te mostra, com atroz exagero, o sofrimento que te aguarda.
Pois bem, meu filho, embora não sejamos totalmente senhores dos nossos sentimentos e da nossa imaginação, precisamos tentar estender o reino da nossa vontade até a atividade deles; precisamos velar sobre os sentimentos e tomar as rédeas à imaginação. Acordaste de mau humor? Não importa! Trata de sorrir e de cantar: já estarás vitorioso – em parte, ao menos.
Tens que fazer um trabalho de álgebra. Tua imaginação o pinta com imagens assustadoras: “Esse problema é tão difícil que vais suar frio”. Pois bem, contradize-a! Responde-lhe:
“Não é verdade! És uma mentirosa, minha querida imaginação! A solução não é tão terrível assim; tu aumentas as dificuldades para que pareçam maiores do que são. Pois eu as afronto!”.
Como vês, a educação da vontade é um trabalho pertinaz, no intuito de sujeitar todas as faculdades intelectuais que nela influem, tais como a inteligência, o sentimento, a memória, a imaginação etc. Não basta, portanto, exercitar e fortalecer a vontade; é preciso, sobretudo, esforço para colocá-la, tão completamente quanto possível, a serviço dos fins espirituais mais elevados, isto é, pô-la sem reserva sob o império da alma.
Aquele que deseja um caráter firme deve exercitar-se em governar seus sentimentos com o máximo da sua capacidade. A causa de muitos pecados, dureza, pensamentos de inveja e maldade, ofensas irrefletidas, brigas – estas principalmente – não está numa vontade má, e sim numa vontade fraca, que ainda não sabe erguer-se diante dos sentimentos que surgem de repente. Não é preciso fazer esforços extraordinários para vencer um pequeno mau humor, por exemplo; contudo, quantos preferem sofrê-lo, demasiado preguiçosos que são, a se entregarem a este pequeno trabalho!
O exercício dos sentimentos é, pois, ao mesmo tempo exercício da vontade. A influência do sentimento sobre a vontade não consiste só em aliciá-la à ação; faz-se notar até sobre o seu exercício e sobre a sua perseverança. Quem, pois, ousará negar que um benefício brota, cem vezes mais, do calor do coração do que do frio lume da razão? E um motivo a mais, ainda, para educar os sentimentos, é que a vontade, obrando sem o coração, poderia facilmente transformar-se numa máquina de querer, insensível, egoísta e teimosa; o que não faria de ti mais que uma vil caricatura do jovem de caráter impecável que queres ser.
O homem de reflexão esforça-se não só para vencer seus sentimentos tristes e substituí-los por outros mais alegres, mas também para conservar sempre a paz de sua alma.
O corpo e a alma estão estreitamente unidos em nós (…) Quando te sentires desanimado, quando vires a tristeza invadir-te a alma sem que saibas o porquê, tenta pôr um sorriso nos lábios, esfrega jovialmente as mãos e verás que a tristeza desaparecerá. Quando sofreres uma dor física, ocupa a tua mente com pensamentos alegres e esquecerás, ao menos em parte, os sofrimentos.
Mesmo que uma desventura te sobrevenha, procura tirar dela proveito espiritual. “Deficiendo discamus” – aproveitemos até mesmo as nossas faltas para aprender. Roubaram-te a carteira no ônibus? Não te encolerizes, mas reflete: como pudeste estar tao distraído que não o notaste, e que precauções tomarás no futuro para que isso não mais te aconteça? Alguém te pisou o pé? Não deixes escapar a reação furiosa que te queima os lábios, mas diz baixinho: “Esta dorzinha vale-me ao menos um pouco de domínio de mim mesmo”.
Queres, pois, ser um rei onipotente? Domina-te a ti mesmo, virilmente.
Senhorear sempre os próprios sentimentos e nunca se deixar arrastar por eles é alto grau de perfeição espiritual.
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Excerto do livro “O moço de caráter”