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Amoris laetitia, uma nova “constituição” para as famílias

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Andrea Tornielli - publicado em 11/04/16

Divorciados recasados: integração e discernimento caso por caso

As dificuldades, os desafios, mas também toda a contribuição positiva do amor conjugal. A exortação pós-sinodal do Papa Francisco é a “carta” para as próximas décadas. Desde a importância da sexualidade (“um maravilhoso presente de Deus”) até dois capítulos com conselhos para que os esposos se amem. A família é “um bem do qual a sociedade não pode prescindir”. A importância da educação dos filhos.

Nove capítulos em um documento de 268 páginas, longo e complexo: Amoris laetitia, a alegria do amor, é a exortação com que o Papa Francisco encerra o percurso de dois Sínodos dedicados à família. O primeiro capítulo oferece um marco de citações bíblicas, o segundo traça uma visão sobre a situação, o terceiro fala sobre a vocação da família. Dois capítulos, o quarto e o quinto, são dedicados especificamente ao tema do amor conjugal. O sexto fala das perspectivas pastorais e o sétimo sobre a educação dos filhos. Ao contrário, o oitavo, que será seguramente o mais discutido, contém as indicações para a integração dos divorciados recasados.

O amor, símbolo das realidades íntimas de Deus

No primeiro capítulo, o Papa recorda que “a Bíblia aparece cheia de famílias, gerações, histórias de amor e de crises familiares”. O “casal que ama e gera a vida é a verdadeira ‘escultura’ viva (não a de pedra ou de ouro, que o Decálogo proíbe), capaz de manifestar Deus criador e salvador. Por isso, o amor fecundo chega a ser o símbolo das realidades íntimas de Deus”.

Individualismo e diminuição demográfica

No segundo capítulo, enfrenta-se o tema dos “desafios” das famílias. Existe o perigo “representado pelo individualismo exagerado” que faz prevalecer, “em certos casos, a ideia de um sujeito que se constrói segundo seus próprios desejos assumidos com caráter absoluto”. Francisco chama a atenção para a queda demográfica, devido “a uma mentalidade antinatalista e promovida pelas políticas mundiais de saúde reprodutiva”, e recorda que “a Igreja rejeita com todas as suas forças as intervenções coercitivas do Estado em favor da anticoncepção, da esterilização e inclusive do aborto”. Todas medidas “inaceitáveis até mesmo em lugares com alta taxa de natalidade”, mas animadas pelos políticos inclusive nos países onde nascem poucas crianças.

A casa

Francisco escreve que “a falta de uma moradia digna ou adequada leva muitas vezes a adiar a formalização de uma relação”. Uma “família e uma casa são duas realidades que se reclamam mutuamente”. Por este motivo, “devemos insistir nos direitos da família, e não apenas nos direitos individuais. A família é um bem de que a sociedade não pode prescindir, mas precisa ser protegida”.

Exploração infantil

A exploração sexual de meninos e meninas constitui “uma das realidades mais escandalosas e perversas da sociedade atual”. Há meninos “de rua” nas sociedades que sofrem violência, guerra ou onde há a presença do crime organizado. “O abuso sexual de crianças torna-se ainda mais escandaloso – denuncia Francisco – quando ocorre nos lugares onde devem ser protegidas, particularmente nas famílias e nas escolas e nas comunidades e instituições cristãs”.

Miséria, eutanásia e outras pragas

Entre as “graves ameaças” para as famílias em todo o mundo, o Papa cita a eutanásia e o suicídio assistido. E depois reflete sobre a situação das “famílias caídas na miséria, castigadas de tantas maneiras, onde as limitações da vida se fazem sentir de forma lancinante”. Também se refere à “praga” da toxicodependência, “que faz sofrer muitas famílias e, não raro, acaba por destruí-las. Algo semelhante acontece com o alcoolismo, os jogos de azar e outras dependências”.

Não enfraquecer a família

Enfraquecer a família não “favorece a sociedade”, mas “prejudica o amadurecimento das pessoas, o cultivo dos valores comunitários e o desenvolvimento ético das cidades e das aldeias”. Francisco indica que “já não se adverte claramente que só a união exclusiva e indissolúvel entre um homem e uma mulher realiza uma função social plena”. Ao passo que, “as uniões de fato ou entre pessoas do mesmo sexo, por exemplo, não podem ser simplisticamente equiparadas ao matrimônio. Nenhuma união precária ou fechada à transmissão da vida garante o futuro da sociedade”.

Aluguel de úteros, infibulação, violência

No parágrafo 54, o Papa fala sobre os direitos das mulheres e indica que é inaceitável “a violência vergonhosa que, às vezes, se exerce sobre as mulheres, os maus-tratos familiares e várias formas de escravidão, que não constituem um sinal de força masculina, mas uma covarde degradação”. A “violência verbal, física e sexual, perpetrada contra as mulheres em alguns casais, contradiz a própria natureza da união conjugal”.

Francisco também se refere à infibulação, a “grave mutilação genital da mulher em algumas culturas, mas também à desigualdade de acesso a postos de trabalho dignos e aos lugares onde as decisões são tomadas”. E recorda a prática do “aluguel de ventres ou a instrumentalização e mercantilização do corpo feminino na atual cultura midiática”.

O pensamento único da ideologia “gender”

Algumas linhas do documento são dedicadas ao “gender”, ideologia que “nega a diferença e a reciprocidade natural de homem e mulher”, apresenta “uma sociedade sem diferenças de sexo e esvazia a base antropológica da família. Esta ideologia leva a projetos educativos e diretrizes legislativas que promovem uma identidade pessoal e uma intimidade afetiva radicalmente desvinculadas da diversidade biológica entre homem e mulher”. Francisco diz que “preocupa o fato de algumas ideologias deste tipo, que pretendem dar resposta a certas aspirações por vezes compreensíveis, procurarem impor-se como pensamento único que determina até mesmo a educação das crianças”.

Não à “fábrica” de crianças

Também se expressa preocupação com a “possibilidade de manipular o ato procriativo”, independentemente da “relação sexual entre homem e mulher. Assim, a vida humana bem como a paternidade e a maternidade tornaram-se realidades componíveis e decomponíveis, sujeitas de modo prevalecente aos desejos dos indivíduos ou dos casais”. “Não caiamos no pecado de pretender substituir-nos ao Criador”.

Educar os filhos, “direito primário” dos pais

No terceiro capítulo da exortação, Francisco recorda o magistério de seus predecessores e explica que o sacramento do matrimônio “não é uma convenção social”, mas um “dom para a santificação e a salvação dos esposos”, uma verdadeira “vocação”. Portanto, “a decisão de se casar e de formar uma família deve ser fruto de um discernimento vocacional”. O amor conjugal está aberto à fecundidade. E “a educação integral dos filhos” é “obrigação gravíssima, ao mesmo tempo direito primário dos pais” e que “ninguém deveria querer tirar”.

Instruções sobre o amor

No quarto capítulo, um dos mais inovadores, o Papa propõe uma paráfrase do Hino à Caridade de São Paulo, tirando dele indicações concretas para os esposos. Convida-os para a “paciência” recíproca, sem pretender que “as relações sejam celestiais ou que as pessoas sejam perfeitas”, e sem colocar-se sempre a si mesmo “no centro”. Convida-os para serem benevolentes e a “doar-se sobreabundantemente sem medir, sem reclamar pagamentos, pelo simples gosto de dar e servir”.

Convida-os a não ser invejosos, a não se orgulhar ou “se engrandecer”, porque “quem ama, evita falar muito de si mesmo”, a não tornar-se “arrogantes e insuportáveis”, a ser humildes e a “tornar-se amáveis”, a não destacar “defeitos e erros alheios”. Convida-os a nunca acabar o dia “sem fazer as pazes em família”, a personar sem rancores, a falar bem reciprocamente, tratando de “mostrar o lado bom do cônjuge para além de suas fraquezas e erros”, a ter confiança no outro sem controlá-lo, deixando “espaços de autonomia”. E convida também para “contemplar” o cônjuge, recordando que “as alegrias mais intensas da vida brotam quando se pode provocar a felicidade dos outros”.

Mensagem aos jovens

O Papa diz aos jovens que devido à “seriedade” do “compromisso público de amor”, o matrimônio “não pode ser uma decisão apressada”, mas também não se deve adiá-la “indefinidamente”. Comprometer-se com outra pessoa exclusiva e definitivamente “sempre comporta uma cota de risco e de ousada aposta”. É preciso “reservar tempo” e consultar o cônjuge, deixar que fale antes de “começar a dar opiniões ou conselhos”. “Muitas discussões do casal não são por questões muito graves”. Às vezes, trata-se de coisas pequenas, “pouco importantes, mas o que altera os ânimos é o modo de dizê-las ou a atitude que se assume no diálogo”.

Sexualidade, “presente maravilhoso”

Desejos, sentimentos, emoções “ocupam um lugar importante no matrimônio”. Francisco, citando Bento XVI, explica que o ensinamento oficial da Igreja “não rejeita o eros como tal, mas declarou guerra ao seu desvio”, que o “desumaniza”. O próprio Deus “criou a sexualidade, que é um presente maravilhoso para as suas criaturas”. João Paulo II rejeitou a ideia de que o ensinamento da Igreja implique “uma negação do valor do sexo humano”, ou que simplesmente o tolere “pela própria necessidade da procriação”.

A necessidade sexual dos esposos não é “objeto de desprezo”. Mas, “não podemos ignorar que muitas vezes a sexualidade se despersonaliza e também se enche de patologias”, convertendo-se “cada vez mais em ocasião e instrumento de afirmação do próprio eu e de satisfação egoísta dos próprios desejos e instintos”. Por isso, o Papa insiste em que “um ato conjugal imposto ao cônjuge sem considerar sua situação atual e seus legítimos desejos, não é um verdadeiro ato de amor”. Deve ser rejeitada, portanto, “toda forma de submissão sexual”.

Acolher a vida

No quinto capítulo, o Papa recorda que a família é o espaço “não apenas da geração, mas do acolhimento da vida”. O Papa escreve que “se uma criança chega ao mundo em circunstâncias não desejadas, os pais ou outros membros da família, devem fazer todo o possível para aceitá-la como dom Deus”. As famílias numerosas são “uma alegria para a Igreja”, embora isto não queira dizer esquecer uma “saudável advertência” de João Paulo II: “a paternidade responsável não é procriação ilimitada”.

Francisco recorda que é importante que “a criança se sinta esperada”. “Um filho é amado porque é filho e não porque é bonito ou porque é deste modo ou daquele, mas porque é filho! Não porque pensa como eu, nem porque encarna as minhas aspirações”. O Papa dirige-se a todas as mulheres grávidas: “Aquela criança merece a tua alegria. Não permitas que os medos, as preocupações, os comentários alheios ou os problemas apaguem esta felicidade de ser instrumento de Deus para trazer uma nova vida ao mundo”.

A presença de uma mãe…

No documento diz-se que é “plenamente legítimo” e “desejável” que as mulheres estudem, trabalhem, desenvolvam as próprias capacidades e os próprios objetivos. Mas, ao mesmo tempo, “não podemos ignorar a necessidade que as crianças têm da presença materna, especialmente nos primeiros meses de vida”. A diminuição da presença materna, “com suas qualidades femininas, é um risco grave para a nossa terra”. “Valorizo o feminino – comenta Bergoglio – quando não pretende a uniformidade nem a negação da maternidade.

… e a ausência dos pais

O problema de nossos dias parece ser a “ausência” dos pais. Às vezes, o pai está “tão concentrado em si mesmo e seu trabalho e às vezes em suas próprias realizações individuais, que esquece inclusive a família. E deixa as crianças e os jovens sozinhos”. A presença paterna “se vê afetada também pelo tempo cada vez maior que se dedica aos meios de comunicação e à tecnologia da distração”. Mas pedir que o pai esteja presente “não é o mesmo que dizer controlador. Porque os pais muito controladores anulam os filhos”.

Sim às adoções

A adoção “é um caminho para realizar a maternidade e a paternidade de uma maneira muito generosa”. O Papa escreve: “é importante insistir em que a legislação possa facilitar os trâmites de adoção”. A família “não pode pensar em si mesma como um recinto fechado, procurando proteger-se da sociedade”, nem conceber-se como isolada do resto. “Deus confiou à família o projeto de tornar ‘doméstico’ o mundo, para que todos cheguem a sentir cada ser humano como irmão”.

E isto implica também o compromisso para com os pobres e aqueles que sofrem. O pequeno núcleo familiar “não deveria isolar-se da família ampliada, onde estão os pais, os tios, os primos e até os vizinhos. Nessa família grande pode haver alguns necessitados de ajuda, ou ao menos de companhia e de gestos de afeto, ou pode haver grandes sofrimentos que necessitam de um conforto”.

Fazer com que os anciãos se sintam em casa

“Devemos despertar o sentido coletivo de gratidão, apreço, hospitalidade, que façam sentir o ancião parte viva de sua comunidade”. Francisco observou que a atenção dada aos anciãos “distingue uma civilização”. O documento contém também um convite para não considerar como “competidores” ou “invasores” os sogros, sogras nem os demais parentes do cônjuge.

Famílias “sujeitos ativos” da pastoral

O sexto capítulo da exortação é dedicado às perspectivas pastorais. Francisco pede “um esforço evangelizador e catequético dirigido à família”, além de uma “conversão missionária” de toda a Igreja, para que não se fique “em um anúncio meramente teórico e desvinculado dos problemas reais das pessoas”. A pastoral familiar “deve fazer experimentar que o Evangelho da família responde às expectativas mais profundas da pessoa humana”.

Insiste-se também na necessidade de uma maior formação interdisciplinar e não apenas doutrinal dos seminaristas, para se ocuparem dos complexos problemas das famílias de hoje.

A preparação para o matrimônio

O Papa insiste muito na exigência de preparar melhor os noivos para o matrimônio, com uma maior participação de toda a comunidade. Cada Igreja local deve decidir como fazê-lo. “Trata-se de uma espécie de ‘iniciação’ ao sacramento do matrimônio que lhes forneça os elementos necessários para poder recebê-lo com as melhores disposições e iniciar com certa solidez a vida familiar”.

Mas não devemos esquecer “os valiosos recursos da pastoral popular”, como, por exemplo, o dia de São Valentim, que, “em alguns países, é melhor aproveitado pelos comerciantes do que pela criatividade dos pastores”. A preparação também deve oferecer a possibilidade de “reconhecer incompatibilidades ou riscos. Deste modo, pode-se chegar a advertir que não é razoável apostar nessa relação, para não expor-se a um fracasso previsível que terá consequências muito dolorosas”.

“Muito concentrados nos preparativos”

“A preparação próxima do matrimônio tende a concentrar-se nos convites, na roupa, na festa com os seus inumeráveis detalhes que consomem tanto os recursos econômicos como as energias e a alegria. Os noivos chegam desfalecidos e exaustos ao casamento”. “Queridos noivos, tende a coragem de ser diferentes, não vos deixeis devorar pela sociedade do consumo e da aparência”. Além disso, o matrimônio deve ser assumido como “um caminho de amadurecimento”, sem ter expectativas muito elevadas sobre a vida conjugal.

Sim à Humanae Vitae

Francisco pede para redescobrir a encíclica de Paulo VI e a Familiaris consortio do Papa Wojtyla, “para contrastar uma mentalidade muitas vezes hostil à vida”.

Conselhos para os jovens esposos

O Papa sugere alguns “rituais cotidianos”. “É bom dar-se sempre um beijo pela manhã, benzer-se todas as noites, esperar pelo outro e recebê-lo à chegada, ter alguma saída juntos, compartilhar as tarefas domésticas”. E é bom interromper “a rotina com festa, não perder a capacidade de celebrar em família, alegrar-se e festejar as experiências belas”.

As crises se resolvem

Com a “ajuda adequada e com a ação de reconciliação da graça, uma grande porcentagem de crises matrimoniais é superada de maneira satisfatória”. “Saber perdoar e sentir-se perdoado é uma experiência fundamental na vida familiar”. E, por isso, é necessária “a generosa colaboração de familiares e amigos e, às vezes, inclusive de ajuda externa e profissional”.

Nunca usar os filhos como “reféns”

Francisco pede aos pais separados para que “nunca, nunca e nunca tomem o filho como refém!” Se se separaram “por muitas dificuldades e motivos, a vida deu-lhes esta provação, mas os filhos não devem carregar o fardo desta separação; que eles não sejam usados como reféns contra o outro cônjuge”. Os filhos devem crescer “ouvindo a mãe falar bem do pai, embora já não estejam juntos, e o pai falar bem da mãe”. O Papa afirma que o divórcio é “um mal”, e define como “alarmante” o aumento dos divórcios.

A homossexualidade em família

A experiência de ter em seu seio pessoas com tendências homossexuais é uma experiência “nada fácil nem para os pais nem para os filhos”. O Papa insiste em que “cada pessoa, independentemente da própria orientação sexual, deve ser respeitada na sua dignidade e acolhida com respeito, procurando evitar qualquer sinal de discriminação injusta”.

Por isso, trata-se de “garantir um respeitoso acompanhamento, para que quantos manifestam a tendência homossexual possam dispor dos auxílios necessários para compreender e realizar plenamente a vontade de Deus na sua vida”. E insiste novamente em que não se pode comparar as uniões entre homossexuais com os casamentos.

O “aguilhão” da morte

O Papa recorda a importância de acompanhar as famílias afetadas por um luto, afirmando que “é preciso ajudar a descobrir que aqueles que perderam um ente querido ainda têm uma missão a cumprir e que não faz bem prolongar o sofrimento”.

Quem guia os nossos filhos?

No sétimo capítulo, fala-se sobre a educação dos filhos. Francisco convida a se perguntar: “quem se ocupa de lhes dar diversão”, quem “entra em suas casas através das telas”, a quem os confiamos “em seu tempo livre”. Sempre é preciso ficar vigilante. Os pais devem prepará-los para enfrentar “riscos, por exemplo, de agressões, abuso ou consumo de drogas”.

Mas, se um pai “está obcecado por saber onde está o seu filho e por controlar todos os seus movimentos, só buscará dominar seu espaço”, não o educará nem o “preparará para enfrentar os desafios”. Pelo contrário, é preciso colocar em marcha “processos de amadurecimento de sua liberdade, de capacitação, de crescimento integral, de cultivo da autêntica autonomia”.

Como educar?

A formação moral deveria ser realizada “intuitivamente”, para que o “filho possa chegar a descobrir por si mesmo a importância de determinados valores, princípios e normas, em vez de serem impostos como verdades irrefutáveis”. No mundo de hoje, “onde reinam a ansiedade e a pressa tecnológica, uma tarefa importantíssima das famílias é educar para a capacidade de esperar. Não se trata de proibir os filhos que brinquem com dispositivos eletrônicos, mas de encontrar a forma de gerar neles a capacidade de diferenciar as diversas lógicas e de não aplicar a velocidade digital a todos os âmbitos da vida”.

O perigo do “autismo tecnológico”

Os meios eletrônicos, às vezes, “afastam em vez de aproximar, como quando, na hora da refeição, cada um está concentrado no seu telemóvel ou quando um dos cônjuges adormece à espera do outro que passa horas entretido com algum dispositivo eletrônico”. Não se pode ignorar “os riscos das novas formas de comunicação para as crianças e os adolescentes, chegando às vezes a torná-los apáticos, desligados do mundo real. Este ‘autismo tecnológico’ expõe-nos mais facilmente às manipulações daqueles que procuram entrar na sua intimidade com interesses egoístas”.

A exortação diz sim à educação sexual, que tenha “um saudável pudor”, e também uma educação que acostume as crianças a compreender que também os homens podem (e devem) fazer as tarefas domésticas. Para concluir, é indispensável que “os filhos vejam de maneira concreta que para seus pais a oração é realmente importante”.

O oitavo capítulo da Amoris laetitia ocupa-se da atitude pastoral daqueles que vivem em segundas núpcias: nenhuma regra geral sobre o acesso aos sacramentos, mas há uma porta aberta a maior espaço para percursos que tenham em conta as diferentes situações pessoais. “Não se pode dizer que todos os que se encontram em alguma situação chamada ‘irregular’ vivem em uma situação de pecado mortal”.

Os parágrafos 296-312 do oitavo capítulo da exortação apostólica Amoris laetitia são dedicados ao discernimento das situações “irregulares” contêm três palavras chaves: “acompanhar”, “discernir” e “integrar”. Nunca se nomeia explicitamente a admissão à eucaristia no texto, embora em uma nota se faça referência aos “sacramentos”. Explica-se que não são possíveis regras canônicas gerais, válidas para todos, razão pela qual o caminho é o do discernimento caso por caso.

“Ninguém está condenado para sempre”

“Ninguém pode ser condenado para sempre – escreve o Papa –, porque essa não é a lógica do Evangelho!” “Obviamente – acrescenta – se alguém ostenta um pecado objetivo como se fosse parte do ideal cristão, ou quer impor algo diferente do que a Igreja ensina, não pode pretender dar catequese ou pregar, e nesse sentido há algo que o separa da comunidade”. Ou seja, não se trata de reivindicar direitos nem autojustificações públicas.

Diferentes circunstâncias

Bergoglio recorda que os divorciados que contraíram novas núpcias “podem encontrar-se em situações muito diferentes”, que não podem ser classificadas em “afirmações muito rígidas”. Uma coisa, por exemplo, é um segundo matrimônio consolidado no tempo, com novos filhos, “com provada fidelidade, entrega generosa, compromisso cristão, conhecimento da irregularidade de sua situação e grande dificuldade para voltar atrás sem sentir na consciência que se cai em novas culpas”.

A Igreja, observa o Papa, reconhece situações em que o homem e a mulher, por motivos sérios, como a educação dos filhos, não podem satisfazer a obrigação da separação. E também há todos aqueles que fizeram “grandes esforços” para salvar o primeiro casamento e sofreram um abandono injusto, ou o caso daqueles que se casaram novamente “em vista da educação dos filhos” e, talvez, em consciência e seguros de que o matrimônio anterior, “irremediavelmente destruído, nunca tinha sido válido”.

Um caso completamente diferente seria, por exemplo, uma nova união que chega depois de um divórcio recente, com todas as consequências de sofrimento e de confusão que afetam os filhos e as famílias, ou a situação daqueles que faltaram reiteradamente “aos seus compromissos familiares”. Que fique claro, observa Francisco: “este não é o ideal que o Evangelho propõe para o matrimônio e a família”.

Distinguir as situações

O Papa retoma as conclusões dos padres sinodais e afirma que o discernimento deve ser feito, sempre, “distinguindo adequadamente” as situações, posto que não existem “receitas simples”. Os divorciados que voltaram a se casar devem ser mais integrados – que não estão excomungados – nas comunidades cristãs, “evitando toda ocasião de escândalo”. O Papa afirma que é preciso discernir quais as “formas de exclusão” devem ser superadas (por exemplo, não podem ser padrinhos ou madrinhas de batismo ou fazer as leituras), mas não toma decisões a este respeito.

Nenhuma normativa geral

Não se deve esperar desta exortação “uma nova normativa geral de tipo canônica, aplicável a todos os casos”. Ao contrário, é possível apenas “um novo encorajamento a um responsável discernimento pessoal e pastoral dos casos particulares”. E, posto que “o grau de responsabilidade não é igual em todos os casos, as consequências ou os efeitos de uma norma não necessariamente devem ser sempre as mesmas”. Os sacerdotes têm a tarefa de acompanhar as pessoas neste caminho, segundo os “ensinamentos da Igreja e as orientações do bispo”.

Exame de consciência para os divorciados recasados

O Papa sugere um exame de consciência mediante momentos de “reflexão e de arrependimento”. Os divorciados recasados “deveriam questionar-se como se comportaram com os seus filhos quando a união conjugal entrou em crise; se houve tentativas de reconciliação; como é a situação do cônjuge abandonado; que consequências têm a nova relação sobre o resto da família e a comunidade dos fiéis”.

Não a uma dupla moral

O diálogo com o sacerdote, “no foro interno, concorre para a formação de um juízo correto sobre aquilo que dificulta a possibilidade de uma participação mais plena na vida da Igreja”. Francisco esclarece que “este discernimento não poderá jamais prescindir das exigências de verdade e caridade do Evangelho propostos pela Igreja”.

Por esta razão, devem ser garantidas “as condições necessárias de humildade, reserva, amor à Igreja e ao seu ensinamento”. Estas atitudes são fundamentais para evitar o perigo de “mensagens equivocadas, como a ideia de que algum sacerdote pode conceder rapidamente ‘exceções’, ou de que existem pessoas que podem obter privilégios sacramentais em troca de favores”. A responsabilidade e a discrição, sem a pretensão de “colocar seus desejos acima do bem comum da Igreja”, permitem evitar o perigo de “pensar que a Igreja sustenta uma dupla moral”.

Discernimento especial

O Papa também reflete sobre as razões que permitem um “discernimento especial” em certas situações, mas sem reduzir nunca “as exigências do Evangelho”. Trata-se de avaliar “condicionamentos” e “circunstâncias atenuantes”. “Já não é possível dizer – afirma o Papa – que todos os que estão numa situação chamada ‘irregular’ vivem em estado de pecado mortal, privados da graça santificante”. Há aqueles que, efetivamente, poderiam encontrar-se em condições “concretas que não lhes permitem agir de maneira diferente e tomar outras decisões sem uma nova culpa”. Ou seja, pode haver “fatores que limitam a capacidade de decisão”.

Situação objetiva e imputabilidade

Catecismo da Igreja Católica (n. 1735) afirma, com respeito a estes condicionamentos, que “imputabilidade e responsabilidade de um ato podem ser diminuídas, e até anuladas, pela ignorância, a inadvertência, a violência, o medo, os hábitos, as afeições desordenadas e outros fatores psíquicos ou sociais”. Por isso, um “juízo negativo sobre uma situação objetiva não implica um juízo sobre a imputabilidade ou a culpabilidade da pessoa envolvida”. Portanto, continua Francisco, “a consciência das pessoas deve ser melhor incorporada na práxis da Igreja”.

É preciso “encorajar o amadurecimento de uma consciência iluminada”, mas, às vezes, também se pode reconhecer qual é, “no momento”, “a resposta generosa que se pode oferecer a Deus”, embora “não seja ainda plenamente o ideal objetivo”. Francisco escreve que “é mesquinho deter-se a considerar apenas se o agir de uma pessoa corresponde ou não a uma lei ou norma geral”. E convida a recordar que Santo Tomás de Aquino afirma: “quanto mais se desce ao particular, mais aumenta a indeterminação”.

Não à “casuística”

As normas gerais “apresentam um bem que nunca se deve ignorar nem transcurar, mas “em sua formulação, não podem abarcar absolutamente todas as situações particulares”. Ao mesmo tempo, precisa Bergoglio, devemos afirmar que “aquilo que faz parte de um discernimento prático de uma situação particular não pode ser elevado à categoria de norma”. Porque isto geraria uma “casuística insuportável”, mas também colocaria em risco “os valores que se devem preservar com particular cuidado”.

As leis morais não são pedras

Um pastor “não pode sentir-se satisfeito aplicando somente leis morais àqueles que vivem em situações ‘irregulares’, como se fossem pedras que se atiram contra a vida das pessoas”. Francisco recorda o que afirmou a Comissão Teológica Internacional: “A lei natural não pode ser apresentada como um conjunto já constituído de regras que se impõem a priori ao sujeito moral, mas é uma fonte de inspiração objetiva para seu processo, eminentemente pessoal, de tomada de decisão”.

Receber a ajuda da Igreja

“Por causa dos condicionamentos ou dos fatores atenuantes – escreve o Papa –, é possível que uma pessoa, no meio de uma situação objetiva de pecado – mas subjetivamente não seja culpável ou não o seja plenamente –, possa viver em graça de Deus, possa amar e possa também crescer na vida de graça e de caridade, recebendo para isso a ajuda da Igreja”.

Precisa-se significativamente na nota número 351 que “em certos casos, poderia haver também a ajuda dos sacramentos”. Ao pensar que “tudo seja branco no preto, às vezes fechamos o caminho da graça e do crescimento e desencorajamos percursos de santificação”. A todos aqueles que “têm dificuldades para viver plenamente a lei divina, deve ressoar o convite para percorrer” o caminho das obras de misericórdia.

Nunca renunciar a propor o ideal

O Papa, em seguida, insiste, para evitar “qualquer interpretação desviada”, que “de maneira alguma a Igreja deve renunciar a propor o ideal pleno do matrimônio, o projeto de Deus em toda a sua grandeza”. Qualquer “forma de relativismo” a este respeito seria uma “falta de fidelidade ao Evangelho”.

Possíveis etapas de crescimento

No entanto, acrescenta Francisco, “da nossa consciência do peso das circunstâncias atenuantes” deriva que “sem diminuir o valor do ideal evangélico, é preciso acompanhar, com misericórdia e paciência, as possíveis etapas de crescimento das pessoas”.

O Papa compreende aqueles que “preferem uma pastoral mais rígida que não dê lugar a confusão alguma”. Mas afirma acreditar sinceramente que “Jesus Cristo quer uma Igreja atenta ao bem que o Espírito derrama no meio da fragilidade”. Os pastores que “propõem aos fiéis o ideal pleno do Evangelho e a doutrina da Igreja, devem ajudá-los também a assumir a lógica da compaixão pelas pessoas frágeis e evitar perseguições ou juízos demasiado duros e impacientes”.

Dar espaço ao amor de Deus

O ensinamento da teologia moral “não deveria deixar de incorporar estas considerações”, observa Francisco, explicando que, “às vezes, nos custa muito dar lugar na pastoral ao amor incondicional de Deus”. E é muito significativa a nota que completa esta passagem, na qual o Papa escreve: “alguns sacerdotes exigem aos penitentes um propósito de emenda claro sem sombra alguma, fazendo com que a misericórdia se esfume debaixo da busca de uma justiça supostamente pura. Por isso, vale a pena recordar o ensinamento de São João Paulo II”, que, em uma carta ao cardeal Williams Baum, “afirmava que a previsibilidade de uma nova queda ‘não prejudica a autenticidade do propósito’”.

A lógica do perdão

“Deve prevalecer” na Igreja a lógica que sempre leva a “compreender, perdoar, acompanhar”, e, sobretudo, a “integrar”. Francisco convida os fiéis que vivem em “situações complexas” a se aproximarem “com confiança” para dialogar com seus pastores. Nem sempre “encontrarão neles uma confirmação de suas próprias ideias ou desejos, mas seguramente receberão uma luz”. E também convida os pastores a escutar com afeto e serenidade, “com o desejo sincero de entrar no coração do drama das pessoas e de compreender seu ponto de vista”.

(Vatican Insider)

(IHU)

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