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O drama do maratonista etíope: mas qual é a situação dos cristãos na Etiópia?

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AFP

Aleteia Brasil - publicado em 24/08/16

"Se eu voltar para casa, eles me matam. Ou me mandam para a cadeia"

Se eu voltar para casa, eles me matam. Ou me mandam para a cadeia“. As palavras fortes são do maratonista etíope Feysa Lilesa, em alusão ao gesto que fez quando ganhou a medalha de prata nos Jogos Olímpicos do Rio: ele juntou os pulsos representando braços algemados, em protesto contra o governo de seu país, que, controlado por membros de uma etnia minoritária, é acusado de oprimir o numeroso grupo étnico dos omoros, ao qual pertence o atleta. “Eles nos matam, nos mandam para a cadeia. As pessoas desaparecem: muitos membros da minha família se foram, incluindo o meu pai“, denuncia Lilesa.

A foto das “algemas” de Lilesa foi estampada por todos os principais jornais do mundo e trouxe às atenções o debate sobre os direitos humanos na Etiópia. Mas qual é a situação real no país africano? E qual é o papel da religião nestas tensões étnicas e sociais?

Aleteia conversou com o padre Mussie Zerai, sacerdote católico da Eritreia, responsável pela pastoral dos eritreus, etíopes e somalis na Suíça, país onde vive hoje.

O padre Mussie chegou a Roma aos 14 anos de idade como requerente de asilo. Chegou a ser indicado ao Prêmio Nobel da Paz em 2015 por seu trabalho humanitário que lhe valeu o apelido de “anjo dos refugiados“. Membro da congregação dos padres scalabrinianos, ele é fundador da ONG Habeshia, voltada a integrar imigrantes da Etiópia, Eritreia e Somália.

Eis a entrevista:

Aleteia: Abba Mussie, o gesto de Feysa Lilesa reacendeu os holofotes sobre a Etiópia, um país considerado amigo do Ocidente, mas cuja situação interna é, por assim dizer, particular.

A situação é “particular” já faz muito tempo no tocante aos direitos e liberdades democráticas. São muitas denúncias de abusos, maus-tratos e prisões arbitrárias. Estas e outras violações dos direitos humanos atingem principalmente, mas não só, a etnia oromo. Na região de Ogaden (sul, ao longo da fronteira com a Somália) existe outra situação de conflito, por interesses econômicos e geopolíticos. Alguns movimentos políticos, por várias razões históricas, querem a autonomia regional ou mesmo a independência total. Por uma razão ou outra, existem grupos de cidadãos que entraram em rota de colisão com o governo central, que responde com repressão e agressão. Desde novembro do ano passado até poucos dias atrás, assistimos a manifestações pacíficas contra o regime no norte da Etiópia; por exemplo, nas áreas de Amhara, Gondar e Bahar Dar. Mas a dissidência foi reprimida com sangue, com centenas de mortes e dezenas de milhares de prisões.

Aleteia: Os territórios que o senhor mencionou são predominantemente cristãos. Qual é a importância da afiliação religiosa nesse mosaico de tensões sociais e políticas?

Sim, especialmente em Amhara, a população é predominantemente cristã. Essas pessoas tomaram as ruas para exigir mais direitos, mais participação na esfera política, econômica e social do país. A riqueza está concentrada nas mãos de poucos e há um fosso abissal entre ricos e pobres. Nos últimos anos, algumas pessoas têm acumulado dinheiro de forma desproporcional, enquanto outros não têm nada. Muitas vezes, o poder é concedido conforme critérios étnicos. A Etiópia tem mais de 94 milhões de habitantes, com cerca de 80 grupos étnicos e 90 línguas distintas, e há uma taxa altíssima de desemprego. Os jovens, que não conseguem trabalho nem respostas, tentam desafogar a situação de pobreza ou indigência abraçando ideologias fortes e radicais de tipo religioso.

Aleteia: É correto dizer que os cristãos são discriminados pelas instituições?

Há situações em que os cristãos são discriminados, especialmente no centro-sul da Etiópia. Na região de Harar há infiltrações de pregadores do Paquistão e de outras áreas que estão radicalizando o islã na Etiópia. Houve vários casos de igrejas cristãs queimadas. Existem vários sinais neste sentido, infelizmente. Mesmo na capital, Addis Abeba, há casos de discriminação, inclusive por parte das autoridades. Quando os muçulmanos pedem um terreno para construir uma mesquita, normalmente não há problema. Já se os cristãos fazem o mesmo pedido para uma igreja, há muitas dificuldades burocráticas e muitas vezes não conseguem as licenças. Não está claro o porquê. O papel decisivo é de quem está no governo local e municipal, que pode controlar e manipular a situação e negar os direitos dos cristãos. Isso ocorre na região de Harar, de maioria somali, mas também nos territórios dos oromos e de outras etnias.

Aleteia: Na região de Harar existem infiltrações do al-Shabaab? [NR: trata-se de um violento grupo terrorista da Somália que se apresenta como jihadista islâmico e atua em diversos países da região]

Estamos na fronteira, então pode ser. Não temos certeza absoluta. Mas é evidente que há pregadores extremistas que radicalizam o islã etíope. Isso foi visto em várias manifestações organizadas por eles, nas igrejas queimadas, nas pessoas mortas. Nos últimos 10 anos tem havido um crescimento gradual destes sinais.

Aleteia: O cristianismo etíope tem raízes antiquíssimas e a Etiópia tem longa história de relações entre cristãos e muçulmanos, em geral consideradas positivas. Existem condições para superar esta situação de alta tensão e recuperar a harmonia intercultural?

Os muçulmanos são muito gratos à Etiópia porque foi lá que os primeiros seguidores de Maomé acharam refúgio da perseguição pagã. Foi lá que eles encontraram asilo e proteção. A Etiópia demonstrou acolhimento e respeito por eles. Na tradição sagrada deles, a Etiópia é chamada de “terra de paz”, quase um lugar sagrado para muitos deles. Alguns dos primeiros seguidores de Maomé estão enterrados na Etiópia. É verdade que o atual processo de radicalização ameaça destruir os séculos de convivência pacífica que caracterizaram o país. Mas também se pode dar fim a essa tendência focando no diálogo religioso e isolando os extremistas.

Aleteia: O senhor faz o seu trabalho pastoral na Suíça, principalmente com etíopes e eritreus. As tensões dos seus países de origem afetam o trabalho?

O meu compromisso com eles se concretiza na assistência espiritual e social. Eu os ajudo a compreenderem seus direitos, a se desembaraçarem da burocracia, a solicitar corretamente o estatuto de refugiados. No trabalho social, eu me relaciono com todos, cristãos e muçulmanos. A minha ajuda é para qualquer um que tenha necessidade. Não se pode escolher com base em quem se tem na frente.

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Entrevista realizada por Valerio Evangelista, da Aleteia Itália

Tags:
ÁfricaliberdadeMuçulmanosPerseguiçãoPolítica
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