A espalhafatosa temporada natalina também serve como pretexto para encontros intermináveis entre pessoas que jamais se reuniriam por livre e espontânea vontade em outros contextosPara as pessoas cheias de energia, otimistas e animadas, que vivem querendo incrementar a qualidade de vida dos outros, o início cada vez mais precoce da “temporada de Natal” é um verdadeiro presente do Menino Jesus. Elas já começam em novembro a fazer as listas dos “presentes revolucionários” que vão dar aos parentes e aos amigos: aquele livro de dieta que “você precisa experimentar”, aqueles biscoitos com lactobacilos vivos que vão “nocautear o seu mal de Crohn”, aquele exemplar da Teologia do Corpo para a sua tia que já se divorciou duas vezes e que “não vai conseguir viver sem essa leitura”, aquela caixa de adesivos de nicotina que vai “adicionar décadas” à vida do seu pai, mesmo que ele já esteja avançado na terceira idade.
A espalhafatosa temporada natalina também serve como pretexto para encontros intermináveis entre pessoas que jamais se reuniriam por livre e espontânea vontade em outros contextos: melancólicos colegas de trabalho, parentes distantes que são quase estranhos uns para os outros, pais dos colegas das crianças, vizinhos indiferentes e solteirões solitários que “precisam”, a qualquer custo, “ser arrastados da toca para a luz” (“O quê? Você vai passar a sexta-feira antes do Natal sozinho? De jeito nenhum! Você vai passar com a gente! Vai ter cidra e músicas de Natal!”).
De repente, espaços públicos começam a lembrar pavorosamente aquelas pinturas do Inferno de Thomas Kincade (pelo menos é isso o que aquelas legiões de ursos de pelúcia e de crianças hiperelétricas me sugerem). Tudo brilha, pisca, reluz e se mexe como naqueles painéis de neon com Papais Noéis sacudindo o chicote infinitamente, logo acima do lombo de renas esvoaçantes. Na maioria desses telões, não há o menor indício de Maria ou de Jesus, nem sequer em lugares nos quais seria de se esperar ao menos um menorá para lembrar que todo este circo tem vagas origens em eventos antigos do deserto, relacionados com uma religião semítica. O fato é que estamos imersos em quatro longas semanas de papainoelíada, como Evelyn Waugh teria sugerido em “Love Among the Ruins”.
É claro que não é preciso participar de tamanho despautério. Para aqueles de nós que são propensos ao isolamento e que nutrem uma desconfiança espontaneamente agostiniana da humanidade, esse clima de neve artificial e a presença de duendes nas paredes representam uma oportunidade excepcional. Se todo o mundo estivesse comemorando um verdadeiro Natal, entusiasmados com a vinda de um Salvador para remi-los do pecado, então nós, misantropos, teríamos que achar um jeito de celebrar, correndo o risco de cair em blasfêmia. Do mesmo modo que é errado jejuar aos domingos, nós nos sentiríamos religiosamente obrigados a participar de algumas das festas, providenciar sorrisos, comprar dezenas de presentes para retribuir aos amigos e até mesmo usar aqueles trajes que não têm pudor em combinar medonhamente o vermelho com o verde.
Felizmente, nada disso é necessário. O advento não é uma época festiva, muito embora já pululem cores e luzes pelos quintais dos vizinhos quando novembro nem sequer terminou e as rádios não hesitem em bombardear canções que evocam profundos significados cósmicos escondidos em fenômenos meteorológicos hibernais. Essa festa que todo mundo está celebrando, seja ela o que for, com certeza não é religiosa em coisa nenhuma: portanto, estamos perfeitamente livres para “nos incluir fora dessa”. É o equivalente moral do Dia da Independência Basca: não temos obrigação alguma de hastear a bandeira.
Podemos, isto sim, fazer bom uso das nossas convicções religiosas reais e afastar os entusiasmados sociais que nos incomodam, apresentando a eles sólidas objeções a esse tipo de festividade. Podemos dizer a nós mesmos, aliás, que estamos sendo “apostólicos” e fazendo “contracultura”, obtendo indulgências parciais toda vez que nos recusamos a ser indulgentes com algum deles.
Aqui vai uma pequena lista de ideias para que nós, misantropos, cavernícolas, solitários e pessimistas, possamos fazer do período papainoelístico um tempo mais agradável para nós próprios e mais instrutivo para o próximo:
– Recuse-se a decorar a casa antes de 24 de dezembro. Depois, mantenha seus pisca-piscas acesos até 2 de fevereiro, para lembrar a todos da festa da Candelária.
– Quando as pessoas lhe disserem “Boas festas“, responda “Feliz Comemoração Genérica Sem Sentido“. Explique então que a guerra contra o verdadeiro Natal faz parte de um ataque sistemático dos secularistas contra toda a sociedade civil. Balance solenemente a cabeça para a esquerda e para a direita enquanto as pessoas se afastam espantadas de você.
– Quando alguém lhe disser “Feliz Natal“, mesmo que já seja a noite de 24 de dezembro, lembre-lhe que “o advento é um tempo de penitência, de jejum e de oração, que nos recorda a miséria sem esperança da espécie humana que Cristo veio salvar –no caso de quem o aceita, é claro. O caminho, porém, é estreito e poucos são os que o percorrem“. Isso dito, sorria e complete: “Mas feliz Natal para você também“.
– Resista às tentativas dos parentes de garantir a sua presença nas festinhas das crianças, nos jogos de futebol ou nas reprises de filmes de Natal em família: insista em participar da mais tradicional e distante liturgia que você puder lembrar que existe. Se houver uma missa em latim a algumas quadras, reclame do missal que eles usam e teime em procurar um rito católico armênio ou siro-malancar em que até o sermão seja feito em idioma estrangeiro. Tente arrastar todo mundo consigo para mostrar a eles o que é “liturgia de verdade”.
– Se você tiver que assistir a uma festiva missa do galo com a família, recorde a todos cada regulamentação da Igreja sobre a confissão antes da comunhão. Ostensivamente, recuse-se você mesmo a comungar, para deixar bem clara a gravidade do sacrilégio. Ajoelhe-se de olhos fechados na ponta do banco, de modo que todos os pagãos da sua família precisem se esgueirar sobre você e sobre o seu exemplo vivo quando estiverem indo para a fila da comunhão.
– Se você tiver que receber os familiares em casa, insista em “tornar este Natal mais autêntico”. Nada de peru, nada de recheios: só comida do Oriente Médio, como cabrito assado. Nada de canções “laicas” de Natal: só hinos melquitas e maronitas, ou, por muito excepcional concessão, um CD de canto gregoriano da missa de Natal, repetido uma vez atrás da outra. Coloque também o DVD da Paixão de Cristo, lembrando aos menores que “esta é a razão deste tempo litúrgico”. A seguir, vá fumar o seu charuto na varanda.
Você terá, muito em breve, plena privacidade para meditar sobre as quatro coisas finais da vida ou para terminar de ler aquele livro de Malachi Martin. No ano que vem, você com certeza será deixado em paz.