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Queria que mais gente estivesse aqui, diz voluntária para teste de remédio

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Charmer Ai - Shutterstock

Agências de Notícias - publicado em 03/03/17

"A depressão termina com muita coisa na vida da gente", relata a aposentada, que há dez meses viu brilhar uma luz no fim do túnel

A aposentada Renilda Teresinha Alves da Rocha, 58, se curou de um câncer de colo de útero há oito anos. Mas, devido ao rigor do tratamento, contraiu uma depressão que a afastou dos amigos, da família, dos três netos, do marido e até de si mesma.

“A depressão termina com muita coisa na vida da gente”, relata a aposentada, que há dez meses viu brilhar uma luz no fim do túnel: foi integrada a uma experiência científica, no Hospital de Clínicas de Porto Alegre, para testar um novo medicamento contra o mal que a aflige. E os resultados têm deixado a aposentada confiante.

“Os sintomas diminuíram, me sinto mais segura e até já estou planejando o dia em que vou sair para passear sozinha com meus netos. Eu chego lá”, comemora. Renilda é um dos 21.623 voluntários que atualmente participam de pesquisas científicas no Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), ligado à UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul).

O local é um dos principais centros de testes em todo o país –no momento, há 302 medicamentos em estudo no hospital, entre eles o spray nasal que pode representar um alento não só para Renilda, mas para milhões de pessoas que sofrem com os efeitos da depressão refratária.

A chefe do Centro de Pesquisa Clínica do HCPA, Gisele Manfro, destaca que há cerca de 500 projetos em andamento, nas mais diversas áreas, comandados por pesquisadores ligados ao hospital –há três anos havia menos da metade dos estudos atuais. Todos devidamente avaliados e autorizados pelo Comitê de Ética do HCPA. Mas Gisele afirma que o volume poderia ser maior. Para ela, há uma demora dos órgãos reguladores para autorizar os procedimentos –seja em relação à ética médica, seja em relação à segurança dos voluntários.

“É claro que são questões fundamentais e que precisam ser minuciosamente avaliadas, mas nosso tempo de resposta é superior a um ano. Em outros países, esse prazo pode cair para quatro meses”, destaca. Segundo a pesquisadora, milhares de pacientes dependem do desenvolvimento das pesquisas, em universidades ou em laboratórios privados, para obter perspectiva de cura ou de tratamento.

Na área de infusão do HCPA, onde Renilda testa o antidepressivo à base de esquetamina e outros 41 medicamentos estão em fase de validação, foram atendidos 955 voluntários no ano passado, número este que vem em queda: enquanto em 2014 chegava a 1.500 pacientes, em 2015 ficou em 1.176 pessoas.

A enfermeira Suzana Müller, que coordena a equipe de profissionais do setor, exemplifica as consequências desse processo, dizendo que recebeu treinamento para uma nova droga desenvolvida pela indústria farmacêutica em 2016. Mas as autorizações da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) ainda devem demorar seis meses. “Quando o procedimento for autorizado, o treinamento terá de ser refeito.”

O teste de fase 3 do antidepressivo aplicado em Renilda e outros voluntários, desenvolvido por um laboratório privado, deve se estender por mais dois ou três anos e envolve outros quatro centros de pesquisa no país. Uma das pesquisadoras responsáveis pelo estudo, Clarissa Gama, diz que é preciso definir a dose e a periodicidade da aplicação.

Os voluntários recebem três aplicações por semana do medicamento e são monitorados durante 90 minutos, para que sejam detectadas eventuais reações adversas. Renilda sabe dos riscos que corre, como efeitos colaterais cardíacos, mas decidiu participar do teste porque entende que pode ajudar muita gente como ela.

Demora na autorização retarda estudos

O Registro Brasileiro de Ensaios Clínicos (ReBec), criado em 2010 para dar transparência à realização de testes científicos de clínica médica com pessoas, registrava na quinta-feira (2) 3.516 testes cadastrado desde junho de 2011, dos quais 1.268 publicados e 414 ensaios em fase de recrutamento de voluntários.

A plataforma, resultado da cooperação entre o Ministério da Saúde e a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) e administrada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), registra estudos experimentais e não experimentais realizados em seres humanos no Brasil conduzidos por pesquisadores brasileiros ou estrangeiros.

Um dos procedimentos recomendados pelos pesquisadores para acelerar a autorização de ensaios clínicos é que tanto o Conep, que apura as questões éticas dos projetos, quanto a Anvisa, responsável pela segurança, analisem paralelamente os pedidos, como forma de reduzir o prazo para pelo menos seis meses.

Na Anvisa, as informações mostram estabilidade em relação ao número de testes autorizados: 220 em 2013, 194 em 2014, 232 em 2015 e 262 no ano passado. Equivale a pouco mais de 10% do volume de pesquisas de centros científicos mais avançados que o Brasil, como Estados Unidos, China e Alemanha, que lideram o ranking elaborado anualmente pela Thomson Reuters. A agência não tem um banco de dados para recrutamento de voluntários e tampouco controla a remuneração dos ensaios de fase 1, autorizados no país desde 2013.

Na Conep, também não há dados sobre o número de procedimentos nem sobre a quantidade de voluntários envolvidos em testes. Segundo a assessoria da comissão, os pesquisadores ou patrocinadores privados são responsáveis por recrutar os participantes de pesquisas. A assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, além disso, garante “sigilo e privacidade” durante todas as fases da pesquisa, para voluntários e autores.

Outro órgão que deveria mobilizar os vários centros de pesquisa no país passa por reformulações. A Rede Nacional de Pesquisa Clínica (RNPC), criada em 2005 pelos ministérios da Saúde e da Ciência e Tecnologia e que conta com 32 instituições de ensino e pesquisa, deveria promover o intercâmbio entre os institutos, mas as reuniões mensais não ocorrem desde outubro do ano passado.

“Estamos elaborando um plano de ação para os próximos anos como forma de rearticular o grupo. Nossa intenção é fazer com que o órgão cumpra efetivamente suas funções”, diz a coordenadora do grupo de pesquisa e pós-graduação do HCPA, Patrícia Ashton-Prolla, que participa da RNPC.

Gestor de um dos principais laboratórios privados de ensaios clínicos, Vitor Hugo Nyari também confirma a curva descendente nos testes voltados para a indústria. “Temos suporte para atender 2.000 pacientes por mês. Mas nosso fluxo caiu para 40, 50 usuários por dia”, diz o diretor do CCBR Brasil, que testa medicamentos e terapias para osteoporose, artrite, diabetes e doenças coronárias.

Segundo Nyari, a legislação regulatória é muito complexa no país e retarda o potencial para estudos de ponta, que envolvem universidade estrangeiras. Como as pesquisas têm caráter internacional, quando há a autorização da Anvisa, muitas delas já encerraram a fase de recrutamento de voluntários em outros países. “Propostas [de terapias] temos muitas. Mas a fase regulatória é muito demorada”, sintetiza.

Vulnerabilidade e preconceito afastam voluntários

O INI (Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas) prepara para março a etapa brasileira de um dos mais importantes ensaios clínicos em andamento no mundo para tratamento e prevenção da Aids. O órgão, ligado à Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), vai recrutar cem voluntários no Rio de Janeiro para receber o anticorpo de laboratório VRC01, na forma de injeção intravenosa. O teste faz parte de um esforço global chamado Anticorpos Mediando Prevenção (AMP), que prevê 2.700 voluntários nas Américas do Sul, Central e Norte e 1.500 em países da África subsaariana.

Para qualificar a participação dos voluntários e evitar descontinuidades, a coordenadora do projeto no INI, Brenda Hoagland, explica que o recrutamento irá utilizar uma metodologia de “educadores de pares” para trabalhar na divulgação das oportunidades e no envolvimento de potenciais interessados no teste. Os educadores, já previamente formados em temas de saúde pública, irão preparar os participantes e ajudar a reduzir potenciais evasões no teste, motivadas por desinteresse ou preconceito.

“Isso significa que o voluntário irá se identificar com o recrutador, pois ambos deverão pertencer à mesma comunidade. O método reduz possíveis situações de vulnerabilidade, constrangimento ou preconceito”, afirma a pesquisadora, que destaca a complexidade das pesquisas científicas como um fator que ajuda a desmotivar eventuais participantes em testes científicos.

“Os participantes de um estudo devem seguir adequadamente o cronograma do estudo, que irá variar conforme o tipo de pesquisa que está sendo realizado. No caso do AMP, os participantes serão acompanhados por 22 meses, com consultas mensais e realização de dez infusões do produto do estudo a cada dois meses”, informa a coordenadora.

Não é uma rotina fácil. Um voluntário geralmente, embora nem sempre, é um doente em busca de tratamento que aceita um nível controlado de risco em troca da perspectiva de cura de sua enfermidade. Desde o início de 2013, a resolução 466 permite que as empresas ou institutos de pesquisa financiem as despesas dos participantes, como forma de incentivar o número de usuários –em geral, pessoas de baixa renda que buscam tratamento gratuito.

A lei, entretanto, proíbe a remuneração da atividade, com exceção de testes da fase 1 ou de bioequivalência –para testagem de medicamentos genéricos ou similares, por exemplo. Como as pesquisas de fase 1 envolvem indivíduos saudáveis, o recrutamento de voluntários era considerada a parte mais sensível dos ensaios clínicos no país. A resolução, entretanto, não menciona valores.

A reportagem do UOL apurou que instituições privadas de pesquisa pagam de R$ 400 a R$ 3.000 por participação em testes, dependendo da complexidade da pesquisa. Mas os participantes devem observar limite mínimo de 90 dias entre os testes. A remuneração, entretanto, não é explícita, apesar de estar prevista na lei.

Segundo a Conep, a adesão a um ensaio clínico deve ser feita de “forma livre, desimpedida e com a maior transparência possível” por parte dos usuários. Os condutores científicos dos estudos, além disso, deverão se certificar de que os voluntários compreenderam perfeitamente o conteúdo do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido –a simples assinatura do termo não basta, já que o documento passa por revisão e certificação.

Também cabe aos patrocinadores, de acordo com a Conep, “arcar com toda e qualquer despesa relacionada com a participação dos voluntários no estudo, sejam elas despesas com alimentação, transporte ou outras”. Caso o medicamento seja comercializado, o participante da pesquisa irá recebê-lo gratuitamente por tempo indeterminado.

O diretor do CCBR Brasil, Vitor Hugo Nyari, diz que os voluntários são antes de tudo “pessoas altruístas”, que buscam ajudar não apenas a si mesmos, mas aos outros também. Segundo ele, é preciso quebrar com o senso comum de que participantes de testes científicos são “cobaias” humanas.

Fase clínica pode levar mais de cinco anos

A fase clínica é a fase de teste de medicamentos ou novas terapias em seres humanos. É composta por quatro fases sucessivas e somente depois de concluídas é que o medicamento poderá ser liberado para comercialização. Isso pode durar pelo menos cinco anos.

Fase 1 – Um estudo dessa fase, inicial, testa o medicamento pela primeira vez em seres humanos. O objetivo principal é avaliar a segurança do produto investigado. Nessa fase, a medicação é testada em pequenos grupos (10 a 30 pessoas), geralmente, de voluntários sadios. Se o produto se mostrar seguro, pode passar de fase.

Fase 2 – O número de pacientes que participam desta fase é maior (70 a 100). Aqui, o objetivo é avaliar a eficácia da medicação, isto é, se ela funciona para tratar determinada doença, e também obter informações mais detalhadas sobre a segurança (toxicidade). Somente se os resultados forem bons é que o medicamento será estudado sob forma de um estudo clínico.

Fase 3 – É quando um novo tratamento é comparado com o padrão existente no mercado. O número de pacientes aumenta para 100 ou milhares. Geralmente, os estudos dessa fase são randomizados, isto é, os pacientes são divididos em dois grupos: o grupo controle (recebe o tratamento padrão) e o grupo investigacional (recebe a nova medicação). A divisão entre os grupos é feita sob a forma de um sorteio. Assim, os pacientes que entram em estudos fase 3 têm chances iguais de cair em um ou outro grupo de estudo. Como se trata de uma fase decisiva na validação, pode demorar meses ou ano para ser concluída.

Fase 4 – São estudos para confirmar se os resultados obtidos na fase 3 são de fato aplicáveis em uma grande parte da população doente. Nesta fase, o medicamento já foi aprovado para ser comercializado. A vantagem dos estudos fase 4 é que eles permitem acompanhar os efeitos dos medicamentos em longo prazo.

(AFP)

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