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A fé católica é um tipo de autoajuda?

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Mehmet Alci

Padre Paulo Ricardo - publicado em 02/06/17

Católico, você precisa saber explicar isso

Há uma noção geral, nos dias de hoje, de que a fé religiosa seria apenas um sentimento. Daí que muitos pregadores, inclusive católicos, se esforcem amiúde para tocar os corações e arrancar lágrimas do público que devotamente acode às suas pregações, à procura de alguma solução para seus problemas, mais temporais que propriamente sagrados: a conta a pagar, o namoro que terminou, a inveja da vizinha, e por aí vai…

Esse tipo de vivência religiosa não deixa de gerar um problema: uma fé puramente sentimental, por mais “fervorosa” que seja, não exige obediência a qualquer revelação objetiva, dado que sua motivação parte propriamente de uma experiência particular, que pode variar segundo as diferentes condições e circunstâncias da pessoa. A consequência disso é lógica: se a fé é tão somente expressão de um sentimento ou de uma experiência íntima, como sugerem alguns teólogos modernos, então qualquer sentimento ou experiência religiosa são válidos. Como dizer, portanto, que o “batismo no Espírito Santo” é mais verdadeiro que as manifestações do terreiro de umbanda ou que as bênçãos de Alá?

Note-se, por isso, uma coisa: não é estranha a má vontade com que muitos olham para o fenômeno religioso, uma vez que ele se torna mais um delírio de mulheres apaixonadas do que atitude de gente sensata. O ser humano é por natureza um ser racional; ele naturalmente procura saber as causas dos fenômenos que se apresentam diante de seus olhos. Se a causa da fé é apenas um “um movimento do coração” — e não um dom gratuitamente dado por Deus, pelo qual o homem move racionalmente a sua vontade às verdades eternas —, iniciada está a marcha para o ateísmo, cujo primeiro passo foi dado 500 anos atrás por um monge agostiniano chamado Martinho Lutero.

Lutero foi quem primeiro mudou o conceito de fé, associando-o a “uma atitude interior” ou “disposição do sujeito”, pela qual ele se relaciona subjetivamente com o conteúdo da Revelação. Em sua tradução da Carta aos Hebreus, o pai do protestantismo traduziu ὑπόστασις (“hipóstase”) , o termo grego utilizado por São Paulo para definir a fé, por firmeza: “Fé é: permanecer firmes naquilo que se espera, estar convencidos daquilo que não se vê” (11, 1). Embora essa interpretação não seja de todo errada, ela não reflete o sentido mais profundo da palavra “hipóstase”, tal como os Santos Padres e a Escolástica sempre a entenderam e ensinaram aos fiéis: “A fé não é só uma inclinação da pessoa para realidades que hão-de vir, mas estão ainda totalmente ausentes; ela dá-nos algo” [1].

Todavia, o subjetivismo de Lutero acabou prevalecendo na exegese bíblica, o que ocasionou, nos séculos seguintes, toda uma amálgama de heresias e contestações da Tradição, da Sagrada Escritura e do Magistério da Igreja, conforme denunciou São Pio X: “Neste caminho os protestantes deram o primeiro passo; os modernistas o segundo; pouco falta para o completo ateísmo” [2].

Qual seria, então, a definição correta de fé? Ora, o texto exato da Carta aos Hebreus é este: “A fé é ‘hipóstase’ das coisas que se esperam; prova das coisas que não se vêem”. A palavra “hipóstase”, aqui, quer dizer substância, isto é, “o que está debaixo”. Esta é, portanto, a tradução correta do ensinamento de São Paulo, de acordo com os manuscritos da Igreja primitiva: ” Est autem fides sperandarum substantia rerum, argumentum non apparentium”. A fé, neste sentido, é algo mais que um sentimento; trata-se de um contato concreto e efetivo com as realidades divinas, uma relação com o ser, com a substância de Deus. E é por essa razão, ou seja, pela autoridade do ser de Deus, que o homem move racionalmente a sua vontade para o conteúdo das verdades reveladas.

O homem é movido pela fé porque ela o coloca efetivamente diante das maravilhas da eternidade, de modo que seu agir passa concretamente a ter outro fundamento. É por esse novo fundamento que tantos santos se entregaram ao martírio ou abandonaram todos os bens temporais para assumirem um estilo de vida totalmente austero. Ninguém pode mover-se a renúncias e sacrifícios tão eminentes apenas por um sentimento ou disposição interior. De fato, o ser humano precisa de mais que arrepios e lágrimas para deixar-se pregar em uma cruz, para beijar leprosos ou para viver o celibato sacerdotal.

Com efeito, pode-se enquadrar a fé dentro de um dos três gêneros de conhecimento humano. Há o conhecimento por meio da evidência direta, como também por meio de demonstração racional. A fé divina, por sua vez, pertence àquele conhecimento por testemunho de alguém; neste caso, o testemunho inequívoco da própria pessoa de Cristo. Pela evidência direta e por meio de demonstração racional, o homem consegue demonstrar a existência de Deus, como fizeram os primeiros filósofos pagãos ou mesmo cristãos na chamada Teodiceia. É preciso, no entanto, que Deus ilumine a razão humana a fim de que ela chegue àquele novo fundamento do Deus Uno e Trino e das “provas” de suas promessas: “Se alguém disser que a fé divina não se distingue do conhecimento natural de Deus e da moral, e que, portanto, para a fé divina não se requer que a verdade revelada seja crida por causa da autoridade de Deus que revela, seja anátema” [3].

Eis aí, portanto, o que devem fomentar os pregadores católicos. Eles devem ensinar os fiéis a pedirem o dom da fé divina, pela qual a experiência concreta com o fundamento de Deus torna-se acessível. É preciso buscar antes o Deus das consolações que as consolações de Deus. Se os santos choravam quando ouviam falar da Paixão de Cristo, não era simplesmente por um sentimento piedoso, mas pelo conhecimento fundamental de que as chicotadas contra o Salvador tinham como causa primeiríssima os pecados da humanidade.

Em última análise, a fé também é o início da vida eterna. Não é para espantar, portanto, que o inimigo de Deus queira iludir os cristãos, afastando-os da verdadeira fé e, por conseguinte, daquele fundamento, daquela substância que os leva a abandonar tudo pelo Reino dos Céus. Por isso, longe de buscar aplausos e lágrimas copiosas, o que o pregador católico deve colocar no coração dos fiéis é aquele desejo por um fundamento novo, incentivando-os a viverem inteiramente da graça, e não a partir de sentimentos, que são efêmeros. Foi esta experiência de fé verdadeira que arrancou Edith Stein do ateísmo e a colocou no Carmelo para tornar-se a mártir Santa Teresa Benedita da Cruz. Que teria acontecido se, em lugar do Livro da Vida, de Santa Teresa d’Ávila, a então Edith Stein houvesse lido alguns dos tantos livros de “autoajuda cristã” que circulam por aí?

(via Pe. Paulo Ricardo)

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CatólicosIgreja
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