Quando Deus se manifesta ao nosso ouvidoA Transfiguração de Jesus, presenciada por três dos seus discípulos, é assim contada pelo Evangelho de São Mateus:
Seis dias depois, Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, seu irmão, e conduziu-os à parte a uma alta montanha. Lá se transfigurou na presença deles: seu rosto brilhou como o sol, suas vestes tornaram-se resplandecentes de brancura. E eis que apareceram Moisés e Elias conversando com ele. Pedro tomou então a palavra e disse-lhe: Senhor, é bom estarmos aqui. Se queres, farei aqui três tendas: uma para ti, uma para Moisés e outra para Elias. Falava ele ainda, quando veio uma nuvem luminosa e os envolveu. E daquela nuvem fez-se ouvir uma voz que dizia: Eis o meu Filho muito amado, em quem pus toda minha afeição; ouvi-o. Ouvindo esta voz, os discípulos caíram com a face por terra e tiveram medo. Mas Jesus aproximou-se deles e tocou-os, dizendo: Levantai-vos e não temais. Eles levantaram os olhos e não viram mais ninguém, senão unicamente Jesus. E, quando desciam, Jesus lhes fez esta proibição: Não conteis a ninguém o que vistes, até que o Filho do Homem ressuscite dos mortos (Mateus 17, 1-9)
Além de ter sido uma divina manifestação visível, a Transfiguração do Senhor foi também um fenômeno místico audível – ou seja, uma acufania.
Acufania
O termo “acufania” vem dos verbos gregos akùein (“ouvir”) e phainein (“manifestar-se”). Ele indica a manifestação sobrenatural percebida como experiência sensorial sonora. Abrange fatos inexplicáveis captados pelo ouvido, como o som de sinos invisíveis, músicas celestiais, locuções espirituais, teofanias.
No Antigo Testamento
Javé se manifesta assim no Monte Sinai:
“E eis que, ao terceiro dia, no frescor da manhã, houve trovões, relâmpagos, uma espessa nuvem sobre a montanha e um fortíssimo som de trombeta […]. O Monte Sinai estava coberto de fumaça, porque sobre ele havia descido o Senhor no fogo e sua fumaça subia como a de uma fornalha; e toda a montanha tremia violentamente. O som da trombeta se tornava cada vez mais intenso: Moisés falava e Deus lhe respondia com voz de trovão” (Ex 19,16-19).
“Todo o povo percebia os trovões e relâmpagos, o som da trombeta e o monte fumegante. O povo viu, foi tomado de tremor e se manteve distante” (Ex 20,18).
O profeta Daniel também experimentou o fenômeno:
“Enquanto eu, Daniel, considerava a visão e tentava compreendê-la, eis que diante de mim surgiu em pé alguém com aspecto de homem; percebi a voz de um homem que clamava e dizia: ‘Gabriel, explica-lhe a visão’” (Dn 8,15-16).
No Novo Testamento
Durante o batismo de Jesus, uma voz vinda do Céu declarou:
“Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo” (Mt 3,17).
A mesma voz do céu se manifesta na Transfiguração (cf. Mt 17,5; Mc 9,7), conforme a passagem transcrita ao início deste texto.
No dia de Pentecostes, foi o Espírito Santo que se manifestou:
“E, de repente, veio do céu um barulho, como de um vento forte, e encheu toda a casa onde eles estavam” (Atos 2,2).
E, no início do Apocalipse, o autor relata:
“Eu, João […] caído em êxtase, no dia do Senhor, ouvi por detrás de mim uma voz poderosa, como de trombeta, que dizia: ‘O que vês, escreve-o em um livro […]’. Eu me voltei para ver quem me falava” (Ap 1,10-12).
Para entender o fenômeno
As acufanias pertencem à ordem do sensível e são percebidas pela audição. Vozes, sons, ruídos inexplicáveis podem vir de alguma fonte externa desconhecida ou de alucinações auditivas. São fenômenos fisiológicos, classificados como percepções auditivas, provenientes de vibração acústica. Toda sensação auditiva (identificável e mensurável) vem de uma fonte material inscrita nas leis naturais. Não há razão para se acreditar que Deus não possa intervir num processo natural que Ele mesmo criou.
As acufanias supõem um favor inteiramente gratuito de Deus. Um som ou voz não implica, automaticamente, alguma teofania. Esses fenômenos, que são “gratiae gratis datae”, podem ser sinais de Deus a uma pessoa ou grupo de pessoas em dado momento da história para levar a cabo o seu plano de salvação. Se vêm de Deus, certamente superam o medo natural e trazem grande paz interior.
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Com informações do “Dicionário de fenômenos místicos cristãos”, de Luigi Borriello e Raffaele Di Muro