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O dia em que Gabriel García Márquez e João Paulo II conversaram sobre São João da Cruz

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Dolors Massot - publicado em 15/12/17

O escritor foi pedir ajuda ao Papa e deixou algumas notas em suas memórias, que agora se tornaram públicas

O escritor colombiano Gabriel García Márquez estava preocupado com os desaparecidos do regime ditatorial na Argentina. Era fim de 1978 e a estimativa era de que as vítimas beiravam 10.000 pessoas. Na esfera internacional, nenhum país ou autoridade relevante solicitava uma investigação rigorosa sobre o assunto. Por isso, Gabo, como era conhecido o escritor, decidiu recorrer ao Papa.

Ele estava, pelo que consta em suas memórias, cheio de preconceitos sobre o poder temporal da Igreja. Mas era movido por uma grande vontade de que a justiça fosse feita na Argentina. Para sua contrariedade, João Paulo I acabara de morrer, mas, em seguida o cardeal Paulo Evaristo Arns conseguiu-lhe uma audiência com João Paulo II.

“Naquela atmosfera imóvel não se sentia Deus, como eu tinha desejado, mas se sentia o poder de seus ministros”, escreveu Gabo sobre o Vaticano. Ele esperou “em uma sala pequena, com poltronas de veludo e frisos dourados”, até que o Papa apareceu. “De cara, ouviu-se um carrilhão invisível, cujo som não poderia vir de nada além do ouro, e um homem clareado pela luz oblíqua da proximidade do Natal, com uma túnica e um solidéu deslumbrantes, abriu a porta do fundo com sua própria mão…”

A mudança

Mas Gabriel García Márquez mudou seu ponto de vista sobre o Papa por dois motivos. O primeiro foi porque ele ficou surpreso com a enorme semelhança entre Karol Wojtila e o escritor Milan Kundera, inclusive os gestos e o timbre da voz. O segundo, e de maior importância: ele ficou comovido com a atitude do Papa, que colocou a mão sobre o seu ombro com força para acompanhá-lo à sala onde teriam uma audiência de 10 minutos.

João Paulo II começou, então, a conversar em espanhol, já que logo iria fazer sua viagem pastoral ao México (26 de janeiro de 1979). García Márquez perguntou ao Papa por que ele conhecia tão bem a língua espanhola. Naquele momento, o Papa lhe explicou que tinha feito sua tese de doutorado sobre São João da Cruz e, ao começar a estudar a poesia do místico, se empenhou muito para poder ler os originais em espanhol. Com certa imprecisão, Gabo lembra: “Ele me contou, no começo, que tinha estudado castelhano porque estava escrevendo sua tese sobre São João da Cruz e queria lê-lo na língua original.”

O conhecimento da língua espanhola e de São João da Cruz se fizeram patentes no México e, algum tempo depois, na viagem de João Paulo II à Espanha, em 1982, onde o Papa celebrou, em Ávila, a missa do quarto centenário da morte de Santa Teresa de Jesus, no dia primeiro de novembro. Em sua passagem por Segóvia, João Paulo II visitou a tumba de São João da Cruz no Convento das Carmelitas Descalças. Era dia quatro de novembro.

Gabo percebeu que já tinham passado cinco minutos de audiência com o Papa e ele não tinha falado nada sobre os desaparecidos da Argentina. Por isso, entregou logo a carta em francês que resumia o horror e o pedido de justiça. João Paulo II foi consentindo. O Nobel de Literatura anotou: “Embora fosse uma leitura dramática, [o Papa] não perdeu em nenhum instante seu bom sorriso, e, ao final, me devolveu a carta como se regressasse de uma viagem que conhecia de sobra e me disse em francês fluente: “Isto é idêntico à Europa oriental”.

Para Gabo, que tinha entrado no Vaticano com certo receio, aquela experiência não lhe abalou: “À medida que aquela lembrança se sedimenta em minha memória, eu a invoco menos como uma derrota sem batalha e mais como uma recordação de infância que merece ser contada”, conclui em suas memórias.

O texto completo de Gabriel García Márquez pode ser lido na revista Diners, que publicou um especial sobre Gabo em 2014 (em espanhol).

Os arquivos de Gabriel García Márquez foram digitalizados pelo Harry Ransom Center da Universidade de Texas e já se tornaram públicos.

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