O arrepiante depoimento do menino pobre e humilhado que hoje reza de joelhos no estádio como craque da Copa: “Eu não podia ver a minha mãe vivendo daquele jeito”Reproduzimos a seguir um depoimento impactante de Romelu Lukaku, o craque da Seleção da Bélgica que, nesta Copa do Mundo, vem chamando as atenções do planeta pelo talento no futebol e pelo testemunho de fé espontânea: viralizou nas redes sociais a imagem dele, de joelhos em campo, rezando ao lado de outro atleta, o panamenho Fidel Escobar, após a vitória da Bélgica sobre o Panamá por 3×0 durante a fase de grupos.
A história de Lukaku é a história de quem resistiu ao vitimismo e perseguiu uma promessa de superação feita diante da própria consciência. Se por um lado é possível notar o peso da reação às humilhações sofridas, por outro é evidente o desejo firme e disciplinado de fazer render o próprio talento, assumindo-o como uma responsabilidade perante o próprio futuro e o da sua família.
Não se trata de incentivar crianças a cultivarem o sonho do estrelato no futebol. Essa ilusão se transforma em decepção e engano para centenas de milhares de crianças e adolescentes todos os anos em dezenas e dezenas de países, tanto pobres quanto ricos. O incentivo que surge do depoimento de Lukaku não é à busca ilusória da fama, do desenfreio passional e do esbanjamento de milhões em frivolidades, mas sim à busca da realização do próprio talento, seja ele qual for, mesmo em meio às circunstâncias aparentemente mais fadadas ao fracasso e à injustiça, pela força de um propósito pessoal de superação, dignidade e responsabilidade.
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Como o futebol mudou a minha vida
por Romelu Lukaku
Eu me lembro do instante exato em que fiquei sabendo que a gente estava na miséria. Ainda consigo enxergar a minha mãe do lado da geladeira e o olhar dela naquele dia.
Eu tinha 6 anos de idade e cheguei em casa pra almoçar, no intervalo da escola. Minha mãe tinha a mesma coisa pra gente comer todos os dias: pão e leite. Quando você é criança, você nem pensa sobre isso. Mas hoje eu sei que aquilo era a única coisa que a gente conseguia pagar.
Naquele dia eu cheguei em casa, entrei na cozinha e vi a minha mãe do lado da geladeira com a caixa de leite, como sempre. Mas, daquela vez, ela estava misturando alguma coisa no leite. Ela estava balançando a caixa, sabe? Eu não entendi aquilo. Aí ela trouxe o almoço e sorriu como se estivesse tudo bem. Mas eu notei na hora o que estava acontecendo.
Ela estava misturando água com o leite. A gente não tinha dinheiro nem para fazer o leite durar a semana inteira. A gente estava na miséria. Não só pobre: na miséria.
O meu pai foi jogador profissional de futebol, mas estava em fim de carreira e o dinheiro tinha acabado. A primeira coisa que a gente perdeu foi a TV a cabo. Adeus futebol. Adeus programas esportivos. Adeus sinal.
Quando eu chegava em casa à noite, a luz estava apagada. Cada vez que eles cortavam a luz, a gente ficava duas, três semanas sem.
Eu queria tomar banho e não tinha água quente. Minha mãe esquentava uma chaleira no fogão e eu ficava de pé, no banheiro, jogando água quente na minha cabeça com um copo.
Tinha vezes que a minha mãe precisava pedir pão “emprestado” na padaria do fim da rua. Os padeiros me conheciam, conheciam o meu irmão, então eles deixavam a minha mãe pegar uma fatia de pão na segunda e pagar na sexta.
Eu sabia que a nossa situação era difícil, mas quando vi a minha mãe misturando água no leite, aí eu entendi que já era, sabe? A nossa vida era aquilo.
Eu não disse nenhuma palavra. Não queria deixar a minha mãe pior. Só comi o meu almoço. Mas juro por Deus que eu fiz uma promessa pra mim mesmo naquele dia. Era como se alguém tivesse estalado os dedos e me acordado. Eu sabia exatamente o que eu tinha que fazer e o que eu ia fazer.
Eu não podia ver a minha mãe vivendo daquele jeito. Não, não, não. Eu não ia aceitar.
No futebol, as pessoas gostam sempre de falar de força mental. Bom, eu sou o cara mais forte que você vai conhecer na vida. Porque eu me lembro que me sentava no escuro com o meu irmão e a minha mãe, rezando, pensando, acreditando, sabendo que um dia iria acontecer.
Por um tempo eu não contei a minha promessa pra ninguém. Mas, às vezes, eu chegava em casa da escola e achava a minha mãe chorando. Foi aí que eu finalmente falei pra ela um dia:
“Mãe, isso vai mudar. Você vai ver. Eu vou jogar futebol no Anderlecht e vai ser logo. Vai ficar bom pra gente. Você não vai mais ter que se preocupar assim”.
Eu tinha 6 anos de idade.
Perguntei para o meu pai: “Quando é que eu posso começar a jogar futebol profissional?”
Ele disse: “Quando você tiver 16 anos”.
Eu respondi: “Tá, então quando eu tiver 16”.
Aquilo ia acontecer. Ponto final.
Eu quero dizer uma coisa pra você: cada jogo que eu disputei foi uma final. Quando eu jogava no parque, era uma final. Quando eu jogava no recreio do jardim de infância, era uma final. Eu estou falando sério. Eu tentava arrancar o couro da bola toda vez que eu chutava. Força total. Eu não apertava o R1, irmão. Não tinha chute de leve. Eu não tinha o novo Fifa. Eu não tinha Playstation. Eu não estava brincando. Eu queria derrotar você.
Quando eu comecei a ficar mais alto, alguns técnicos e pais começaram a me encher. Nunca vou me esquecer da primeira vez em que eu ouvi um dos adultos dizendo: “Ei, você, quantos anos você tem? Você nasceu em que ano?”
Quando eu tinha 11 anos, jogava no juvenil do Lièrse e um dos pais do outro time tentou me impedir de entrar no gramado. Desse jeito mesmo. Ele dizia: “Esse garoto tem quantos anos? Cadê a identidade dele? De onde é que ele veio?”
Eu pensei comigo: “Como é que é, de onde é que eu vim? Eu nasci na Antuérpia! Eu sou da Bélgica!”
O meu pai não tava lá porque não tinha carro pra me levar. Eu tava totalmente sozinho e tinha que me defender. Peguei a minha identidade na mala e mostrei pra todos os pais. Eles passaram a identidade de mão em mão pra conferir e eu me lembro do meu sangue fervendo enquanto eu pensava: “Agora é que eu vou derrotar o teu filho mais ainda. Eu já ia, mas agora eu vou destruir ele. Você vai levar o seu filho chorando pra casa”.
Eu queria ser o melhor jogador de futebol da história da Bélgica. Essa era a minha meta. Nem bom, nem ótimo: o melhor. Eu jogava com muita raiva por causa de muitas coisas; por causa dos ratos que moravam no nosso apartamento; porque eu não podia assistir à Liga dos Campeões; por causa do jeito que os outros pais olhavam pra mim.
Eu estava numa missão. Quando eu tinha 12 anos, fiz 76 gols em 34 jogos. Fiz todos eles usando as chuteiras do meu pai. Quando os nossos pés ficaram do mesmo tamanho, deu pra gente compartilhar as chuteiras.
Um dia liguei pro meu avô materno. Ele era uma das pessoas mais importantes da minha vida. Ele era a minha ligação com o Congo, a origem da minha mãe e do meu pai. Um dia eu estava no telefone falando com ele e disse: “Eu tô indo bem. Fiz 76 gols e a gente ganhou o campeonato. Eu tô chamando a atenção dos times grandes”.
Ele sempre queria que eu contasse dos meus jogos, mas, daquela vez, ele estava estranho. Ele falou: “Que bom, Rom, isso é muito bom. Mas será que você me faz um favor?”
Eu respondi: “Faço. Que favor?”
Ele disse: “Você cuida da minha filha, por favor?”
Eu fiquei confuso. O que o vovô queria dizer?
Respondi: “Da mamãe? Sim, a gente tá bem. Tá tudo certo”.
Ele repetiu: “Promete pra mim. Você me promete? Cuida da minha filha. Cuida dela pra mim, ok?”
Eu falei: “Cuido, vovô. Entendi. Eu prometo”.
Cinco dias depois, ele morreu. Foi aí que eu entendi o que ele queria me dizer.
Fico muito triste pensando nisso, porque eu queria que ele tivesse vivido mais quatro anos pra me ver jogar no Anderlecht. Pra ver que eu cumpri a minha promessa. Pra ver que tudo ia ficar melhor pra gente.
Eu disse pra minha mãe que ia conseguir aos 16 anos. Me atrasei por 11 dias.
24 de maio de 2009. Final do campeonato. Anderlecht contra Standard Liège. Aquele foi o dia mais louco da minha vida. Mas vamos voltar um pouco antes.
No começo da temporada, eu mal estava jogando no sub-19 do Anderlecht. O treinador me colocou na reserva. E eu pensava: “Como é que eu vou conseguir um contrato profissional com 16 anos se eu ainda tô no banco no sub-19?”.
Então fiz uma aposta com o treinador. Falei pra ele: “Eu garanto pra você. Se você me colocar pra jogar, vou fazer 25 gols até dezembro”.
Ele riu. Literalmente riu da minha cara.
Eu respondi: “Então vamos fazer uma aposta”.
Ele disse: “Tá bom, mas se você não fizer 25 gols até dezembro, você vai pra reserva”.
Eu falei: “Fechado. Mas, se eu fizer, você vai limpar todas as minivans que levam a gente pra casa depois do treino”.
Ele topou: “Fechado”.
Eu: “E mais uma coisa: você vai fazer panquecas pra nós todos os dias”.
Ele: “Ok. Feito”.
Foi a aposta mais idiota que aquele homem já fez. Eu completei os 25 gols em novembro. A gente comeu as panquecas bem antes do Natal, meu irmão. Aprendam isso: não mexam com um garoto que passa fome.
Assinei o meu contrato profissional com o Anderlecht no meu aniversário, dia 13 de maio. De lá fui direto comprar o novo Fifa e um pacote de TV a cabo. Era o final da temporada e eu fui pra casa aproveitar. Mas o campeonato belga estava louco naquele ano, porque o Anderlecht e o Standard Liège terminaram com a mesma pontuação. Ia ter uma final de ida e volta pra decidir o título.
O jogo de ida eu assisti em casa como torcedor. Na véspera do jogo de volta, recebi uma ligação do técnico dos reservas.
“Rom, o que você tá fazendo?”
“Saindo pra jogar bola no parque”.
“Não, não, não, não, não. Faz as malas. Agora”.
“Por quê? O que eu fiz?”
“Não, não, não. Vai agora pro estádio. O time principal quer você agora”.
“Como é que é? Eu?!?”
“É. Vem. Agora”.
Eu corri pro quarto do meu pai: “Levanta aí, pai, rápido! A gente tem que correr”!
E ele: “Hã? Correr pra onde?”
E eu gritei: “ANDERLECHT, CARA!”
Nunca vou me esquecer. Cheguei no estádio e corri para o vestiário. O roupeiro perguntou: “Que número você quer, garoto?”
Eu falei: “Me dá a 10”.
Ha ha ha! Sei lá, acho que eu era novo demais pra ter medo.
E ele: “Pra jogadores da base o número é acima de 30”.
Eu disse: “Tá. 3 mais 6 dá 9, é um número legal, então me dá a 36”.
Naquela noite, no hotel, os jogadores adultos me fizeram cantar uma música no jantar. Nem lembro o que eu cantei. A minha cabeça estava a mil.
De manhã, meu amigo bateu na porta da minha casa pra saber se eu queria jogar bola e a minha mãe falou: “Ele saiu pra jogar”.
Meu amigo: “Onde?”
E ela: “Na final”.
Saímos do ônibus no estádio e cada jogador usava um terno bacana. Menos eu. Saí do ônibus usando um agasalho horrível de treino e todas as câmeras de TV filmaram a minha cara. A caminhada até o vestiário era de uns 300 metros, mas durou uns 3 minutos. Quando eu coloquei o pé no vestiário, meu telefone começou a explodir. Todo mundo tinha me visto na TV. Recebi 25 mensagens em 3 minutos. Meus amigos estavam surtados.
“Irmão, POR QUE VOCÊ TÁ NO JOGO?!”
“Rom, qual é? POR QUE VOCÊ TÁ NA TV?”
A única mensagem que eu respondi foi para o meu melhor amigo. “Irmão, não sei se eu vou jogar. Não sei o que tá acontecendo. Mas fica assistindo”.
Aos 18 minutos do 2° tempo, o treinador me colocou em campo. Eu estava entrando em campo pelo time principal do Anderlecht aos 16 anos e 11 dias.
Nós perdemos a final. Mas eu já estava no céu. Eu cumpri a promessa que tinha feito pra minha mãe e pro meu avô. Aquele foi o momento em que eu tive a certeza de que tudo ia ficar bom pra gente.
Na temporada seguinte, eu ainda estava no último ano do ensino médio quando jogava na Liga Europa. Eu levava uma mala grande pro colégio pra pegar o voo no final da tarde. Vencemos o campeonato belga com folga. Foi uma doideira!
Eu esperava, mesmo, que tudo isso acontecesse, mas acho que não tão rápido. De repente, a imprensa estava me colocando lá em cima e jogando muita expectativa nas minhas costas. Especialmente na Seleção. Por algum motivo, eu não estava jogando bem pela Bélgica. Não estava dando certo. Mas espera um pouco, eu tinha 17 anos! 18! 19!
Quando as coisas iam bem, eu lia os jornais e eles me chamavam de Romelu Lukaku, o atacante belga. Quando as coisas não iam bem, eles me chamavam de Romelu Lukaku, o atacante belga descendente de congoleses.
Se você não gosta do meu jogo, tudo bem. Mas eu nasci aqui. Eu cresci na Antuérpia, em Liège e em Bruxelas. Eu sonhava em jogar pelo Anderlecht. Eu sonhava em ser Vincent Kompany. Eu começo uma frase em francês e termino em holandês e adiciono um pouco de espanhol ou português ou lingala, depende do lugar onde eu estou.
Eu sou belga. Nós todos somos belgas. É isso o que é legal nesse país, não é isso?
Eu não sei por que algumas pessoas no meu próprio país querem me ver fracassar. Não sei mesmo. Quando eu fui para o Chelsea e não estava jogando, eles davam risada de mim. Quando fui emprestado para o West Brom, eles davam risada de mim.
Mas tudo bem. Essas pessoas não estavam comigo quando a gente colocava água no cereal. Se vocês não estavam lá comigo quando eu não tinha nada, vocês não vão conseguir me entender.
Sabe o que é engraçado? Eu perdi dez anos de Liga dos Campeões quando era criança. A gente não tinha dinheiro. Eu chegava na escola e todo mundo estava falando da final, mas eu nem sabia o que tinha acontecido. Me lembro que, em 2002, quando o Real Madrid jogou contra o Bayer Leverkusen, todo mundo falava “daquele voleio, que voleio!”. E eu tinha que fingir que sabia do que eles tavam falando. Duas semanas depois, a gente estava na aula de computação e um dos meus amigos baixou o vídeo da internet. Aí eu finalmente vi o Zidane chutar a bola no ângulo com a perna esquerda.
Naquele verão, eu fui pra casa assistir o Ronaldo Fenômeno na final da Copa do Mundo. Todo o resto da Copa é só uma história que eu ouvi dos outros na escola. Eu também me lembro dos buracos que tinha nos meus sapatos em 2002. Buracões. Doze anos depois, eu estava jogando a Copa do Mundo.
Agora eu jogo mais uma Copa do Mundo e você sabe de uma coisa? Dessa vez eu vou me divertir. A vida é curta demais pra estresse e drama. As pessoas podem dizer o que elas quiserem do nosso time e de mim.
Quando a gente era criança, não tinha dinheiro pra ver o Thierry Henry na TV. Agora eu aprendo com ele todos os dias na Seleção. Eu tô do lado da lenda, em carne e osso, e ele me ensina a atacar os espaços do jeito que ele fazia. O Thierry deve ser o único cara do mundo que vê mais futebol que eu. A gente debate tudo. A gente senta e debate até sobre a segunda divisão da Alemanha.
Eu: “Thierry, viu o esquema de jogo do Fortuna Düsseldorf?”
Ele: “Vai ser besta, cara, claro que eu vi!”
É a coisa mais legal do mundo pra mim. Eu só queria que o meu avô estivesse vivo pra testemunhar isso.
E não estou falando da Primeira Liga inglesa. Nem do Manchester United. Nem da Liga dos Campeões. E nem da Copa do Mundo.
Não é disso que eu tô falando. Eu queria que ele estivesse vivo pra ver a vida que a gente tem agora. Eu gostaria de ter mais uma conversa com ele, pelo telefone, pra que ele soubesse…
“Viu só? Eu falei. A sua filha tá bem. A gente não tem mais rato no apartamento. Ninguém mais dorme no chão. Não tem mais preocupação. A gente tá bem agora. Estamos bem. E eles não precisam mais checar a minha identidade. Agora eles sabem o meu nome”.