Parece, e parece com insistência e consistência, que optamos por ser uma sociedade poderosamente hipócrita e leviana
Em 2014, a Seleção brasileira protagonizou o vexame indelével do 7×1 em sua própria casa, em plena Copa vendida pelos marqueteiros do governo corrupto do Palácio do Planalto como “a Copa das Copas” – um extraordinário desperdício de bilhões de reais escorado na mentira deslavada de que o espetáculo de atrasos, politicagens, incompetência e planejamento amador se transformaria em legado de infraestrutura, transporte público de excelência, urbanismo de primeiro mundo e imagem altamente positiva do país aos olhos dos seus cidadãos e de todo o planeta.
Como resposta a tão lustrosa cara de pau, nem é preciso recordar o que a maioria das grandes empreiteiras de fato “construiu” neste país ao longo de décadas de conluio com quadrilhas governamentais de todos os espectros ideológicos. Basta constatar que, faltando dez dias para o encerramento da Copa de 2018, ainda há obras da Copa de 2014 que não apenas não foram inauguradas como sequer foram finalizadas no simples papel – e isso que continuamos pagando a conta estratosférica também do simples papel.
Na edição deste ano, a alardeada “brasilidade” voltou aos destaques da vergonha planetária graças ao comportamento dos não poucos “torcedores” que, devidamente fantasiados de verde e amarelo, foram à Rússia para assediar mulheres, gravar a própria estupidez e compartilhá-la com o mundo em meio a gargalhadas de deboche.
Não satisfeitos com um fiasco atrás do outro, estamos agora potencializando mais uma demonstração ostensiva da tal “natureza alegre do brasileiro” – eufemismo detestável para a nossa ridícula superficialidade e crônica propensão ao papel de bobos.
Trata-se do “meme” criado às custas de um torcedor russo chamado Yuri Torsky.
Yuri ganhou “fama” nas redes sociais e nas TVs brasileiras a partir do jogo entre Brasil e México pelas oitavas de final. Motivo? O nosso vergonhoso (ah, mas “alegre”) preconceito contra o aspecto físico dos outros.
Sempre prontos a transformar os outros em piadas que dizem muito mais sobre nós mesmos do que sobre os alvos das nossas risadas histéricas, desta vez conseguimos nos superar com um “detalhe” que deveria ser estrondosamente escandaloso, mas que, sem surpresas, vem passando despercebido: a “alegre” naturalidade com que Yuri Torsky foi apelidado, por nós, de nada menos que “Psicopata do Hexa“.
Leviandade mais estarrecedora do que esta, só a das dezenas de veículos “profissionais” de mídia que adotaram e potencializaram esse infame apelido – incluindo vários (auto)considerados “grandes” jornais e canais de TV.
Aparentemente, não restou muita alternativa ao jovem russo além de tolerar a “brincadeira” e sujeitar-se a ela com bom humor, levando na esportiva o que presumivelmente passa longe de lhe ser agradável: ver a própria imagem associada a uma descrição que ninguém deseja para si – nem por “brincadeira”.
A psicopatia é um grave transtorno de personalidade, reconhecido como enfermidade pela Classificação Internacional de Doenças, e está ligada, com grande frequência, a comportamentos altamente agressivos que representam risco objetivo para a segurança pública. Na quase totalidade dos casos em que um psicopata se torna notícia é porque ele cometeu crimes hediondos que vão da tortura sádica ao assassinato premeditado e cruel.
“Psicopata” não é um apelido engraçado. É um insulto cuja gravidade deveríamos discernir com suficiente clareza para enxergar de imediato a sua completa incompatibilidade com a sadia brincadeira.
Não é engraçado apelidar um inocente de assassino. De estuprador. De torturador. De pedófilo. “Ó lá, que engraçado, o pedófilo do hexa, hahaha“.
Parece, no entanto, que não discernimos.
Parece, e parece com insistência e consistência, que optamos por ser uma sociedade poderosamente hipócrita e leviana, em que simulamos furibunda indignação diante de vírgulas politicamente incorretas ao mesmo tempo em que tachamos de politicamente corretos aqueles que nos recordam que certos conceitos, posturas e formas elementares de respeito ao próximo requerem um mínimo de seriedade.
Sei, aliás, que estarei entre os tachados de politicamente corretos por se atreverem a não achar graça neste insulto. “Que cara chato, não sabe nem brincar“. Com assuntos sérios, não sei. E não vou aprender. Mais chato ainda, vou finalizar com uma pergunta que devolve a ofensa aos seus legítimos donos:
Será mesmo, “alegres” brasileiros, que o “psicopata do hexa” é ele?