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Um adeus devastador no fogo da Grécia: “Tenho medo, mamãe, mas vou ser forte”

fogo Kineta 23 julho 2018

VALERIE GACHE I AFP

Francisco Vêneto - publicado em 26/07/18

A carta arrepiante da mulher que perdeu o marido e os dois filhos no absurdo incêndio - causado provavelmente por especulação imobiliária

O jornalista grego Babis Papanagiotou deixou o mundo estarrecido nesta semana ao ler a carta escrita pela mulher que perdeu seus dois filhos e o marido nas labaredas devastadoras que eliminaram do mapa a vila de Mati, nas proximidades de Atenas.

O incêndio que vem consumindo a região da Ática desde 23 de julho teve, segundo a imprensa local, muito prováveis causas dolosas: entre as principais hipóteses, a especulação imobiliária.

O primeiro foco irrompeu nos arredores da capital e imediatamente se espalhou, sob ventos muito fortes, até as áreas costeiras, onde varreu várias localidades em que as ordens de evacuação não chegaram a tempo. Crianças, idosos, adultos e animais se viram em questão de minutos tentando fugir do inferno, de carro ou a pé, e encontrando, quase sempre, as ruas antigas e estreitas engarrafadas de dezenas e dezenas de outras pessoas aprisionadas na mesma armadilha. São povoados de veraneio, frequentados principalmente pelos próprios gregos, espremidos em emaranhados de vielas entre colinas e mar. Cercados, são engolidos quase subitamente por chamas incontornáveis.

A tragédia da família Fytros

FYTROS GREECE
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Uma das muitas histórias que continuam a surgir literalmente das cinzas, numa Grécia devastada, é a da família Fytros: a mulher, a única sobrevivente, tentou de todas as formas salvar o marido e os dois filhos.

“Eu sei que meu marido Grigoris fez todo o possível para salvá-los. E sei que, se ele não conseguiu, é simplesmente porque não foi da vontade do Senhor. Eu ainda tenho a impressão de ouvir com os meus ouvidos a vozinha trêmula do Andreas: ‘Tenho medo, mamãe, estou muito preocupado, mas vou ser forte. Mas você não venha para cá, mãe. Eu não quero que você venha, tudo está bloqueado pelo fogo, você não vai conseguir’. Eu tentei me aproximar, tentei chegar até eles. Tentei durante quatro horas, de todas as formas possíveis. Depois, quando tive que abandonar a última tentativa, pensei que talvez fosse melhor não arriscar, para poder ajudar o meu marido e os meus filhos, se tivesse sido necessário”.

No entanto, tudo o que ela conseguiu foi descobrir que primeiro morreu Evita, sua menina, depois Grigoris, seu esposo, e Andreas, o filho caçula.

As chamas e rajadas de vento que só precisaram de uma tarde para destruir vilarejos inteiros da velha Ática destruíram também, em minutos de horror, uma vida inteira construída em anos de amor.

“Eu não tenho mais palavras. Quando eu reconhecer os corpos dos meus meninos, vou poder dizer com certeza que perdi tudo. Abracem os seus filhos todos os dias”.

Andreas tinha 11 anos. Evita, quase 14. Grigoris, 54.

Evita já era uma promessa do ciclismo. Tanto ela quanto o irmão seguiram os passos, ou as pedaladas, do pai, antiga glória da modalidade no AEK, uma das equipes poliesportivas mais importantes de Atenas.

Informações compartilhadas em redes sociais dizem que Evita se lançou de um penhasco ao tentar escapar das chamas. Grigoris e Andreas foram cercados por um fogo que não lhes deixava nenhuma escapatória.

O que podemos dizer agora a essa jovem viúva e mãe dolorosa, tão amada a ponto de o filho de 11 anos ter-lhe implorado que não tentasse salvá-los porque ela mesma certamente morreria? Que palavras podem ser ditas a essa mulher quando ela própria só pôde dizer que não tem mais palavras? O que dizer a tantas outras mães e outros pais, a tantos irmãos, parentes e amigos que perderam de modo brutal as pessoas que mais amavam no mundo?

Onde estava Deus?

É chamativo que essa mãe e esposa devastada tenha tentado vislumbrar, do profundo do absurdo que a esmagou, o que ela mesma descreveu como “a vontade do Senhor“.

Mas que Senhor é esse, que parece um sádico, um assassino, um Deus cruel e perverso que deixa os próprios filhos arderem num fogo de inferno até morrerem de modo tão espantoso?

Não é esta, afinal, a justa e profundamente compreensível pergunta que tantos levantam no meio das tragédias? Onde é que estava Deus naquela hora, se é que estava mesmo em algum lugar?

Um dos aspectos mais intrigantes e fascinantes do cristianismo é que ele costuma responder com novas perguntas, ou, em todo caso, com parábolas e episódios que abrem uma brecha de luz, mas ainda nos deixam na penumbra para buscar a saída por nós próprios.

E não há no cristianismo um episódio mais claro-escuro que o momento em que o próprio Filho de Deus brada aos céus, na asfixia da morte de cruz sobre a colina do Calvário:

“Meu Deus! Meu Deus! Por que me abandonaste?”

Poucos momentos da vida terrena do Deus feito homem parecem ter sido mais profundamente humanos do que esse. O momento dilacerante de sentir no âmago da alma não apenas a absurda ausência de Deus, mas a própria presença dessa ausência, que consegue ser ainda mais absurda. Porque há, e bem sabemos, ausências vividamente presentes, tangíveis, tocáveis; é uma ausência que está, que está conosco, que está em nós; é o próprio vazio, paradoxalmente pleno: o vazio completo a nos encher por inteiro; o nada, promovido a tudo; e o tudo reduzido a nada.

A fé católica nos diz que Deus permite: não é que Ele cause. Ele não causa o mal, nem o cria: Ele o permite. Mas permite por quê? Permite para quê?

Permite porque nos quis livres e nos fez livres. Ele respeita a nossa liberdade a ponto de sermos livres até mesmo para negá-lo; para crucificá-lo; para matá-lo e tentar sepultá-lo. Ele respeita a nossa liberdade de escolher entre os atos mais sublimes, como o de doar a vida para salvar a do próximo, ou os gestos mais abomináveis, como infligir um horror indizível a centenas, milhares, milhões de nossos irmãos em nome da nossa ganância cega. São escolhas nossas. E suas consequências.

Algum sentido haverá na experiência absurda de existir no tempo e no espaço, vivida entre os extremos da felicidade mais arrebatadora e do sofrimento mais devastador.

Deus mesmo quis viver essa experiência. Deus mesmo quis encarar o mistério da própria “ausência”. E Deus mesmo, feito homem e entregando-se à morte e morte de cruz, se permitiu explodir num brado sincero, insilenciável e indesviável:

“Meu Deus! Meu Deus! Por que me abandonaste?”

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