Aleteia logoAleteia logoAleteia
Segunda-feira 04 Dezembro |
São João Damasceno
Aleteia logo
Estilo de vida
separateurCreated with Sketch.

A solução é descriminalizar o aborto?

COURTROOM,GAVEL,JUDGE,LAW

Shutterstock

Cardeal Odilo Scherer - publicado em 13/08/18

A lei que penaliza o aborto provocado está a serviço de um valor altíssimo, que é a vida do nascituro

As audiências públicas promovidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o aborto deram ocasião a muitas manifestações favoráveis ou contrárias à descriminalização do aborto voluntário. Após ouvir a sociedade, o Supremo deverá responder à pergunta se os artigos 124 e 126 do Código Penal, que qualificam o aborto como crime e preveem sanções correspondentes, são contrários à Constituição de 1988 ou não.

Desejo participar desta reflexão e peço ao leitor que me dê o crédito da sua leitura. Como cardeal da Igreja Católica, eu poderia tratar o aborto do ponto de vista moral e religioso; mas aqui pretendo refletir apenas com argumentos compartilháveis também por quem não tem a mesma fé religiosa.

O motivo da existência de leis é a preservação de valores e bens de alto apreço. O bem patrimonial privado e público é um valor a ser preservado por leis, e o atentado contra ele leva o legislador a prever a lei que protege este bem e manda o julgador aplicar sanções que penalizem quem desrespeita o legítimo patrimônio. E não achamos isso estranho. Assim há leis para regular o trânsito e penalizar seus infratores; leis para preservar o ambiente e penalizar quem as desrespeita. E não é preciso ir mais além nesse raciocínio. Alguém pensa que a aplicação da lei ao infrator é uma injustiça contra ele?

A lei que penaliza o aborto provocado está a serviço de um valor altíssimo, que é a vida do nascituro, seu primeiro e mais fundamental direito. Sei bem que existem diversas percepções sobre o início da vida humana. Penso que o feto humano, desde a sua concepção, já é um ser humano, sujeito de direitos. Não consigo pensar que ele se torne “humano” apenas num estágio posterior do seu desenvolvimento no útero da mãe. A mulher, da mais inculta à mais letrada e conhecedora dos segredos da ciência, quando tem a notícia do início de uma gravidez, exclama “estou esperando um filho!”. E quem diria que não é assim ou que ela está iniciando a gestação de “algo” indefinido, que apenas depois, mais tarde, se tornará um filho seu, um ser humano como ela? O embrião é humano, desde o primeiro instante de sua gestação. Se não o fosse, não haveria lei alguma, ou Constituição de país nenhum, capaz de torná-lo “humano”, em momento posterior. Não é uma concessão da lei; é um fato da natureza, que precede à própria legislação positiva.

Argumenta-se que o bebê em gestação ainda não seria sujeito dos mesmos direitos dos já nascidos e dos adultos, e isso é verdade. No entanto, sendo “humano”, ele já tem o direito à proteção dos adultos e de leis que lhe assegurem direitos proporcionais à sua condição, como a saúde, a proteção contra a violência e, sobretudo, o direito à vida. É da percepção mais elementar da condição humana que os adultos protejam e defendam os humanos mais fracos e indefesos, como é o caso das crianças desde a mais tenra idade. Seria cínico e desumano não reconhecer a dignidade humana do nascituro e aprovar atitudes agressivas contra ele, sobretudo a iniciativa de lhe tirar a vida.

Claramente, penso que apenas numa condição o aborto poderia ser visto com indiferença pela sociedade e suas leis: só se o bebê, em qualquer fase de sua gestação, não fosse um ser humano. Mas quem o poderia afirmar, sem esconder a mais elementar verdade científica? Sendo o nascituro um ser vivo da mesma espécie de quem o gerou, o aborto interessa à sociedade como um todo e cabe à comunidade humana civilizada fazer leis e cuidar de sua aplicação, quando se trata de proteger e defender os inocentes e indefesos. Do contrário, ela deixa de ser civilizada e humana.

Então o aborto deve continuar a ser tipificado como crime no Código Civil? Minha resposta vem como uma nova pergunta: existe algum modo de proteger e preservar o “valor”, que é a vida dos nascituros, sem que haja uma lei expressa que o estabeleça e que também preveja sanções para quem, de modo direto ou indireto, provoca o aborto voluntariamente? A finalidade da lei não é, antes de tudo, a penalização da mulher que o faz, mas a proteção do seu filho e dela mesma. Existe alguma possibilidade diversa de conseguir esse objetivo, sem ser por uma lei adequada, contrária ao aborto?

A gestante também deve ter a proteção da sociedade mediante uma legislação adequada e políticas que a implementem de maneira eficaz. Mas o preço pela falta ou pela ineficácia de leis que assegurem a dignidade e os legítimos direitos da mulher não deve jamais ser cobrado do filho dela, inocente e indefeso.

Argumenta-se, também, que a lei que qualifica o aborto voluntário como crime limita os direitos fundamentais da mulher e desrespeita a sua autonomia, sua dignidade e sua integridade física e psíquica. Sinceramente, não me parecem argumentos que justifiquem a desproteção legislativa do nascituro. Não é belo e não é adequado ver no filho um “agressor” de sua mãe…

As questões em relação aos direitos e à dignidade da mulher podem e devem ser resolvidas sem suprimir a vida dos bebês ainda por nascerem. A maternidade não é doença nem mácula para a dignidade da mulher. A liberdade dela é preciosa, mas também está vinculada à responsabilidade que lhe corresponde. A gravidez inesperada pode ser prevenida com meios adequados, sobretudo com a educação e a informação. A falta de condições econômicas para criar os filhos deve ser tratada com seriedade e a mulher que se torna mãe tem o direito ao apoio da sociedade para encaminhar bem o filho na vida. Mas a injusta pobreza de muitos não pode ser argumento para eliminar o inocente e indefeso. As cifras presumidas de abortos clandestinos e os custos das complicações decorrentes devem ter uma solução que, honestamente, não poderia ser a legalização do morticínio de bebês ainda no ventre de suas mães.

Cardeal Odilo Pedro Scherer

Artigo publicado no Jornal “O Estado de S.Paulo”, ed. 11/8/2018

Tags:
AbortoVida
Apoiar a Aleteia

Se você está lendo este artigo, é exatamente graças a sua generosidade e a de muitas outras pessoas como você, que tornam possível o projeto de evangelização da Aleteia. Aqui estão alguns números:

  • 20 milhões de usuários no mundo leem a Aleteia.org todos os meses.
  • Aleteia é publicada diariamente em sete idiomas: inglês, francês,  italiano, espanhol, português, polonês e esloveno
  • Todo mês, nossos leitores acessam mais de 50 milhões de páginas na Aleteia.
  • 4 milhões de pessoas seguem a Aleteia nas redes sociais.
  • A cada mês, nós publicamos 2.450 artigos e cerca de 40 vídeos.
  • Todo esse trabalho é realizado por 60 pessoas que trabalham em tempo integral, além de aproximadamente 400 outros colaboradores (articulistas, jornalistas, tradutores, fotógrafos…).

Como você pode imaginar, por trás desses números há um grande esforço. Precisamos do seu apoio para que possamos continuar oferecendo este serviço de evangelização a todos, independentemente de onde eles moram ou do quanto possam pagar.

Apoie Aleteia a partir de apenas $ 1 - leva apenas um minuto. Obrigado!

PT300x250.gif
Oração do dia
Festividade do dia





Envie suas intenções de oração à nossa rede de mosteiros


Top 10
Ver mais
Boletim
Receba Aleteia todo dia