“Gostaria de dizer um sentimento que tenho. Olhando para vocês, vejo muitos mártires atrás de vocês. Mártires anônimos, no sentido de que nem sabemos onde eles foram enterrados”..
A Catedral de S. Pedro e S. Paulo em Kaunas, na Lituânia, foi o local do encontro do Papa com a vida consagrada. Com eles, Francisco compartilhou “alguns traços característicos da esperança à qual sacerdotes, seminaristas, consagrados e consagradas”, são chamados a viver. A Catedral de Kaunas foi a primeira grande construção gótica da Lituânia e remonta ao ano de 1413, segundo algumas fontes escritas.
O Pontífice foi recebido com efusivos aplausos pelos presentes, em meio à cânticos religiosos. Mas antes de pronunciar-se, dirigiu-se a uma capela lateral onde depositou flores aos pés de uma imagem de Nossa Senhora, detendo-se então em oração diante do Tabernáculo. No local estavam presentes algumas religiosas de clausura. Francisco dirigiu a elas algumas palavras em italiano, sendo traduzido em lituano por um sacerdote.
Antes de ler o discurso preparado, Francisco falou de improviso, inspirado na conversa que teve com os bispos com quem almoçou na sede da Cúria em Kaunas, antes do encontro na Catedral. E recordou o tempo das perseguições e os tantos mártires.
“Também alguém de vocês: eu cumprimentei alguém [de vocês], [que] soube o que era a prisão. Vem-me à mente uma palavra para começar: não esqueçam, recordem-se. Vocês são filhos dos mártires. Essa é sua força. E o espírito do mundo não venha para lhes dizer outra coisa diferente daquela que seus antepassados viveram”.
“Recordem dos mártires de vocês, insistiu. Tomem o seu exemplo, não tenham medo. Falando com os bispos, seus bispos hoje, disseram: “Como podemos apresentar a causa da beatificação para muitos dos quais não temos documentos, mas sabemos que eles são mártires?” É um consolo, é bonito ouvir isso: a preocupação por aqueles que nos deram testemunho. São os Santos“.
Ao retomar o discurso escrito, o Papa recordou que Paulo repetiu três vezes a palavra “gemer” – geme-se pela escravidão da corrupção, pelo anseio à plenitude – dizendo aos presentes, “que seria bem perguntar se aquele gemido está presente em nós ou se, pelo contrário, já nada grita na nossa carne, nada anela pelo Deus vivo”:
“O gemido da corça sequiosa por falta de água deveria ser o nosso na busca da profundidade, da verdade, da beleza de Deus. Talvez a «sociedade do bem-estar» nos tenha deixado demasiadamente saciados, cheios de serviços e de bens, e encontramo-nos «pesados» de tudo e cheios de nada; talvez nos tenha deixado aturdidos ou dissipados, mas não cheios. Somos nós, homens e mulheres de especial consagração, aqueles que não podem jamais permitir-se a perda daquele gemido, daquela inquietude do coração que só no Senhor encontra repouso”.
“Nenhuma informação imediata – enfatizou o Papa – nenhuma comunicação virtual instantânea pode privar-nos dos tempos concretos, prolongados, para conquistar – é precisamente disto que se trata: de um esforço constante – um diálogo diário com o Senhor através da oração e da adoração”. Trata-se de cultivar o nosso desejo de Deus, como escrevia São João da Cruz.
Mas “este gemido – continuou – deriva também da contemplação do mundo dos homens, sendo um apelo à plenitude face às necessidades insatisfeitas dos nossos irmãos mais pobres, perante a falta de sentido da vida dos mais novos, a solidão dos idosos, os abusos contra o meio ambiente. É um gemido que procura organizar-se para influenciar os acontecimentos duma nação, duma cidade; não como pressão ou exercício de poder, mas como serviço”.
“O grito do nosso povo deve-nos importunar como a Moisés, a quem Deus revelou o sofrimento do seu povo no encontro junto da sarça ardente”, disse o Pontífice, recordando que “escutar a voz de Deus na oração faz-nos ver, ouvir, conhecer o sofrimento dos outros para os podermos libertar. Mas de igual modo devemos sentir-nos importunados quando o nosso povo deixou de gemer, deixou de procurar a água que mata a sede. É hora também para discernir o que está a anestesiar a voz do nosso povo”:
“O clamor que nos faz procurar a Deus na oração e na adoração é o mesmo que nos faz escutar o lamento dos nossos irmãos. Eles «esperam» em nós e, a partir dum discernimento atento, precisamos de nos organizar, programar e ser ousados e criativos no nosso apostolado. Que a nossa presença não seja deixada à improvisação, mas dê resposta às necessidades do povo de Deus e seja, assim fermento na massa”.
A segunda característica de que fala o Apóstolo, é a “constância”, “constância no sofrimento, constância em perseverar no bem. Isto significa estar centrados em Deus, permanecendo firmemente enraizados n’Ele, ser fiéis ao seu amor”.
O Papa recordou então o testemunho dos mais idosos nesta “constância no sofrimento”:
“A violência usada contra vós por ter defendido a liberdade civil e religiosa, a violência da difamação, o cárcere e a deportação não puderam vencer a vossa fé em Jesus Cristo, Senhor da história. Por isso, tendes tanto a dizer-nos e ensinar-nos, e muito também a propor, sem precisar de julgar a aparente fraqueza dos mais jovens”.
E aos mais jovens recomendou que quando se depararem com “as pequenas frustrações” que tiram o ânimo, levando a um fechamento em si mesmos, levando “a comportamentos e evasões que não são coerentes” com a consagração, procurem suas raízes e busquem olhar “o caminho percorrido pelos idosos”:
“São precisamente as tribulações que delineiam os traços distintivos da esperança cristã, porque, quando é apenas uma esperança humana, podemos sentir-nos frustrados e esmagados com o fracasso; mas não acontece o mesmo com a esperança cristã: esta sai mais límpida, mais experimentada do crisol das tribulações”.
Mesmo que os tempos sejam outros e a vida vivida em outras estruturas, o Papa afirma que “estes conselhos são melhor assimilados quando as pessoas que viveram aquelas duras experiências não se fecham, mas compartilham-nas aproveitando os momentos comuns”.
O identificar-se com Cristo, participar comunitariamente no seu destino, é a terceira característica ressaltada por Paulo, para quem “a salvação esperada não se limita a um aspecto negativo – libertação duma tribulação interna ou externa, temporal ou escatológica –, mas a ênfase está colocada em algo altamente positivo: a participação na vida gloriosa de Cristo, a participação no seu Reino glorioso, a redenção do corpo”.
Trata-se, portanto, de vislumbrar o mistério do projeto único e irrepetível que Deus tem para cada um. Pois não há ninguém que nos conheça e nos tenha conhecido tão profundamente como Deus; por isso Ele nos destinou para algo que parece impossível, aposta sem possibilidade de erro que reproduzamos a imagem de seu Filho. Ele colocou as suas expectativas em nós, e nós esperamos n’Ele. Um «nós» que integra, mas também supera e excede o «eu».
Devemos interrogar-nos novamente, diz Francisco: “Que nos pede o Senhor? Quais são as periferias que mais precisam da nossa presença, para lhes levar a luz do Evangelho?”:
“No barco da Igreja, estamos todos, sempre procurando clamar a Deus, ser constantes no meio das tribulações e ter Cristo Jesus como objeto da nossa esperança. E este barco reconhece no centro da sua missão o anúncio da glória esperada que é a presença de Deus no meio do seu povo, em Cristo ressuscitado, e que um dia, ansiosamente esperado por toda criação, se manifestará nos filhos de Deus. Este é o desafio que nos impele: o mandato de evangelizar. É a razão da nossa esperança e alegria”.